Resolução do Comitê Internacional da Quarta Internacional, fevereiro de 2021
Introdução
Nos últimos anos, assistimos a um novo ascenso dos movimentos feministas que, em vários países, assumiram um carácter massivo e, ao mesmo tempo, uma maior participação e liderança das mulheres em movimentos de protesto de massas e revoltas populares de grande escala. Deste ponto de vista, tendo em conta os diferentes paradigmas destas lutas em comparação com as anteriores, desde o final do século XIX - início do século XX ou a partir dos anos 60 e 70, e o seu desenvolvimento, juntamente com outros processos de grandes mobilizações internacionais, consideramos que está em curso uma nova onda do movimento de mulheres, que terá um efeito duradouro nas formas e exigências da luta de classes, e em particular com o novo instrumento da greve feminista das mulheres.
1. O Contexto
Em 2020, a pandemia de Covid-19 criou um contexto totalmente novo, salientando ao mesmo tempo as características essenciais da situação. O nosso texto do 17º Congresso Mundial sublinhou o caos geopolítico geral e as crises que existem hoje em dia. A pandemia é uma ilustração impressionante da globalização na rápida propagação do vírus em todo o mundo e do caos criado pela incapacidade de todos os governos capitalistas em gerir as crises sanitária, social e econômica que se seguiram.
Foi criada uma tensão entre as urgências da economia e as da saúde, a fim de confundir e enganar uma grande parte da população sobre a gravidade e profundidade da atual fase desta crise civilizacional. Em grande medida, espalhou-se a ideia de que a pandemia seria a causa da crise econômica, quando, de fato, o capitalismo em crise estava escondido por detrás da pandemia, procurando reorganizar-se. Consequentemente, as possíveis medidas contra os efeitos sociais da pandemia são apresentadas entre parênteses que devem dar lugar a políticas "normais" o mais rapidamente possível. Isto esconde o fato de que a pandemia emergiu num capitalismo que não tinha de modo algum superado as crises combinadas (financeira, socioeconômica, ambiental, geopolítica) que ainda estão em curso após 2007 e 2008.
Estas crises interrelacionadas afetam particularmente as mulheres, o que é reforçado pelos efeitos da pandemia, e está gerando um retrocesso generalizado contra o que é frequentemente chamado a "revolução mais longa", que levou ao aumento dos direitos das mulheres ao longo do século passado.
A contradição entre as aspirações das mulheres a uma vida que vale a pena viver, por um lado, e o agravamento da sua situação real, por outro, está subjacente ao novo aumento das mobilizações das mulheres e explica a natureza abrangente das plataformas que muitas vezes surgiram, e o desenvolvimento de greves e experiências feministas em territórios e comunidades como um método de ação que simboliza a rejeição do sistema como um todo.
1.1 A pandemia de Covid-19
A pandemia de Covid-19 é um produto da intersecção de crises ecológicas e sociais subjacentes: a distorção da relação da sociedade humana com a natureza (desmatamento, colapso da biodiversidade, comércio de animais selvagens, agricultura industrial, manipulações genéticas na produção de animais e alimentos) e a incapacidade dos governos capitalistas, movidos pelo lucro, de construírem e manterem serviços de saúde e outros serviços públicos eficazes. Tem sido também uma demonstração flagrante da desigualdade global no acesso aos cuidados de saúde e aos recursos; por exemplo, 90% das vacinas disponíveis foram direcionadas aos países do Norte.
Os governos recorreram a fechamentos obrigatórios (lockdown) e toques de recolher repressivos, que muitas vezes foram aplicados enquanto a pandemia continuava de forma incoerente e injustificada porque os serviços de saúde tinham sido cortados e não podiam fazer frente a situação. Mesmo após a primeira onda, não foram injetados novos recursos para preparar a inevitável segunda (ou terceira) onda. Esta situação proporcionou também a oportunidade para teorias de conspiração sobre o vírus fabricado e campanhas anti-vacinas começassem, por si mesmas, a tornar-se uma ameaça para a saúde pública em alguns países.
As mulheres estão suportando a maior parte do custo social da pandemia. A pandemia revelou, de forma categórica, quem são os "trabalhadores essenciais": aquelas pessoas necessárias para a continuação da vida humana, tais como os que trabalham na saúde e cuidados médicos, equipes de limpeza, trabalhadores e agricultores na produção e distribuição de alimentos, equipes de professores e do setor administrativo da educação, e no transporte. As mulheres também predominam em setores dizimados pelos efeitos dos fechamentos obrigatórios (lockdown) e toques de recolher: o setor hoteleiro, o comércio e o setor informal. Todos estes setores são altamente racializados e têm frequentemente uma elevada proporção de trabalhadores indígenas. Este desenvolvimento também afeta fortemente a comunidade LGBTIQ, concentrada de forma desproporcional em setores essenciais ou precários.
Quando as escolas e creches estão fechadas, a carga doméstica das mulheres aumenta, agravada pelo estresse e ansiedade de tentar assegurar que as crianças em idade escolar sigam a educação de forma remota quando esta é oferecida, e tenham os equipamentos e as condições necessárias para fazê-lo corretamente. Tem havido um aumento de abandono escolar devido à falta de condições, tais como internet, computadores. As responsabilidades das mulheres como cuidadoras de familiares doentes e idosos têm aumentado.
A restrição de outros tipos de cuidados médicos enquanto se dá prioridade aos doentes com Covid-19 afeta muitas pessoas, aqueles com doenças crônicas, doentes com câncer e outros que precisam de cuidados regulares, tais como os que vivem com HIV e as pessoas trans que precisam de medicação regular. As mulheres grávidas também precisam de cuidados médicos regulares antes, durante e após o parto. Mas afeta particularmente as mulheres que necessitam de ajuda médica imediata para interromper gravidezes indesejadas e não planejadas.
Para as centenas de milhões de mulheres abaixo da linha de pobreza extrema, a sua dependência desesperada de empréstimos para sobreviver foi agravada. Dos 250 milhões de clientes de microcrédito, mais de 80 por cento são mulheres muito pobres que sofrem com as taxas de juros elevadas, muitas vezes usurárias.
Muitas e muitos migrantes, tanto internos como internacionais, incluindo milhares de mulheres que trabalham principalmente como empregadas domésticas e no setor têxtil, foram expulsos dos locais onde trabalhavam antes da pandemia. Essas pessoas migraram, em primeiro lugar, porque não conseguiram encontrar emprego no seu país, e a recessão econômica causada pela pandemia agrava essa situação, deixando-os muitas vezes em comunidades rurais, sem meios de subsistência.
Os confinamentos também representavam uma ameaça adicional para as mulheres confinadas com parceiros ou membros da família violentos, e nas condições exacerbadas, a incidência da violência doméstica aumentou significativamente. Em alguns países, foram tomadas medidas para permitir às mulheres denunciar a violência e encontrar abrigo alternativo, mas estas medidas costumam ser inadequadas e de curta duração. Muitas pessoas LGBTIQ, especialmente as jovens, foram forçadas a regressar às suas famílias de origem, resultando frequentemente em violência e no aumento da repressão contra elas.
Enquanto os governos tentavam lidar com a pandemia através de medidas essencialmente repressivas e autoritárias, a nível local, e muito frequentemente por iniciativa das mulheres, foram estabelecidas redes de apoio para assumir tarefas como a compra de objetos para os idosos e pessoas vulneráveis, ou a fabricação de máscaras faciais. Além disso, quebrar o isolamento imposto pelos fechamentos (lockdown) e pelo trabalho em casa, e fornecer apoio emocional quando as pessoas temiam que o vírus as matasse ou aos seus entes queridos. As mulheres produtoras rurais apoiaram a produção local e urbana de alimentos.
A crise sanitária põe em destaque a centralidade do trabalho de reprodução social das mulheres e faz eco das demandas de revalorização das profissões relacionadas ao cuidado. Também põe em primeiro plano a necessidade de solidariedade internacional e justiça no acesso aos cuidados e aos recursos sanitários.
