Julia Almeida V. da Silva, 20 de outubro de 2023. Le Monde Diplomatique.
Candidatura à Presidência argentina representa uma faceta importante da extrema direita sul-americana e tem como um de seus pilares movimentos de cunho neoconservador e autoritário
O primeiro turno das eleições na Argentina acontecerá no próximo domingo, dia 22 de outubro. O candidato de extrema direita Javier Milei, que saiu vitorioso do PASO (prévias Argentinas realizada em agosto) com 32,5% dos votos, segue liderando as pesquisas de intenções de voto. Sua campanha aposta na mobilização social da juventude (em especial homens) e, sob o slogan “Viva la liberdad, carajo!”, apresenta um programa neoliberal radical, que inclui adoção do dólar como moeda nacional e o fim do Banco Central argentino. Além disso, conta como um discurso centrado na antipolítica, com ênfase na ideia de que os responsáveis pelos problemas que enfrenta a população argentina são os políticos, a “casta”, “os mesmos de sempre”, como ele exalta.
Javier Milei em campanha para a presidência argentina na cidade de Moreno (Reprodução/Instagram/@javiermilei)
Javier Milei em campanha para a presidência argentina na cidade de Moreno (Reprodução/Instagram/@javiermilei)
Alguns dos principais tabloides do mundo têm definido Milei como um libertário ou liberal radical, que não faria parte das expressões da extrema direita mundial, mas que estaria dentro da agenda de um liberal ou neoliberal. Essa caracterização tem como argumento central o suposto fato de a campanha pública do candidato não ter como principais componentes pautas da agenda neoconservadora (antifeminismo, anti-LGBTQI+, racismo, política do ódio, relação com setores armados e incentivo ao armamento, dentre outros) que define de forma bastante marcada outros fenômenos da extrema direita mundial.
O que vamos apresentar neste artigo é o oposto. Ao nosso ver, a candidatura de Javier Milei e Victoria Villarruel (Coligação A Liberdade Avança) representa uma faceta importante da extrema direita sul-americana e, como tal, tem como um de seus pilares movimentos de cunho neoconservador e autoritário.
O CONTEXTO DAS ELEIÇÕES ARGENTINAS
A conjuntura em que ocorrem as eleições argentinas é de crise econômica e social. A desvalorização do peso, a hiperinflação, o endividamento externo e o aumento da pobreza e da precarização do trabalho formam o pano de fundo das eleições.
Essa situação é intensamente associada, pelas forças políticas de direita, ao governo de Alberto Fernandez (que busca eleger seu sucessor pela coligação União pela Pátria) e, de forma mais ampla, ao peronismo e aos movimentos populares em geral [1].
Além do contexto de crise, outro elemento relevante da conjuntura política que marcou os últimos anos na Argentina é a conquista da legalização do aborto em 2020, que contou com importante mobilização de mulheres e do movimento feminista no país, mas que teve, por outro lado, intensa resistência e articulação conservadora contrária à pauta (com apoio inclusive da igreja católica que agora faz oposição a Milei).
Esses dois elementos conjunturais associam-se à um terceiro, que é o aumento da violência política nas ruas (vide o atentado contra Cristina Kirchner em 2022) e nas redes sociais. É nas redes, inclusive, que Milei tem grande vantagem e foca parte importante de sua atuação, como boa parte de candidaturas e figuras da extrema direita mundial.
Ou seja, ao nosso ver, a crise econômica e sua vinculação ao governo Fernandez, a intensificação de debates sobre a chamada “agenda de costumes”, representada principalmente, pelos conflitos em torno da legalização do aborto, e o aumento da violência política são elementos centrais para compreender as eleições argentinas e o ascenso da extrema direita.
A ANTIPOLÍTICA
Na Argentina, é possível determinar que o tecido social autoritário próprio também foi essencial para a possibilidade do avanço de Milei.
As condições para o crescimento da extrema direita já existiam antes da própria candidatura se expressar. Isso é o que demonstram importantes pesquisas do Laboratório de Estudos sobre Democracia e Autoritarismos (LEDA), ligado à Universidade Nacional de San Martín (Unsam) e que tem como diretor o professor Ezequiel Ipa. Os resultados dos levantamentos realizados indicam que os efeitos da crise econômica têm sido relacionados – por parte expressiva da população – à manutenção de uma casta política, associações já observadas em pesquisas qualificadas em 2021. Essa forma de compreender as causas da crise econômica associa-se à rejeição de segmentos da população (em especial os mais jovens) às políticas restritivas, ligadas ao combate à pandemia de Covid-19.
