A história irá nos olhar sem compaixão. Se uma mudança não ocorrer, estaremos nos livros como a geração que não ouviu o que pode ter sido um último sinal de alerta
“Roma, lá fora, é uma cidade muito triste. Noite após noite, o país dorme desolado com a contagem, ainda às centenas, dos mortos, as cenas de terror se repetem nos hospitais”. O comentário é parte de um texto da escritora brasileira, Juliana Monteiro, radicada com sua família na capital italiana. Ela escrevia e descrevia o auge do primeiro confinamento vivido pela Itália, país que foi o primeiro epicentro da pandemia da covid-19 na Europa. “Que triste tantos italianos enterrando seus avós, aqui, onde são tão amados”, constatou, ainda nos primeiros meses de 2020.
O que a escritora de uma sensibilidade ímpar presenciava de seu balcão não era apenas uma impressão da dor que atravessava um continente. Mais de um ano depois daquele primeiro lockdown, dados confirmam o que ela sentia: a pandemia gerou a maior queda de expectativa de vida desde a Segunda Guerra Mundial.
A pesquisa, realizada pela Leverhulme Centre for Demographic Science, de Oxford, analisou dados de mortalidade em 29 países, incluindo Europa, EUA e Chile. Desse total, 27 deles registraram uma queda na expectativa de vida em 2020, numa escala que borrou o progresso objetivo durante anos na questão da mortalidade.
O que esses números revelam, no fundo, é uma enorme transformação na sociedade. Jamais, em épocas de paz, as mortes atingiram tais dimensões em economias ricas. A fome no mundo continua a matar mais que a covid-19. Mas, cinicamente, europeus consideravam essa outra pandemia como um problema distante e que, portanto, não merecia manchetes. E nem uma solução.
O que a pandemia revelou é que nada é inevitável, nem o futuro. Se as mortes atingiram níveis desconhecidos nesses países, algo parecido ocorreu com a taxa de natalidade. Os mais otimistas acreditavam que haveria um aumento de nascimentos nove meses depois do primeiro lockdown. Mas os números revelaram exatamente o oposto. Uma pesquisa na França e Alemanha em meados do ano passado indicou que 50% dos casais adiariam gravidezes.
Nos EUA, os números de queda começaram a aparecer de forma importante a partir de dezembro de 2020, nove meses depois da eclosão da crise. Segundo o CDC, a queda foi de 8% nos nascimentos no último mês do ano passado, uma tendência mantida em janeiro e fevereiro. Na Itália, a queda foi ainda maior, de 21%, contra 20% de redução na Espanha para o mês de dezembro. Já a França teve dezembro e janeiro com índices de natalidade mais baixos em 20 anos.
Não apenas a vida foi suspensa. Alianças foram desfeitas e a quantidade de casamentos que chegaram ao final explodiu. Só no Reino Unido entre julho e outubro de 2020, o escritório de advocacia Stewarts registrou um aumento de 122% em reuniões com indivíduos iniciando consultas sobre possíveis divórcios.
Agora, com as vacinas para uma classe privilegiada, os planos podem voltar a ser feitos. Tanto na Europa como nos EUA, os primeiros sinais literalmente de vida também começam a aparecer, com a volta de casais em busca de filhos. Ou pelo menos voltando a falar sobre o assunto. O Instituto Max Planck de Pesquisa Demográfica na Alemanha constata, por exemplo, que a busca no Google por termos relativos à gravidez deu um salto nas últimas semanas.
Mas para milhões de famílias mais pobres ou em luto, o futuro terá de ser reinventado. Mesmo na rica Europa, a era pós-pandemia também aponta que ninguém sairá ileso. Nas clínicas e hospitais, a onda de pacientes de covid-19 começa a ser substituída por outra: a de pessoas com sinais de depressão, stress e casos psiquiátricos.
Perguntas existenciais também ecoam pelas estruturas do poder nos corredores das grandes capitais. Como, apesar de toda nossa tecnologia e peso econômico, permitimos que tantos mortos se acumulassem? E o que garante a soberania: respiradores ou helicópteros militares de última geração? Até que ponto podemos comemorar um dia da independência e aplaudir um desfile militar enquanto nosso sistema de saúde não atende sua própria população?
O futuro também exigirá lidar com um prejuízo de 13 trilhões de dólares deixado pela pandemia. Mas de quem cobrar quando a obscenidade da desigualdade foi escancarada?
Nas entidades internacionais, os cálculos confirmam que a crise sanitária abalou 30 anos de progresso no índice de desenvolvimento humanos e que o planeta contará, ao final do ano, com um exército de 318 milhões de novos miseráveis.
Quem tinha oxigênio conseguiu evitar um colapso social. A UE, por exemplo, destinou 2,3 trilhões de euros em medidas de apoio para garantir a liquidez das economias. Isso impediu uma onda de falências e, de fato, os números de empresas fechadas foi o menor desde 1999. De acordo com a UE, sem esse dinheiro, 25% de todas as empresas do bloco teriam fechado suas portas ao final de 2020, após exaurir seus caixas.
Mas essa aparente estabilidade pode não durar. No mercado, o temor é de que “empresas zombis” - que de fato não tinham mais atividade - comecem a fechar. “Muitas insolvências foram adiadas, e não impedidas”, alertou a francesa Coface SA, uma empresa de seguro de crédito.
A tendência de austeridade deve marcar também outros setores. Das 1.600 discotecas existentes na França, 100 nunca voltarão a abrir suas portas, com milhares de postos de trabalho fechados. E milhares de beijos que talvez nunca ocorram.
Se há uma lição que a pandemia deixa ao mundo é de que o modelo está esgotado, inclusive moralmente. Ou como explicar que, em plena pandemia, bilionários façam viagens pornográficas ao espaço? Há algo de podre quando países ricos começam a pensar em jogar fora 100 milhões de vacinas que vencerão em dezembro, enquanto os pobres não sabem nem sequer quando vão receber a primeira dose.
Numa catástrofe ética, o planeta recupera sua lógica colonial mais crua. Desta vez com vacinas. Fábricas de imunizantes na África passaram meses sendo obrigadas a fornecer doses para os países ricos, enquanto a população do continente implorava por doses.
Mais de seis meses após o início da vacinação, economias ricas tinham obtido 61 vezes mais doses que os países mais pobres. Neste mês, 300 milhões de vacinas estarão sentadas em depósitos na Europa e EUA, sem saber como serão usadas.
Alguns deixarão explícita a indignação diante dessa realidade. Outros guardarão segredos impublicáveis sobre a crise que definiu uma geração. Um grupo ainda lutará para impedir a ruptura de um status quo que os garante fortunas e privilégios.
Mas, para todos, a era do mundo infinito acabou de vez. O futuro que muitos imaginavam que existia se provou insustentável, insuficiente e intolerável.
A história irá nos olhar sem compaixão. Se uma mudança não ocorrer, estaremos nos livros como a geração que não ouviu – ou optou por ignorar - o que pode ter sido o último sinal de alerta antes de uma crise climática e social de proporções inéditas.
Nosso único presente é a reinvenção do futuro. Retornar ao passado é suicida. Num planeta mais quente, mais improvável, mais hostil e mais desigual, reimaginar o que será da sociedade e da coexistência não é uma opção. Mas um ato de sobrevivência.