1.2 Neoliberalismo
A globalização capitalista, a financeirização e a crescente internacionalização das linhas de produção reduziram a capacidade dos governos para implementar políticas econômicas de interesse coletivo das classes dominantes. Os países imperialistas ainda tentam garantir condições favoráveis à acumulação de capital, mas o capital global opera mais independentemente do que antes. As crises financeiras de 1997-1997 e 2007-2008 revelaram as contradições inerentes à globalização capitalista com grandes consequências: políticas, sociais e estruturais, incluindo a expansão explosiva da dívida, e a revitalização do crime organizado, e mesmo o ressurgimento da escravidão humana. Os grandes bancos privados lançaram-se na conquista de novos mercados e clientes, alcançando centenas de milhões de pessoas através do microcrédito, particularmente mulheres que não têm contas bancárias.
O desemprego, o subemprego e o emprego precário, e uma redução maciça dos serviços básicos (habitação, educação, assistência social, etc.), junto como as crises na agricultura, têm tido um impacto maciço na capacidade de sobrevivência de milhões de pessoas.
Como resultado do crescimento do capital globalizado e não-regulamentado, da corrupção e incompetência dos governos e do empobrecimento de grandes segmentos da população, o crime organizado tornou-se um importante ator econômico e social no cenário mundial. Não se limita ao contrabando e venda de drogas, mas expandiu-se para incluir o tráfico de seres humanos para exploração sexual e laboral como sua segunda maior fonte de rendimentos, junto com o tráfico de armas, que atrai milhares de jovens para as suas fileiras e conduz a níveis de violência sem precedentes nas comunidades.
Tudo afeta particularmente às mulheres, tanto no trabalho remunerado como no não-remunerado. Há mais mulheres em empregos precários, no sector informal ou em áreas de elevado desemprego, e a maioria das pessoas que são traficadas são mulheres. A deterioração dos serviços públicos aumenta a quantidade de trabalho doméstico necessário para reproduzir o espaço do lar - uma parte desproporcional recai sobre as mulheres.
1.3 A ascensão da extrema-direita, fundamentalismo religioso, autoritarismo, anti “ideologia de gênero”
A ascensão de correntes fundamentalistas de extrema-direita, autoritárias e religiosas, frequentemente ligadas mas nem sempre idênticas, tem consequências específicas e prejudiciais para as mulheres A renovação da direita radical fortalece um impulso reacionário para minar os direitos das mulheres e das pessoas LGBTIQ; o aborto e os direitos reprodutivos em geral, o direito da família e a “caça às bruxas” contra as pessoas LGBTIQ.
Enquanto que alguns movimentos atacam claramente as mulheres e as pessoas LGBTIQ, apresentando frequentemente a homossexualidade e os direitos LGBTIQ como exportações imperialistas, outros, sob o pretexto de defenderem as mulheres e as pessoas LGBTIQ, se dirigem às migrantes e/ou muçulmanas, alegando defender os direitos das mulheres ao proibir-lhes o uso de véus ou lenços de cabeça, acusando-lhes de violação ou alegando que o Islam é contra a homossexualidade. Como resultado, a extrema-direita pode experimentar tensões entre aqueles que querem apelar ao sexismo e ao heterossexismo de sua base e aqueles que instrumentalizam os direitos das mulheres e dos LGBTIQ a serviço da islamofobia e do preconceito anti-imigração. No entanto, na realidade, reforçam-se mutuamente.
Os códigos legais religiosos dependem, em grande medida, da unidade familiar e da segregação dos papéis de gênero, impondo relações de poder opressivas sobre os corpos das mulheres, que põem suas vidas em perigo. Os fundamentalistas geralmente consideram proibida a participação das mulheres no trabalho fora de casa, especialmente nas fábricas.
Outras correntes de extrema-direita estão emergindo como fundamentalismo religioso em todas as religiões "principais" (ou fundamentalismo "religioso nacional" como a extrema-direita sionista). Influenciam governos tão grandes como os Estados Unidos e o Brasil, e desempenham um papel central em alguns países da Europa do Leste. Quer sejam evangélicas ou católicas extremistas, as correntes cristãs estão causando estragos na América Latina e na África, com políticas profundamente reacionárias em relação às mulheres - especialmente na questão do aborto e do direito de escolha das mulheres - e às pessoas LGBTIQ, com uma ideologia anti-gênero que visa manter os papéis tradicionais masculinos e femininos e atacar os LGBT’s, especialmente os direitos trans. O mundo muçulmano tem uma dimensão internacional particular no fundamentalismo religioso, com movimentos "transfronteiriços" tais como o Estado islâmico ou os Talibãs. Os movimentos teofascistas utilizam a violência sexual sistemática contra mulheres e crianças nos territórios que controlam, principalmente sob a forma de estupro e escravidão sexual. Usam isto para recrutar membros e para lutar contra outros grupos.
O conservadorismo neoliberal destinado a fortalecer a família patriarcal tem aumentado grandemente a violência contra as mulheres. Para além da impunidade de que gozam os autores de tal violência, a redução da assistência material às vítimas cria um ambiente social que encoraja a violência masculina.
1.4 Desastre climático
A catástrofe climática prevista para o futuro já está presente em muitas regiões do mundo. As alterações climáticas, a crise alimentar, a crise da água, o racismo ambiental, o avanço das empresas transnacionais sobre os territórios e os seus recursos, o extrativismo - a exploração dos recursos naturais para fins lucrativos - e a "financeirização da vida" são partes importantes da realidade do Sul global.
Os povos indígenas, camponeses e jovens estão na vanguarda das lutas ambientais, e as mulheres desempenham nelas um papel de liderança. Esta situação é um produto da sua opressão específica, não do seu sexo biológico, como as ecofeministas não-essencialistas têm demonstrado. A sociedade patriarcal impõe, às mulheres, papéis sociais diretamente ligados ao "cuidado" e as coloca na vanguarda dos desafios ambientais.
As mulheres produzem a maioria dos alimentos básicos nos países do Sul, e por isso enfrentam diretamente os estragos das mudanças climáticas, do extrativismo e do agronegócio. Da mesma forma, assumem a maior parte das tarefas de criação das crianças e manutenção do lar, e por isso são diretamente confrontadas com os efeitos da destruição ambiental e do envenenamento na saúde e educação das suas comunidades. A auto-organização das vítimas do caos climático e a sua defesa fazem parte da luta contra o clima, e as mulheres estão no coração destas mobilizações em suas comunidades.
1.5 Migração em massa
Há importantes deslocamentos populacionais: 250 milhões de migrantes internacionais, 750 milhões de migrantes internos muitas vezes devido a mudanças econômicas estruturais com grandes disparidades regionais. Há também um deslocamento permanente devido a guerras e violência do crime organizado, e agora às alterações climáticas. Dois terços das migrações internacionais ocorrem entre países com um nível de desenvolvimento comparável.
As mulheres migram, tanto internacional como internamente, em busca de melhores condições de vida para si próprias e para as suas famílias, devido a perseguições políticas, ou como consequência de guerras e violência local, ou violência doméstica. Num contexto de crise, a migração aumenta a opressão e resulta na exploração das mulheres. Sofrem de empobrecimento extremo e perda de direitos, e enfrentam discriminação de gênero, racismo e exploração. As mulheres também sofrem de "novas" formas de trabalho que são quase no mesmo nível da escravidão: sequestro, prostituição e tráfico.
Os países industrializados necessitam de mão-de-obra migrante, tanto no setor formal como no informal. No entanto, os migrantes são frequentemente alvo de campanhas xenófobas que os retratam como inimigos. As leis repressivas que limitam a migração separam as famílias, atribuindo a única responsabilidade pelos seus cuidados às mulheres quando os membros masculinos migram, ou obrigando-as a tornarem-se trabalhadoras migrantes para ganharem dinheiro para as suas famílias. A cadeia de migração coloca um fardo crescente nos familiares destas mulheres migrantes, para que cuidem das famílias deixadas para trás no país de origem.
1.6 Crise de reprodução
O capitalismo sempre teve de assegurar a reprodução da força de trabalho, sem a qual não poderia funcionar: a reprodução da força de trabalho é uma parte integrante do ciclo de valorização do capital.