Outro dado bastante relevante das pesquisas feitas é o crescimento no seio da sociedade argentina, apontado pelo Projeto de Pesquisa Plurianual (PIP-CONICET), de uma leitura que enxerga justiça social como privilégio a um determinado grupo, que suga os recursos estatais, revelando um enfraquecimento social de um paradigma de solidariedade. Por isso, quando Milei diz que a Justiça Social é um roubo, ele encontra eco em uma geração, em especial entre jovens, que rechaça políticas de seguridade social por as associarem à injustiça social.
Isto é, as pesquisas indicam que a noção de que os políticos e as políticas públicas são problemas e não expressões das escolhas democráticas estava se criando há algum tempo.
A AGENDA ECONÔMICA E SOCIAL NEOLIBERAL RADICAL – UMA CHAVE DE LEITURA DO IMPERIALISMO
Embora o papel e a profundidade da agenda econômica se alterem no mundo em relação a fenômenos de extrema direita, a depender da formação social e econômica de cada Estado e de sua respectiva posição na economia mundial, a agenda neoliberal (marcada de forma geral por ajuste fiscal, privatização, desregulamentação das relações de trabalho) tem sido o principal programa econômico da extrema direita em países periféricos e dependentes.
Milei não foge à regra, propõe dolarizar a economia, acabar com a moeda argentina e com o Banco Central; propõe, também, um Estado mínimo, com mudanças importantes nas políticas de seguridade social, defende a existência de apenas oito ministérios, a privatização da saúde e educação (lembrando que na Argentina a universidades são completamente públicas e universais) e, até mesmo, o comércio de órgãos humanos.
É verdade que a defesa de uma agenda neoliberal não é monopólio apenas da extrema direita, podendo ter candidaturas e partidos liberais que também o fazem. No entanto, na América Latina ao menos, o setor que vem radicalizando e tomando a direção política dessa agenda econômica nos últimos anos é a extrema direita.
É esse setor político e social que tem conduzido a apropriação completa do Estado por setores da burguesia. O exemplo mais notório é o caso brasileiro, quando Bolsonaro foi presidente. Se é verdade que poucos governos em países latino americanos realizaram grandes enfrentamentos aos interesses dos países centrais do capitalismo (salvo raras exceções), a extrema direita latino-americana do século XXI tem defendido (e operado) a destruição completa de qualquer mediação a tal dinâmica. Não à toa, defende de forma inabalável parte de setores e políticas agroexportadoras e favorecimento do capital financeiro e transnacional.
O LUGAR DA IGREJA E DA RELIGIOSIDADE
Embora não haja contornos religiosos diretos na atuação de Milei e, em verdade, a Igreja Católica argentina tenha resistências à sua candidatura (setores importantes dela chegam a fazer oposição pública ao candidato que ridicularizou o Papa Francisco), há uma relação com a expressão cultural da agenda católica e a construção de organicidade de uma agenda neoconservadora na Argentina.
A Igreja Católica foi uma importante articuladora dos movimentos contrários à legalização do aborto na Argentina, contribuindo para a construção de novas entidades e grupos conservadores que também ganharam força nas últimas décadas, mas que foram se desvinculando de uma relação direta com a religião [2].
Nesse aspecto, o caso argentino apresenta diferenças com o que é observado no Brasil. O neoconservadorismo brasileiro tem, entre seus pilares, as igrejas evangélicas e o neopentecostalismo. Esse não é o caso dos argentinos que não registram crescimento significativo de igrejas e adeptos dessa matriz religiosa.
A RELAÇÃO COM SETORES ARMADOS, A AGENDA NEGACIONISTA E PUNITIVISTA
Uma pergunta muito importante e ainda com poucos elementos para resposta é a relação da candidatura de Milei e Villarruel com a questão da memória, verdade e justiça e com setores militares ou policiais. A candidata à vice-presidente, Victoria Villarruel, vem cumprindo um papel mais evidente do que seria uma extrema direita clássica, com postagens racistas (reivindicando, por exemplo, a ancestralidade europeia como centro para a identidade do povo argentino) e encabeçando um movimento negacionista em relação aos números da ditadura argentina. Segundo a candidata, os militares argentinos teriam operado a morte e desaparecimento de “apenas” 8 mil pessoas (a Associação Civil Avós da Praça de Maio defende que foram ao menos 30 mil pessoas assassinadas ou desaparecidas); é esse, inclusive, o número que Milei cita em posicionamentos públicos sobre o tema. Vale observar ainda que Villarruel é de família de militares.