A forma patriarcal da família capitalista, reforçada por noções de "salário como ganha-pão", atirando a responsabilidade pelas tarefas reprodutivas para as mulheres dentro da família, permitiu ao capitalismo assegurar esta reprodução com um menor custo.
Este foi um processo desigual não só porque o crescimento do capitalismo em si mesmo tem sido desigual, de modo que hoje vemos restos pré-capitalistas em algumas partes do mundo, mas também porque, por razões econômicas e políticas, se desenvolveram padrões diferentes em situações diferentes.
Quando o capitalismo precisou da massa de mulheres para fazer parte da força de trabalho, especialmente durante a Segunda Guerra Mundial e no auge do pós-guerra dos países capitalistas avançados, foi obrigado, de diferentes formas, dependendo da correlação de forças e da natureza precisa da economia local, a prestar alguns serviços através do Estado: educação, cuidados de saúde, habitação, cuidados infantis, etc. Este trabalho, visto como feminino porque corresponde ao papel da mulher na família, foi e é mal pago e esmagadoramente realizado por mulheres, muitas vezes minorias étnicas e/ou mulheres migrantes.
Mas, à medida que o capitalismo entrou numa profunda crise econômica, foi forçado a atacar esses mesmos serviços e direitos através da austeridade, enquanto tentava manter as mulheres na força de trabalho, mas reduzir ainda mais os seus salários e condições. Isto aumentou o fardo sobre muitas mulheres, forçando-as a fazer o trabalho que o Estado tinha anteriormente coberto. A crise expulsou muitas mulheres do mercado de trabalho ou levou-as a trabalhos ainda mais precários. Também criou uma demanda cada vez maior de mulheres com salários mais baixos e mais precarizadas, incluindo mulheres migrantes sem documentos, para fazer este trabalho e permitir que outras mulheres mantenham o seu lugar no mercado de trabalho.
2. Quais são os fatores que causaram este auge?
2.1 Conquistas de ondas anteriores
As novas gerações puderam se beneficiar, de maneira desigual mas combinada, das conquistas do movimento de mulheres e LGBTIQ das ondas anteriores: primeiro, nos direitos formais, mudanças nos códigos familiares e jurídicos, acesso das mulheres à educação e saúde. Segundo, nos direitos e liberdades sexuais e reprodutivos. E terceiro, nas oportunidades no mundo profissional, acadêmico, cultural, político e midiático. Em vários países, as tendências feministas socialistas têm lutado com sucesso no e com o movimento operário para melhorar os direitos laborais.
2.2 Feminização do trabalho
As mulheres trabalham mais do que os homens em toda parte, mas parte do seu trabalho é invisível: as mulheres continuam a ser responsáveis por mais de três quartos do trabalho de cuidados não-remunerados.
Embora a desigualdade com os homens persista, as mulheres estão entrando cada vez mais no mercado de trabalho global: a nível mundial, 4 em cada 10 trabalhadores são mulheres. Este aumento se dá em todas as regiões, embora algumas regiões, tais como o Norte da África e a Ásia Ocidental, tenham uma porcentagem mais baixa (menos de 30%) do que outras regiões do Sul global.
Em toda parte, é mais provável que as mulheres sejam obrigadas a trabalhar em tempo parcial, uma tendência que aumentou com a pandemia de Covid-19. Este subemprego pode atingir até metade do emprego feminino total. A nível mundial, quase metade de todas as mulheres trabalhadoras estão naquela situação que a OIT chama de "emprego vulnerável", particularmente em empresas agrícolas, artesanato e comércio. No Sul da Ásia e na África subsaariana, isto supera os 70%.
A globalização neoliberal alterou profundamente a estrutura da economia e do emprego.
Em geral, o emprego mudou nos últimos vinte anos da agricultura para a indústria e depois para os serviços, que ocupam cerca de metade da mão-de-obra.
Um quarto da força de trabalho feminina mundial ainda trabalha na agricultura, que continua a ser a principal fonte de emprego das mulheres no sul da Ásia e na África Subsariana. Na América Latina e no Caribe, a feminização da agricultura é um fenômeno crescente. Tendo em conta que mais de 60% dos produtos que chegam às cidades são produzidos por agricultoras e agricultores da agricultura familiar e camponesa, o papel das mulheres é fundamental na economia. Mas as políticas econômicas favorecem aos setores orientados para a exportação, na sua maioria homens, em detrimento das culturas alimentares. Como as mulheres constituem a maioria dos pequenos agricultores do mundo, a sua situação permanece sendo frágil.
A presença de mulheres na indústria tem diminuído desde 1995. Estão geralmente concentradas em setores como os têxteis e o vestuário. Em zonas econômicas especiais (zonas de livre comércio), as indústrias de exportação empregam uma maioria de mulheres, frequentemente muito jovens, e combinam salários baixos com falta de proteção social, condições de trabalho dramáticas e violência de gênero.
De 1995 a 2015, a proporção de mulheres que trabalham nos serviços tornou-se predominante a nível mundial. Em todas as partes, as mulheres estão concentradas em certos setores de atividade: comércio em países de rendimento médio, saúde e educação em países de rendimento alto. Em geral, a elevada presença de mulheres está associada a uma elevada frequência de trabalho a tempo parcial e salários relativamente baixos, especialmente em vendas, limpeza e restauração. A sua sobre-representação na saúde, educação e trabalho social está diretamente relacionada com estereótipos de gênero que desvalorizam as competências necessárias nestes campos.
Mas, em termos mais gerais, a flexibilidade e as condições especiais de dificuldade, incluindo a capacidade de executar uma variedade de tarefas e envolvimento emocional, exigem "qualidades tipicamente femininas" que dão forma a novas formas de servidão.
A desigualdade salarial entre mulheres e homens, numa média global, é estimado em 23%. Quase 40% das mulheres não se beneficiam de regimes de proteção social por causa do seu trabalho: no setor informal, não-declarado, ocasional, em casa. Como resultado, 200 milhões de mulheres que atingiram a idade de aposentadoria não recebem nenhuma pensão. Um total de 70% dos pobres do mundo são mulheres.
Durante a pandemia, o uso maciço do teletrabalho, que reúne, no mesmo lugar, o trabalho doméstico, o trabalho remunerado e o do lar, está aumentando a carga física e mental sobre as mulheres. Muitas se vêm obrigadas a pedir demissão devido ao esgotamento causado pelo excesso de trabalho, são demitidas ou são impedidas de trabalhar, sendo assim privadas dos meios para se sustentarem de forma independente.
Ainda não dispomos de estatísticas suficientes para avaliar plenamente o que isto significa para o lugar que ocupa a mulher no mercado de trabalho, mas podemos afirmar com certeza que as desigualdades existentes se aprofundaram. A "feminização" do trabalho diz respeito a todos os trabalhadores: significa tanto uma crescente participação numérica das mulheres no mercado de trabalho, como também, sob o impacto das políticas neoliberais, as condições características da situação das mulheres no trabalho (precariedade, instabilidade, vulnerabilidade, subemprego, falta de direitos e proteção social, baixas taxas de sindicalização) tendem a estender-se a todo o proletariado.
A precariedade do emprego aumenta constantemente e representa quase metade do emprego total. Também ocorre na participação da economia informal, que afeta a mais de seis em cada dez trabalhadores.
Os limites entre trabalho remunerado e o ócio tendem a ficar menos nítidos, como no trabalho reprodutivo (deve estar ao serviço dos patrões as 24 horas do dia), bem como entre a vida pessoal e profissional. É requerido o uso de habilidades e características feminizadas, tais como uma bela presença, sedução, cuidados com o relacionamento, empatia, multitarefas ao serviço da empresa.
2.3 O aumento da violência de gênero
A violência contra as mulheres, socialmente construída e depois naturalizada pelo Estado, goza de impunidade. As mortes violentas ocorrem numa teia complexa de discriminação e exploração das mulheres, por gênero, mas também por classe, etnia, situações de múltiplos riscos, marginalidade, insegurança, militarização, migração, entre outros.
Mais de um terço das mulheres do mundo experimentam violência sexual ou física nas suas vidas. A maioria das mulheres assassinadas num ato de violência de gênero são mortas por um companheiro íntimo ou ex-companheiro. Há uma escalada de crimes baseados no gênero agravados desde a crise de 2008, com a destruição dos serviços públicos e da proteção social, aumento das responsabilidades e tarefas de cuidados feitas pelas mulheres, reduzindo as oportunidades de escapar da violência, enquanto as políticas de austeridade reduzem o financiamento de centros e abrigos para mulheres vítimas de violência. A crescente independência econômica, psicológica e sexual das mulheres jovens as converte em alvo de "retaliação" por parte dos membros masculinos de suas famílias. Crimes de ódio para "corrigir" o comportamento de mulheres, lésbicas, trans e heterossexuais que "traem" os códigos conservadores são legitimados pelos formadores de opinião política e religiosa de direita.
O feminicídio, hoje reconhecido como uma das formas extremas de violência de gênero, é o assassinato e morte de mulheres como resultado de várias formas de violência só porque são mulheres: física, sexual, psicológica, familiar, laboral, institucional. Esta forma de violência começou a ser notada nos anos 80 e foi documentada em Cidade Juarez, no México, a partir de 1993; foi então rastreada por todo o país e é agora reconhecido como um fenômeno global e regional na América Latina. O slogan “Nem Uma a Mais!” criado por mulheres mexicanas, e o slogan “Nem Uma a Menos” das mulheres argentinas 22 anos mais tarde, hoje tomado em todo o mundo, é a prova palpável da persistência e aumento desta forma de violência misógina e machista, e da impunidade e violação dos direitos humanos. As mulheres de muitos países se organizam para procurar as suas filhas desaparecidas e exigem justiça estatal nos casos de feminicídio. Ao tomar os nomes das vítimas, estas campanhas tornam-se frequentemente casos emblemáticos.
O movimento #MeToo, que detonou nos Estados Unidos, tem tido um impacto global. As mulheres têm denunciado publicamente o assédio sexual em diferentes contextos culturais, profissionais e sociais e o assédio no trabalho, quebrando assim o silêncio e ao mesmo tempo mostrando os obstáculos que enfrentam ao fazê-lo, denunciam num marco formal e defendem a legitimidade da denúncia pública.
Uma nova geração de jovens feministas respondeu e reagiu à violência sexual nas universidades, confrontando as autoridades universitárias e exigindo respostas e mecanismos para enfrentar as agressões sexuais.
Em muitos países, as mulheres desaparecem para serem utilizadas como escravas sexuais e para trabalho forçado, por parte de redes internacionais de tráfico e do crime organizado. Em muitos conflitos, o estupro é utilizado como arma de guerra. Movido por uma variedade de motivos, desde a humilhação da comunidade até a limpeza étnica e aterrorização das populações civis.
As condições de migração das mulheres as tornam mais vulneráveis a converter-se em vítimas de violência sexual, desaparecimentos, prostituição, tráfico, extorsão, separação de suas famílias (muitas viajam com crianças), detenção arbitrária, doenças, acidentes e feminicídios. Como são, frequentemente, responsáveis pelas crianças que viajam com elas, tornam-se alvos duplos e as dificuldades aumentam, porque a sua condição de trabalhadoras indocumentadas dificulta a obtenção de emprego ou serviços para si próprias e para os seus filhos.
Nas últimas duas décadas, sob pressão do movimento feminista, que exige que o Estado assuma a responsabilidade e estabeleça novos marcos legais para enfrentar a violência, muitos países introduziram legislações e políticas públicas para enfrentar a desigualdade e combater a violência contra as mulheres e o feminicídio. Contudo, na prática, não foram capazes de financiá-las ou implementá-las plenamente, nem muito menos erradicar a violência, tornando as ações governamentais contraditórias com o seu discurso. Pelo contrário, a violência aumenta à medida que se torna mais visível através da energia e determinação das mulheres em denunciá-la.
Os obstáculos que as mulheres que experimentam violência enfrentam no acesso à justiça estão relacionados com a discriminação de gênero, preconceitos de inferioridade das mulheres e estereótipos que sustentam uma cultura e ideologia sistêmicas. As mulheres ativistas, defensoras dos direitos humanos, feministas que lutam pela defesa das mulheres vítimas de violência, enfrentam hostilidade e ameaças, são criminalizadas e, em alguns casos, forçadas ao exílio.
2.4 O papel cada vez maior das mulheres na sociedade e nos movimentos sociais
As mulheres sempre participaram ativamente em movimentos que desafiam a ordem estabelecida, as revoltas pelo pão (ou o seu equivalente), as batalhas contra a exploração e as tiranias. Mas é nas últimas décadas que as mulheres, como sujeitos políticos, emergiram claramente como vanguarda das mobilizações de todo tipo. Desde as batalhas pela defesa ambiental e territorial, lideradas por mulheres camponesas e indígenas, mas também dentro dos movimentos urbanos, contra a ação predatória e devastadora das multinacionais em questões de terra e água; nas lutas pelos direitos humanos e contra a repressão estatal e paramilitar, as mobilizações contra o racismo e a criminalização e exclusão dos migrantes.
Só para citar algumas: Máxima Acuña e a sua batalha contra a mineração no Peru; Berta Cáceres, ativista ambiental e dos direitos humanos em Honduras; Alaa Salaah, líder da revolta democrática no Sudão; Alicia Garza, Patrisse Culors, e Opal Tometi do movimento “Vidas negras importam” nos Estados Unidos; Greta Thunberg no movimento global juvenil contra as mudanças climáticas; Dayamani Barla, Jharkhand, Índia, liderando uma mobilização em massa contra a maior empresa siderúrgica mundial Arcelor Mittal; o Conselho Pastoral das Mulheres Maasai em Loliondo, que lidera as lutas pela terra; e Mulheres Unidas e Ativas (MUA), uma organização de base de mulheres imigrantes latinas na Baía de San Francisco que desempenhou um papel fundamental na aprovação da Lei dos Direitos das Trabalhadoras Domésticas em 2013.
As mulheres lideram a resistência comunitária, como a marcha das mulheres exigindo proteção da terra, a saúde e a educação, pertencentes a mais de 100 povos indígenas no Brasil, ou o papel de liderança das mulheres indígenas no Equador, indignadas com as medidas econômicas que procuravam acabar com os subsídios ao combustível, o que impactou suas vidas cotidianas. As mulheres das primeiras Nações canadenses e as mulheres nativas americanas nos Estados Unidos que conseguiram deter a exploração dos recursos naturais nos seus territórios.
As jovens e estudantes do Chile, que fizeram parte de uma impressionante revolta que revelou que o país que se apresentava como o modelo neoliberal a ser seguido na região, era uma falácia total ao revogar a constituição de Pinochet. A 8M Coordenadora Feminista em particular, através da sua organização de assembleias e do seu desenvolvimento de uma agenda feminista, foi fundamental no processo.
Na região do Médio Oriente e do Norte da África, as mulheres que lideram movimentos contra as tiranias e a decadência social se vêem obrigadas a travar a batalha ideológica contra o fundamentalismo religioso que impregna a sociedade e o aparelho de Estado.
No Brasil e nos Estados Unidos, as mulheres têm estado à frente dos protestos contra o desastroso manejo da pandemia pelos seus governos, liderados pelos presidentes machistas e autoritários Bolsonaro e Trump.
Em dois países do antigo bloco soviético, as mulheres estão dirigindo a luta das massas populares contra os regimes autocráticos e corruptos. Na Polônia, mobilizaram milhões de pessoas, desafiando o já limitado direito ao aborto, criando o espaço para uma transcendência democrática geral das demandas. Na Bielorrússia, elas estão na vanguarda das lutas populares para que se respeitem os resultados da votação e para expulsar o governo usurpador.
O novo auge feminista e o papel cada vez mais importante das mulheres nos movimentos sociais permitiram a emergência de um novo tipo de figuras políticas femininas. A eleição de Ada Colau e da nossa companheira Teresa Rodriguez no Estado Espanhol, os novos oradores (não-brancos) da esquerda do DP nos EUA. Figuras como Alexandria Ocasio Cortez e Rashida Tlahib, ou Marielle Franco e a sua companheira Mônica Benício no Brasil, são alguns exemplos.