Essa agenda irrompe uma cadeia importante de acúmulos da sociedade argentina acerca do tema, ameaçando consensos e avanços dos movimentos de direitos humanos e de vítimas e familiares. A perspectiva negacionista e revisionista é preocupante em relação a mudanças possíveis num eventual governo de Milei e Villarruel. O ministro da Defesa e Segurança será indicado por Villarruel, que pode colocar um militar na pasta. Ela já mencionou, inclusive, a necessidade de valorização do papel das Forças Armadas em seu governo.
Ademais, a política punitivista de aumento da repressão e penas para crimes comuns e de legalização do porte de armas para civis na Argentina faz parte da agenda dessa candidatura, indo ao encontro do que ocorreu no Brasil no governo Bolsonaro e nos Estados Unidos com Trump.
A REINVINDICAÇÃO DE UM TIPO DE LIBERDADE AUTORITÁRIA COMO CENTRAL
“La libertad, carajo!”, clama Javier Milei em seus discursos. Não é nova a estratégia de apropriação da insígnia da liberdade pela extrema direita, em verdade o fascismo e o nazismo ganharam apoio de massa também, porque se apropriaram dessa bandeira. A extrema direita tem enorme adesão a uma determinada compreensão autoritária de liberdade, assentada no ultraindividualismo e na acepção de que a liberdade fundamental é aquela que permite que busquemos, sozinhos, as possibilidades da nossa defesa, sobrevivência, proteção e, claro, do nosso sucesso. Não há solidariedade, não há comunidade, não há responsabilidade nem do Estado, nem dos indivíduos uns com os outros.
Esse discurso autoritário, camuflado de libertário, é o núcleo duro do que está conquistando o eleitorado argentino.
O TEMA DE PRESERVAÇÃO DA FAMÍLIA, DAS AGENDAS DE GÊNERO E SEXUALIDADE
A campanha de Milei aborda as questões centrais da pauta de gênero, sexualidade e núcleo familiar.
Além da relação específica com a promessa de revogação da legalização do aborto, ele também defende que a educação sexual integral realizada nas escolas e a política de diversidade sexual (com tolerância para as identidades de gêneros e orientações sexuais) “deforma a cabeça das crianças” e visa destruir um componente essencial da sociedade, “a família”.
Ou seja, Milei mesmo não sendo casado e não tendo filhos, entende que a defesa das pautas conservadoras ligadas à família, sexualidade e gênero tem adesão de parte significativa do eleitorado.
A QUESTÃO DA IDENTIDADE NACIONAL E A PAUTA RACIAL E XENÓFOBA
Pesquisas do LEDA já haviam assinalado em 2020 que a xenofobia é uma questão social importante na Argentina. A sensação de que os imigrantes, em especial vindo de outros países latino americanos, queriam se aproveitar de benefícios econômicos do povo argentino e de que eles não contribuem para a construção do país, é uma dessas expressões.
Villarruel tem organizado essa pauta com postagens e declarações racistas (reivindicando uma eventual ancestralidade europeia como central para a identidade do povo argentino). A negação de negros e negras, bem como de indígenas na formação da identidade nacional argentina tem direta relação com um racismo velado e um nacionalismo que reivindica a própria colonização como um marco fundador da sua identidade. Essa perspectiva de uma supremacia racial branca e europeia encarnam em Milei perfeitamente. Sua campanha exala essa construção do protagonismo do homem branco.
O NEGACIONISMO DA CRISE AMBIENTAL E O AVANÇO DA EXPLORAÇÃO DA NATUREZA
Como boa parte dos países dependentes e periféricos, a Argentina tem tido disputas importantes nos setores de exploração dos recursos naturais e de terras, em especial com indígenas que estão em luta para demarcação de territórios, como prevê a Constituição. A Argentina tem importante relação com a mineração de recursos estratégicos e a agropecuária. Trata-se, por exemplo, do maior exportador e o terceiro maior produtor mundial de produtos derivados da soja e o quarto maior produtor de lítio no mundo.