Portanto, estamos perante um fenômeno notável de crescente protagonismo das mulheres no movimento social e político, entrando plenamente no processo político nacional, que resistem ao empobrecimento de amplos setores da população causado pelas políticas neoliberais. Vemos que estas são, de fato, lutas vinculadas à questão da defesa da vida, da reprodução social no sentido ecológico, econômico, social, cultural e, por vezes, espiritual. Estas lutas andam de mãos dadas com uma maior consciência entre as protagonistas da desigualdade de gênero e da violência patriarcal predominantes em seu próprio entorno e na sociedade em geral.
2.5 Os antecedentes internacionais da nova onda
Durante a onda anterior do movimento feminino, existiu uma certa coordenação internacional. No final da década de 1970, foi fundada a Campanha Internacional para os Direitos de Aborto, que evoluiu e se converteu na Rede Global de Direitos Reprodutivos para as Mulheres, ainda ativa. O primeiro dos encontros feministas bianuais latinoamericanos e caribenhos realizou-se na Colômbia em 1981. Essa conferência decidiu comemorar o 25 de Novembro como um dia de combate à violência contra as mulheres, que foi adotado em 1995 pela ONU como o Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres.
A Marcha Mundial das Mulheres contra a Pobreza e a Violência nasceu em 1998 na sequência da Conferência de Mulheres da ONU em Pequim em 1995, e foi inspirada pelas manifestações de mulheres no Quebec, Canadá, no mesmo ano, mas se dirigiu às mulheres de base e às ações de rua, com pauta de 17 reivindicações e propostas para a eliminação da pobreza e da violência contra as mulheres. Teve muito êxito durante o período dos Fóruns Sociais Mundiais e ainda existe em vários países.
Estas tentativas de coordenação internacional coincidiram com momentos de surgimento de movimentos sociais inspiradores a nível internacional, e sofreram o mesmo declínio que esses movimentos. No entanto, apesar dos aspectos negativos da ONGização, estas estruturas permitiram a continuação de alguma coordenação internacional. Tem havido encontros internacionais de mulheres rurais sobre a questão da soberania alimentar (Nyeleni - Mali 2007); e o crescente posicionamento feminista da Via Campesina, a principal rede camponesa internacional, tem-se desenvolvido.
Ao mesmo tempo, todas as revoltas ou revoluções sociais que estalaram nas últimas décadas assistiram a uma forte participação de mulheres que desenvolveram o seu próprio marco para a análise e ação dentro de seus movimentos: desde a lei das mulheres no movimento zapatista até a presença de mulheres nos movimentos da Praça Tahiri, Occupy, 15M, na "Primavera Árabe" e, por último, mas não menos importante, o surpreendente exemplo das mulheres combatentes kurdas.
Em todos estes movimentos, já não se trata de dar prioridade às lutas anticoloniais, anticapitalistas, democráticas, antirracistas e antipatriarcais, mas, pelo contrário, começa a surgir claramente um feminismo interseccional que aborda toda a opressão de uma forma combinada.
2.6 Outras correntes de feminismo
Enquanto isso, nos países altamente industrializados que tinham experimentado um grau de estado de bem-estar durante o boom do pós-guerra, o feminismo liberal e reformista surgiu como um subproduto da segunda onda de feminismo
O feminismo reformista caracteriza-se pela incorporação de reivindicações feministas e, frequentemente, ativistas em partidos social-democratas e outros partidos reformistas, especialmente quando estão no governo local ou nacional, adotando políticas e financiando projetos inspirados pelo movimento de mulheres, mas com pouca ou nenhuma auto-organização. Os planos de austeridade deixam pouco espaço para este tipo de feminismo.
O feminismo liberal está centrado na feminização das empresas, administrações e cultura dominante, sem questionar a sua classe e carácter racial, pelo contrário, atua como um álibi para a exploração de outras classes sociais: imigrantes, mulheres racializadas, pobres. Este feminismo burguês liberal tem funcionado como um freio para as novas gerações e outras camadas de mulheres não-privilegiadas que se identificam com o feminismo. Levou a muitas ilusões sobre a ideia da integração gradual das mulheres - de que mulheres? - nos órgãos de governo, rompendo o famoso "teto de vidro".
No Sul global, desenvolveu-se o fenômeno da "ONGização", ou seja, o condicionamento e a neutralização progressiva dos movimentos de mulheres no seio das ONG’s e no marco das reuniões da ONU, que são financiadas e profissionalizadas por elas em detrimento de sua radicalidade e autogestão.
Dado o agravamento das condições de vida e da precariedade após a crise de 2008, em contraste com estas ilusões gradualistas, os movimentos nascidos na década de 2010 desenvolveram-se em clara oposição a estes enfoques.
O ressurgimento de uma corrente de feminismo baseada no determinismo biológico e mais visível nas campanhas reacionárias para restringir os direitos das mulheres trans nos espaços públicos é outro obstáculo problemático.
3. Quais são as especificidades deste movimento?
O atual ciclo de mobilizações tem as suas próprias características, derivadas do contexto no qual está ocorrendo. Por um lado, encontramos perguntas que são específicas do período histórico (da crise da esquerda, dos sujeitos políticos, do individualismo neoliberal que se arrasta em todas as esferas, da desconfiança do político, da perda e reencontro com a estratégia, etc.) e, por outro lado, nos encontramos com as nossas próprias formas de luta, com uma nova gramática do movimento feminista. Partimos da ideia de que, neste momento, o movimento feminista é um movimento criativo que pode promover novos debates e novas ferramentas para mudar o mundo.
3.1 Crescente extensão geográfica, ampliação de conteúdos
As mobilizações espalharam-se por todo o planeta, adquirindo maior ressonância na América Latina e na periferia da Europa. Argentina, Brasil, Espanha e recentemente o México lideram estas mobilizações que se espalharam e estão se espalhando para outros lugares. Os enormes protestos pelo direito ao aborto na Polônia em 2020 - que recomeçaram em 2021 – logo em seguida às tentativas do governo polaco de criminalizar quase completamente o direito de escolha da mulher, também fazem parte do mesmo cenário. A vitória histórica das mulheres argentinas na legalização do aborto no final de 2020 é um motivo importante de celebração em todo o mundo. A luta pelo direito ao próprio corpo, pelo direito a decidir e a legalização do aborto, assim como a luta contra a violência machista e em particular contra o feminicídio e a violência sexual, têm sido os eixos principais da mobilização.
A greve feminista tornou-se um eixo articulador central do movimento feminista a nível internacional, estendendo-se a todo o planeta, mas o mais importante é compreender como esta greve feminista se conecta com um momento no qual as mulheres estão na linha da frente, como vanguarda das lutas contra as políticas neoliberais, e compreender que estas lutas têm a sua própria forma em cada país. Nos Estados Unidos, se articulou em torno da rejeição de Trump. No Norte da África e na região árabe, o papel desempenhado pelas mulheres nas mobilizações sociais e políticas é inegável.
A luta contra a violência machista também conseguiu articular o movimento a nível internacional, criando vínculos desde a América Latina até a Índia, África e Europa. Embora iniciativas como #MeToo se destaquem devido à cobertura obtida dos meios de comunicação social, esta identificação com outros e o foco na violência sexual tem ido além destas iniciativas, numa atividade contínua para tornar visível, denunciar e se auto-organizar face a tal violência.
Também é importante dar visibilidade internacional para outras formas de resistência que não utilizam greves: revoltas, ocupações pacíficas e lutas culturais.
3.2 Novas gerações e novos setores
A irrupção das jovens mulheres nas mobilizações está crescendo, e estas novas gerações trazem consigo uma nova forma de compreender o feminismo e o trabalho político, a partir de sua própria experiência pessoal de violência masculina diária. Em muitos casos, esta irrupção acompanha um desafio à hegemonia do feminismo institucional, dado que as mobilizações surgem de uma crise das respostas dadas por esse feminismo aos problemas e necessidades das mulheres.