Milei utiliza como símbolo de campanha uma motosserra, para dizer que irá devastar a casta política do país. No entanto, a escolha da ferramenta não poderia ser mais simbólica: assim como os gestos da arminha de Bolsonaro, a motosserra tem uma representação ideológica importante de devastação ambiental. Milei, inclusive, já disse que não irá respeitar a Agenda 2030 e o Acordo de Paris e chegou a apontar que a ecologia é parte de uma “agenda pós marxista” e que visa a eliminação da própria população para a proteção do planeta.
A ARTICULAÇÃO COM MOVIMENTOS DE EXTREMA DIREITA MUNDIAL
Milei tem um peso significativo entre os mais jovens, dialogando com novas estruturas de comunicação, com peso importante, em especial, no Tik Tok. Ademais, Milei faz parte da rede de movimentos de extrema direita que utiliza as redes sociais dentro de uma estratégia sofisticada e aperfeiçoada, em especial desde as eleições de 2016 nos Estados Unidos, em que o esquema com a Cambridge Analytic foi explicitado. A família Bolsonaro soube operar essa rede no Brasil, que rivaliza com a máquina clássica da imprensa. Não à toa, foi nas redes sociais que, no dia 17 de outubro, Bolsonaro fez vídeo apoiando Milei e pedindo voto para ele, afirmando presença numa eventual posse (ressalta-se que essa aproximação já vinha sendo construída por Eduardo Bolsonaro). A relação de Milei com a extrema direita espanhola, através do Vox, também é evidente e pública.
A DISPUTA DO PRÓXIMO DIA 22
Por todos esses pontos, podemos apontar que é evidente a articulação de Milei com a extrema direita mundial. A sua popularidade tem relação exatamente com essa capacidade de articular propostas econômicas claras (mesmo que absurdas) para uma suposta saída para grave crise econômica, com a mobilização desse caldo conservador que nunca deixou de existir na Argentina, mas que vem ganhando diferentes contornos e intensidade nesse novo momento mundial.
O primeiro turno das eleições ocorrerá neste domingo e pode estabelecer um vencedor definitivo. Na Argentina, o primeiro candidato encerra as eleições já no primeiro turno se obtiver mais de 45% dos votos válidos ou mais de 40% se houver diferença de 10% para o segundo colocado. Não é o cenário mais provável, mas não é impossível e a campanha de Milei tem utilizado essa agitação para a mobilização final de sua candidatura.
O resultado das urnas, numa eventual vitória de Milei em primeiro ou segundo turno, será determinante para a disputa política também na América Latina, em especial após a vitória do bilionário Daniel Noboa no Equador em 15 de outubro e da grande possibilidade de Trump ser eleito no próximo ano nos Estados Unidos, o que alteraria as disputas no continente. Para a extrema direita brasileira, Milei representaria a vitória no país vizinho e bastante relevante do projeto derrotado nas urnas nas eleições de 2022, e abriria uma nova disputa no bloco. Mas, sobretudo, para os argentinos, as lutas e disputas que se abrirão com uma eventual eleição de Milei serão as mais importantes desde o fim da ditadura civil-militar.
Julia Almeida V. da Silva é pesquisadora e encontra-se atualmente na Argentina realizando trabalho de campo sobre as eleições. É autora do livro A militarização da política no Brasil Contemporâneo (Ed. Alameda, 2023), dourada em Direito pela USP, mestre em direito pela UFRJ, pesquisadora do DHCTEM/USP e NEV/USP e professora na Anhembi Morumbi/SP.
[1] Nesse sentido, acerca dos equívocos e encruzilhadas da esquerda na Argentina, ver https://jacobinlat.com/2023/09/23/la-izquierda-esta-subestimando-el-peligro-de-la-extrema-derecha/.
[2] Jorgelina Loza y Magdalena López. Representaciones y repertorios de expresiones conservadoras organizadas contra el aborto en Argentina (2018-2020). En Derechos en riesgo en América Latina: 11 estudios sobre grupos neoconservadores. Buenos Aires: Fundación Rosa Luxemburg y Ediciones desde abajo,2020.