Isto, de partir de vivências pessoais, não é novidade no movimento feminista, onde o pessoal sempre foi político, mas está ligado à forma como as gerações mais jovens se relacionam com a política e se constroem como sujeitas, como reafirmam a sua identidade pessoal e coletiva, o que exige, dos espaços de auto-organização do movimento, construir espaços de apoio mútuo feminista, etc. Tudo isto expressa a necessidade de uma sujeita feminista que responda aos desafios atuais, que incorpore estas demandas, que se questione a si própria, que se reinvente, etc. Também implica a necessidade de forjar uma expressão política coletiva da renovada rebelião das mulheres, o que implica que o movimento necessita de estruturas e espaços para que as mulheres debatam democraticamente sobre como construí-la, como decretar efetivamente a mudança e atrair um número crescente de mulheres. Quando estes espaços não existem, ou quando estão confinados ao âmbito acadêmico, por exemplo, as possibilidades de criar um pensamento verdadeiramente estratégico são limitadas.
3.3 Novas preocupações
Esta atenção aos aspectos pessoais é expressa em preocupações renovadas e reforçadas, tais como a necessidade de cuidados em espaços de auto-organização, no cuidado com os detalhes que têm a ver com a tomada de decisões e a forma de debater, de construir espaços inclusivos e participativos, etc. E também com o que nos concerne: a relevância dos aspectos afetivo-sexuais, das identidades de gênero, da expressão da nossa forma de viver a nossa identidade, da necessidade de valorizar a nossa vida cotidiana, de repensar a forma como nos relacionamos entre nós, etc. Em última instância, trata-se de colocar as nossas vidas no centro, da importância do afeto, do cuidado. Debater sobre a maternidade, sobretudo o que tem a ver com os nossos corpos e sexualidade, sobre como usamos o nosso tempo, etc. Estas reflexões podem levar a uma polarização entre a experiência ou a reação individuais e a identificação e ação colectivas. Entretanto, em outras ocasiões, ajudam a botar, em primeiro plano, questões que têm estado presentes, mas não muito visibilizadas no feminismo, e que geralmente estão ausentes em outros movimentos sociais e políticos.
Novas sujeitas surgiram na cena social e política, provocando uma determinação de incluir e dar visibilidade a estas sujeitas até agora invisíveis, incorporando a questão racial e étnica juntamente com a sexualidade e identidade de gênero, bem como outras questões como deficiência, doença mental, idosos, rurais ou urbanas, etc.
O papel das mulheres, particularmente das jovens, no seio do movimento “Black Lives Matter” (Vidas Negras Importam) tem sido muito notável, tal como as mobilizações específicas que afirmam que “Black Trans Lives Matter” (Vidas Negras Trans Importam).
O movimento de ajuda mútua, liderado em grande parte por mulheres, opera com base nos princípios de autocuidado para o cuidado mútuo que as feministas, principalmente as novas gerações de feministas, camponesas, indígenas, e outras que se organizam nos seus territórios, valorizaram anteriormente. Promovem princípios conscientes de anti-discriminação e resistência coletiva. No contexto do desafio à institucionalização de setores do movimento, o slogan de "solidariedade e não caridade" é fundamental.
Alguns sindicatos mais novos ou mais radicais intensificaram a sua organização nos setores "essenciais", cuja desvalorização veio à tona durante a pandemia, e recrutaram amplamente, construindo novas estruturas. Algumas pequenas, mas simbólicas, vitórias foram conquistadas no contexto de que, em geral, a classe dominante conseguiu fazer a classe trabalhadora - particularmente as mulheres e pessoas não-brancas - pagar o preço da pandemia. Esta organização também desafia o fato de os partidos tradicionais estarem satisfeitos por darem, aos trabalhadores destes setores feminizados e racializados, gestos vazios de apoio, mas não exigem de forma alguma o apoio material que a sua contribuição para o bem-estar coletivo merece, seja em termos de remuneração ou de condições de trabalho.
3.4 Novos métodos de luta (greve feminista e experiências locais)
A greve feminista surge como o novo método de luta deste ciclo de mobilizações em muitos países, não só pelo seu poder de articulação, mas fundamentalmente pelo que implica questionar e ampliar a greve como instrumento de luta. A greve feminista quebra a divisão entre o produtivo e o reprodutivo, apontando as ligações entre os dois e colocando a ênfase especialmente na esfera reprodutiva como uma estratégia para colocar a vida no centro.
A greve clássica nunca foi desprovida do aspecto reprodutivo: para manter uma greve, são necessárias provisões; numa greve geral insurrecional, é necessário articular mecanismos de abastecimento, de reprodução da vida, e de organizar a vida de outras formas. As lutas prolongadas, tais como a greve dos mineiros britânicos de 1984-5, que também viu a auto-organização das mulheres dessas comunidades para apoiar a greve, revelam em parte muitos destes problemas. Esse potencial da greve para construir um poder alternativo, para constituir uma sociedade paralela com formas de organização dos trabalhadores em todas e em cada uma das esferas da vida, inclui grande parte dessa dimensão de reprodução. No entanto, nunca foi reconhecido como tal.
A greve feminista repensa a greve como uma ferramenta que incorpora não só o que até então era invisível, mas também traz para a mesa o que foi elaborado pelo movimento feminista.
A iniciativa da greve internacional das mulheres em 2017 representou uma nova proposta de articulação internacional, tomando forma na greve maciça de 6 milhões em 2018 no Estado espanhol, greves na Itália, Bélgica e Suíça organizadas pelo movimento de mulheres com sindicatos, na sequência das greves de 2016 na Argentina contra a violência de gênero e na Polônia sobre o direito ao aborto. As mulheres não se organizam em torno da proposta de greve em todos os contextos. Têm expressões organizacionais muito diversas, em alguns países com fortes raízes nas demandas e lutas das comunidades e nacionalidades indígenas.
O que denominamos "as experiências locais" é uma forma de sublinhar como as mulheres se organizam nos seus territórios urbanos e rurais, construindo lutas comuns que são importantes para os processos de resistência contra os ataques aos direitos. Isto cria condições materiais para manter-se vivas, e mesmo para sobreviver à pandemia, uma vez que alguns governos não assumem a responsabilidade pela população mais pobre. Existem diferentes experiências em vários lugares onde as mulheres são as lideranças e protagonistas, principalmente no Sul Global, mas também nas periferias das cidades dos países centrais do capitalismo. É aí que o poder popular emerge através do trabalho comunitário, auto-organizado e solidário, a partir de coletivos de trabalhadoras e trabalhadores que vivem numa situação de precariedade e desemprego, de mulheres e jovens nas periferias, da agricultura camponesa e agroecológica, das escolas públicas, de professoras em luta.
As experiências vividas, sentidas, refletidas e transformadas são encontradas nos mais de 500 anos de resistência à invasão colonial que viola os territórios do planeta e dos nossos corpos dominados. Podem ser encontradas nas sabedorias e culturas ancestrais, nas memórias das sujeitas coletivas em luta. Elas têm um lugar importante na superação de situações-limite. Todas elas são relevantes para a construção de uma outra sociedade: escovando a história à contrapelo, identificando a experiência que importa e fazendo, nestes lugares, a transformação para a vida das mulheres, a partir das mudanças nos territórios onde vivem, onde organizam as suas lutas e a sua resistência. As experiências do lugar mostram a importância do lugar das experiências deste feminismo popular que está se desenvolvendo no mundo e o seu papel atual.
3.5 Novas interpretações teóricas (teoria da reprodução social, ecofeminismo)
As contribuições do ecofeminismo anticapitalista e a economia feminista teorizam como o capital entra em choque com a vida e como, a partir do feminismo, ao reorganizar os tempos e os trabalhos, é possível romper com essa lógica e questionar o sistema (ou o conjunto de sistemas de opressão), propondo outra forma de se relacionar com a natureza e satisfazer as nossas necessidades vitais. Isto rejeita a equação feita pelo ecofeminismo "clássico" ou "essencialista", de que as mulheres têm uma relação especial com a natureza porque dão à luz. A forma como o capitalismo respondeu historicamente à sua necessidade de garantir a sua reprodução como sistema torna as mulheres mais conscientes das necessidades da vida, e dos limites e bases materiais, incluindo os seus territórios.
A teoria da reprodução social se desenvolve neste ponto; a necessidade que tem o capitalismo sobre o trabalho reprodutivo. Desenvolveu-se a partir do trabalho das feministas marxistas sobre o vínculo entre o trabalho não-remunerado na casa, necessário para a reprodução do sistema capitalista e da sociedade, realizado majoritariamente por mulheres, e a posição das mulheres no próprio mercado de trabalho concentrada em setores que refletem o papel das mulheres na família.
A interseccionalidade - como um entendimento de que a experiência de múltiplas opressões não é uma simples soma - também reforçou a nossa análise marxista.
Os debates em torno aos Novos Acordos Verdes, e a necessidade de criar muito mais empregos bem remunerados em todo o setor dos cuidados, se estenderam muito mais entre os círculos de ativistas.
O trabalho, o tempo, o corpo, a terra e a natureza tornam-se assim os elementos centrais das teorias que estão sendo elaboradas atualmente, a partir do que se aprendeu por estar na linha de frente e sofrer ataques neoliberais (precarização da vida, privatização, depredação ambiental) e de um esforço teórico para estender a crítica do capitalismo à acumulação do capital, à dimensão reprodutiva.
4. Qual é a sua importância estratégica?
Nos últimos anos, tem havido uma mudança substancial no papel do movimento internacional de mulheres. Atualmente, já não se pode entendê-lo apenas como uma questão setorial (demandas e propostas que afetam uma parte específica da população), mas que tenta expressar uma certa totalidade. Como feministas e marxistas, precisamos analisar esta mudança, dar-lhe a importância correta e reajustar nossa compreensão estratégico do movimento feminista.
4.1 Liderar a Resistência das Classes Dominadas em seu conjunto
As consequências imediatas do processo de recuperação capitalista da crise de 2007 e 2008 são duas: a generalização e agravamento das condições de vida precárias, afetando cada vez mais pessoas, e em situações mais severas, estreitando a margem entre a precariedade e a exclusão; e a aparição de uma crise de reprodução social nos países do Norte global semelhante à que já existia nos países do Sul, ligada a um fenômeno de "periferia do centro". São as mulheres que têm suportado a crise e teceram as redes de segurança como último recurso, em muitos casos à custa do seu próprio esgotamento e da limitação das suas oportunidades de se desenvolverem como seres plenos e autônomos. É nestas margens, nos espaços ligados à reprodução social e à sustentabilidade cada vez mais precária da vida, que as principais batalhas estão sendo travadas e um novo ciclo de lutas está sendo articulado.
Falamos, portanto, não só do surgimento do movimento feminista, mas também do fenômeno da "feminização do protesto". Em termos gerais, e isto é ainda mais verdade desde o início da pandemia, existem cinco campos em que as mulheres lideram e protagonizam lutas e resistências: pelos serviços públicos (e, na Europa contra o desmantelamento do Estado de bem-estar); por moradia digna; pela soberania alimentar e pelo direito ao território e à água (que se cruzaram nos últimos meses com os novos movimentos por justiça climática e contra o extrativismo); por melhoria das condições de trabalho e a obtenção de direitos naquilo que até agora estava à "margem do mercado de trabalho", mas que na atual fase da crise capitalista está se expandindo e tornando-se cada vez mais comum (setores precarizados, informais, com trabalho a zero hora, desabrigados geograficamente, etc.). Assim como o trabalho reprodutivo e a resistência aos novos neoliberalismos, a luta contra as dívidas ilegítimas, especialmente os microcréditos abusivos, mobilizam as mulheres mais pobres. Contudo, a pandemia colocou barreiras particulares à capacidade de organização das mulheres rurais no Sul global.
As consequências de que isto aconteça junto com a consolidação do movimento feminista como vetor mobilizador fundamental em muitos países, capaz de explodir em momentos de forte refluxo e dissolução de laços sociais com implicações profundamente anticapitalistas, são múltiplas. Uma das principais é que a dinâmica da mobilização permanente e a criação de redes transformaram o feminismo numa escola de educação ativista para muitas mulheres, que rapidamente se politizam e podem intervir em outros campos, gerando referências femininas e mulheres fortes que exercem diversos modelos de liderança. Por outro lado, vale a pena destacar a articulação de reivindicações concretas e lutas que não são estritamente feministas mas muito mais globais: contra as fronteiras como espaços para massacres sistemáticos, contra a destruição de terras pela agricultura industrial, particularmente a pecuária e as multinacionais extrativistas, em defesa das liberdades civis contra governos de extrema direita ou autoritários, de resposta e resistência às políticas de ajustamento estrutural, etc. O programa da greve internacional das mulheres nos diferentes países dá uma boa ideia disto.
4.2 Será que isso nos leva a reconsiderar a nossa compreensão estratégica do papel do movimento feminino?
Concordamos com a intuição, cada vez mais difundida dentro do movimento de mulheres, de que as perspectivas feministas são um ponto de vista privilegiado para analisar as condições de exploração contemporânea. Poderíamos acrescentar que também constituem um ponto de vista privilegiado para experimentar novas formas de organização e luta. O que é certo é que tudo o que foi analisado até agora tem importantes consequências estratégicas. Portanto, argumentamos que as greves feministas e as greves das mulheres podem ser consideradas uma experiência central quando se pensa na organização, não só das mulheres, mas do grosso da classe trabalhadora. E, por outro lado, a forma como se articulam as mobilizações feministas pelo direito ao aborto ou contra o feminicídio e a violência sexista abre todo um campo de confronto direto com o Estado, de classe e as suas instituições: o sistema de justiça, o exército, as autoridades religiosas, etc.
Este processo de democratização do instrumento da greve provavelmente terá consequências a longo prazo: romper com o monopólio das burocracias sindicais sobre a legitimidade de convocar greves. As mobilizações do 8 de Março de 2018, 2019 e 2020 permitiram que uma camada significativa de trabalhadores organizasse uma greve, em muitos casos pela primeira vez nas suas vidas. A auto-confiança, o empoderamento, a experiência acumulada e as redes estabelecidas por milhares de mulheres podem significar um salto qualitativo para toda a classe, que só pode ser avaliado ao longo do tempo. O outro elemento de democratização é a organização de greves em setores tradicionalmente esquecidos pelo sindicalismo tradicional, tais como os cuidados ou o consumo, que no entanto foram importantes no movimento operário do início do século XX: as greves contra o aumento do custo de vida ou dos aluguéis são um bom exemplo. Neste sentido, a democratização da greve permite-nos experimentar este instrumento à margem do mercado de trabalho que mencionamos anteriormente, e reforça a ideia de que estas atividades são também, e acima de tudo, trabalho.
A utilização do instrumento da greve, a centralidade das lutas pela reprodução social, a aspiração de compreender os processos de produção e reprodução como um todo integrado, e o seu funcionamento como um vetor de politização e radicalização das massas, fazem deste novo movimento feminista, em si mesmo, um processo de subjetivação de classe. A uma escala global, o movimento feminista está redefinindo antagonismos e tornando-se uma luta de classes feminista. O potencial das mulheres para desempenhar este papel no momento histórico atual não depende de nenhuma identidade essencial, mas começa com o papel das mulheres no processo de reprodução social, o que faz com que os interesses das mulheres coincidam com os interesses da humanidade, já que elas reivindicam direitos para todas as mulheres e não apenas para uma camada privilegiada.
Isto não significa que, até agora, o feminismo não tenha estado relacionado com a luta de classes, nem que o marxismo e o feminismo tenham se tornado uma coisa só, anulando a autonomia deste último. Pelo contrário, no atual contexto de crise capitalista, as formas historicamente concretas de reprodução do capital contradizem a sustentabilidade social da vida em cada vez mais regiões do mundo e são incompatíveis com as exigências feministas básicas, o que faz com que qualquer consciência feminista acabe por se confrontar com os pilares da acumulação capitalista.
Refletir sobre como o feminismo está permitindo a redescoberta de slogans como a distribuição de trabalhos, desta vez no plural, a redução drástica do tempo de trabalho vinculado à socialização do trabalho reprodutivo, repensar quais são os trabalhos socialmente necessários e quais atividades econômicas que deveriam cessar por serem destrutivas para as pessoas ou para o planeta, etc, é um dos desafios estratégicos do momento. Face à irracionalidade capitalista e ao desperdício de recursos e de energia humana que gera, devemos propor uma reorganização do trabalho numa direção ecossocial e feminista. Esta é uma tarefa fundamental na fase em que nos encontramos. Os processos de acumulação e a crise do governo neoliberal abriram um novo ciclo virulento e, em muitos casos, violento, que busca redefinir os mecanismos de exploração, dominação e opressão. Discutir que a redefinição será fundamental para o seu resultado.
5. Qual é a nossa orientação e as nossas tarefas no âmbito do movimento?
Defendemos a construção de um movimento inclusivo e de massas amplo, e lutamos para preservar a unidade mais ampla possível. No entanto, isto não implica que não lutemos por uma orientação política para o movimento.
5.1 Demandas que abordam as necessidades das mais oprimidas e exploradas, construindo simultaneamente a unidade entre a resistência mais ampla das mulheres contra a direita, o feminismo para os 99% (greves de mulheres, etc.) e as revolucionárias.
Embora as exigências fundamentais dos direitos das mulheres sejam do interesse de todas as mulheres, assegurar que se tornem uma realidade para todas as mulheres significa que devemos prestar atenção às demandas por investimentos e recursos necessários para que se convertam numa realidade, inclusive para as mulheres e LGBTIQ’s mais carentes e marginalizadas. Assim, enquanto lutamos, por exemplo, para obter conquistas legais em relação ao direito ao aborto e contra a esterilização forçada, especialmente de mulheres negras, indígenas e deficientes, ou por justiça para as mulheres vítimas de violência, também temos de lutar por recursos para a saúde, serviços jurídicos e de aconselhamento que ajudem as mulheres e LGBTIQ’s a acessar estas conquistas. Devemos igualmente lutar pelo direito não-discriminatório de acesso a tais serviços, sem discriminação nenhuma contra as mulheres por razões de status legal, recursos, origem étnica ou migrante, sexualidade ou identidade de gênero. Devemos lutar ao lado das mulheres que são vítimas de abuso dos microcréditos e de todas as formas de agiotagem ou usura.
Portanto, lutamos para assegurar que o movimento como um todo defenda as reivindicações provenientes dos grupos mais marginalizados, bem como contra comportamentos discriminatórios dentro do próprio movimento. Apoiamos a auto-organização das populações de mulheres discriminadas como condição para um movimento concreto, unitário e universalista.
Ao mesmo tempo, lutamos para demonstrar na prática que o sistema atual é incapaz de satisfazer realmente as demandas das mulheres, de modo que a organização das mulheres é um processo contínuo de politização e radicalização.
5.2 Ação de massa auto-organizada
Este processo de politização e radicalização é também reforçado pela experiência de auto-organização das bases, seja em bairros, zonas rurais, locais de trabalho ou locais de estudo. Portanto, fazemos fincapé na ação coletiva, organizada pelas partes interessadas.
Quando as campanhas são lançadas por pequenos grupos ou colectivos de mulheres feministas, lutamos para as orientar para a massa de mulheres nos bairros, locais de trabalho, etc, popularizando as demandas através da utilização dos meios adequados para alcançar (folhetos, teatro de rua, “flashmob”, debates abertos, petições, redes sociais) e propor ações (piquetes, manifestações, etc.) que sejam abertas e incentivem a participação de todas as mulheres.
Não apoiamos nem organizamos ações vanguardistas violentas que tendem a excluir e alienar a maioria das mulheres e a impedir a sua participação no movimento de massas, embora também não apoiamos que sejam reprimidas pelo Estado. Quando é necessário o contato com as instituições, lutamos para que os representantes sejam eleitos democraticamente e para que sejam responsabilizados através da apresentação de informes num fórum democrático para as mulheres envolvidas.
A proposta da greve feminista e de mulheres permite uma orientação de ação em massa para alcançar e dialogar com todas as mulheres, aquelas nos locais de trabalho, no setor informal, em casa, tocando todos os aspectos da vida das mulheres no trabalho produtivo e reprodutivo. Fazemos um chamado aos homens para que apoiem a greve das mulheres, assumindo, pelo menos para o 8 de Março, o trabalho invisível de cuidado para que suas companheiras, amigas e colegas não tenham a sua participação limitada em todas as ações planejadas para esse dia. Nos locais de trabalho, isso significa participar na greve para poder fazê-lo. Como marxistas revolucionários, também explicamos, e esperamos mostrar na prática, o peso da ação coletiva nos lugares de trabalho, na luta para construir uma correlação de forças favorável.
5.3 Importância da coordenação internacional
Num mundo em que os nossos oponentes, o sistema capitalista, as crescentes forças autoritárias, de extrema-direita e fundamentalistas, os destruidores climáticos multinacionais estão organizados internacionalmente, o movimento de mulheres deve também construir e reforçar os seus laços internacionais.
A falta de estruturas formais, embora possa ser uma força de um movimento radical, torna a coordenação internacional, que requer dinheiro e recursos, difícil de conseguir, o que requer construir uma verdadeira coordenação internacional entre os movimentos radicais e auto-organizados que se desenvolvem hoje em dia como uma tarefa a ser cumprida. Como corrente internacional, devemos estar na vanguarda da construção de vínculos e da promoção de todas as oportunidades para esta coordenação internacional.
5.4 Articulação com outros movimentos sociais
Não devemos cair na armadilha de fazer um catálogo de movimentos como se o movimento das mulheres estivesse separado e desconectado do movimento dos trabalhadores, do movimento climático, do movimento pela paz, dos processos revolucionários em curso na Argélia e no Sudão, dos movimentos contra o racismo e muitos outros. As mulheres estão na vanguarda destes movimentos e, dentro deles, estão pautando a questão do lugar das mulheres, por exemplo, desafiando a violência sexual utilizada contra as mulheres.
Há uma necessidade no movimento das mulheres, como em todos os outros movimentos, de construir laços entre aqueles que partilham a mesma aspiração: mudar a sociedade de modo a que esta se organize em torno dos interesses de muitos e não de poucos. Isto significa apontar como as mudanças climáticas, como as políticas racistas e migratórias, como as guerras imperialistas, como as políticas de austeridade, como a negação dos direitos democráticos e dos trabalhadores, como a discriminação e a violência contra as pessoas LGBTIQ afetam as mulheres de uma forma específica e particularmente severa, e procurar envolver o movimento de mulheres ou setores dele em suas ações.
Significa também lutar em outros movimentos, em particular no movimento dos trabalhadores organizado e de uma forma diferente no movimento LGBTIQ, para mostrar que as demandas específicas das mulheres são também demandas desses movimentos. Apoiamos a organização autônoma das mulheres (em diversas formas) no âmbito de todas as lutas e organizações sociais, sindicais e políticas como condição para lutas mistas igualitárias.
6. As nossas tarefas internas
O trabalho de libertação das mulheres não é simplesmente um setor de trabalho em si mesmo, mas algo que deve influenciar todas as outras áreas do nosso trabalho e em toda a nossa organização. Deveria haver uma colaboração particularmente estreita com a comissão LGBTIQ, bem como com as comissões antirracista e de ecologia e mudanças climáticas.
Embora possamos afirmar legitimamente ter estado na vanguarda dos marxistas revolucionários ao levar a sério a questão das mulheres - desde a nossa resolução de 1979, as nossas resoluções de 1991, inclusive sobre as mulheres no partido, e as contribuições subsequentes - isto tem sido muitas vezes o resultado de um esforço voluntário de um pequeno número de camaradas.
O nosso trabalho como mulheres deve continuar sendo organizado a nível internacional combinando coordenação regional (continental) com coordenação internacional e um forte vínculo com os organismos de liderança internacional, através da Comissão de Mulheres do CI, seminários regulares de mulheres e outras formas apropriadas. Isto deve refletir o trabalho organizado a nível nacional.
A nossa história tem-nos mostrado que, sem espaços específicos para organizar o trabalho das nossas mulheres, ele tende a diminuir juntamente com a diminuição da força do movimento. O nosso compromisso com a importância da libertação das mulheres num programa para um futuro socialista deve coincidir com o nosso compromisso em continuar com a atividade política e a educação dentro das nossas próprias fileiras sobre esta questão.
24 de fevereiro de 2021.