Empresa se comprometeu a não ter clientes desmatadores, mas relato de caminhoneiro revela que o serviço de transporte da JBS transferiu animais de uma fazenda com multa de R$ 2,2 milhões do Ibama para outra sem problemas ambientais, fornecedora dos frigoríficos. Prática é conhecida como ‘triangulação de gado’.
André Campos, Piero Locatelli, Andrew Wasley, Alexandra Heal e Dom Phillips, Repórter Brasil, 27 de julho de 2020
Uma fazenda no Mato Grosso, multada em R$ 2,2 milhões pelo Ibama por desmatamento ilegal, teria usado os serviços de transporte da JBS para transferir gado para outra propriedade ‘ficha-limpa’, que depois abastecia os frigoríficos da empresa — prática que é conhecida como ‘triangulação do gado’. Uma investigação conjunta da Repórter Brasil, do The Bureau of Investigative Journalism e do jornal britânico The Guardian encontrou evidências de que os bovinos criados na fazenda com área embargada, onde a pecuária não é permitida, tiveram como destino outra propriedade do mesmo dono, que por sua vez vendeu gado a dois abatedouros da JBS.
Maior produtora de proteína animal do mundo, a JBS assumiu há mais de dez anos o compromisso de erradicar o desmatamento em toda sua cadeia de fornecimento na Amazônia. A empresa afirma adotar essa política para todas as pastagens que fornecem gado diretamente aos seus frigoríficos. Ao mesmo tempo, alega não ter acesso a informações adequadas para rastrear as propriedades que transferem gado aos seus fornecedores diretos (os chamados fornecedores indiretos).
No entanto, em alguns casos os próprios caminhões da JBS realizam o transporte dos animais entre estas fazendas. O episódio apurado pela reportagem mostra evidências de que a empresa transportou, dessa forma, bois oriundos de propriedade com registro de desmatamento ilegal. Procurada, a JBS afirmou que suas atividades de transporte seguem a política de sustentabilidade da empresa, compromisso que inclui não adquirir animais vindos de fazendas com áreas embargadas pelo Ibama por conta do desmatamento. “A empresa esclarece que o serviço de logística e transporte fornecido e executado, de forma independente, deve atender às mesmas políticas de sustentabilidade da empresa, incluindo o bloqueio das fazendas que não estejam em conformidade com essas políticas”, informou a empresa. Veja aqui a íntegra da resposta.
“A JBS não pode continuar se escondendo atrás da desculpa de que as informações de seus fornecedores indiretos não estão disponíveis ou são muito complexas”, diz Richard Pearshouse, diretor de Crises e Meio Ambiente da Anistia Internacional. “Essa nova investigação mostra que a JBS conhece alguns de seus fornecedores indiretos — seus próprios caminhões estão visitando essas fazendas para transportar gado. A JBS está ciente desses problemas desde pelo menos 2009, mas ainda não possui um sistema eficaz para impedir que o gado de pasto ilegal entre em sua cadeia produtiva”, lamenta.
A falta de monitoramento dos fornecedores indiretos é um dos principais obstáculos para combater o desmatamento na pecuária amazônica. Desde 2009, a JBS assumiu o compromisso de criar mecanismos para rastrear estas fazendas, mas afirma que ainda não obteve sucesso em implementar sistemas de rastreabilidade.
O caso vem à tona no momento em que a JBS expande e anuncia a modernização das suas atividades logísticas. A empresa tem intensificado o transporte de “gado magro”, como é chamado o animal que é levado de uma fazenda para a outra com o fim de engordar antes de ser vendido aos frigoríficos. Neste mês, a JBS Transportadora, braço logístico da empresa, também lançou o aplicativo Uboi, serviço em que os pecuaristas poderão pedir pelo celular o transporte de gado feito pela JBS.
“Não dá para dizer que eles foram omissos, porque a integração de dados entre diferentes partes da empresa não é automática. Mas, tendo essa nova ferramenta em mãos [a Uboi], a JBS está muito mais perto de enxergar a cadeia produtiva como um todo. Eles têm uma grande oportunidade para fazer uma grande diferença no mercado”, diz Mauro Amerlin, diretor executivo da Amigos da Terra, organização que coordena grupos de trabalho sobre os fornecedores indiretos junto às empresas.
Da área desmatada ao frigorífico
A fazenda onde ocorreu o desmatamento é de propriedade de membros da família Rodrigues da Cunha. Em seu site, o patriarca da família, Antônio Ronaldo Rodrigues da Cunha, se descreve como “dono de um dos maiores rebanhos comerciais do Brasil, com 102 mil cabeças distribuídas em onze fazendas próprias e sete arrendadas no Mato Grosso”.
Além de vender gado diretamente para os frigoríficos, a família também faz melhoramento genético de animais e a sua venda em leilões. A família é a quarta maior vendedora de touros do país, de acordo com ranking feito pela imprensa especializada do setor. O último grande leilão realizado pela empresa, em 2019, contou com o patrocínio da própria JBS e alegou ter angariado mais de R$ 10 milhões
O gado teve origem em uma das propriedades da família, a fazenda Estrela do Aripuanã, na cidade de Aripuanã (MT). Em 2012, a fazenda recebeu uma multa de R$ 2,2 milhões do Ibama pelo desmatamento ilegal de 1,5 mil hectares — área equivalente ao tamanho da cidade de São Caetano do Sul, na região metropolitana de São Paulo. O embargo abrange 39% da área da fazenda.
A Repórter Brasil apurou que, entre junho de 2018 e julho de 2019, o pecuarista Ronaldo Venceslau Rodrigues da Cunha encaminhou milhares de animais desta fazenda desmatada para outra propriedade sua em Brasnorte (MT), a Fazenda Estrela do Sangue. Desta segunda fazenda, onde não há pendências ambientais, foram feitas vendas para duas unidades da JBS, em Juína (MT) e Juara (MT). Com essa transferência entre propriedades, os animais criados em área desmatada poderiam ser vendidos aos abatedouros sem mostrar sua origem.
Uma postagem de Facebook feita por um motorista da JBS Transportadora evidencia que a empresa foi responsável, ao menos em um caso, pelo transporte dos animais entre as duas fazendas. Na postagem, o funcionário da empresa divulgou fotos de caminhões com o logotipo da JBS, fez um “check in” na fazenda onde aconteceu o desmatamento ilegal e afirmou que estava transportando gado entre as duas fazendas, citando-as nominalmente.
A propriedade também teve focos de queimada em 2018 e 2019, segundo dados de satélite da NASA. Segundo a Secretaria do Meio Ambiente do Mato Grosso, não havia qualquer autorização para que a queimada fosse realizada dentro da área da fazenda.
Procurada, a JBS afirma que a transação de gado foi feita dentro da legalidade e que chegou a investigar o caso de Ronaldo Cunha. “Confirmamos que nossas investigações estão relacionadas à Fazenda Estrela do Aripuanã. Enquanto o CPF do proprietário (Ronaldo Venceslau Rodrigues da Cunha) aparece na lista de áreas embargadas do Ibama, a lista do Ibama fornece as coordenadas geográficas da propriedade embargada. As coordenadas do Ibama fornecidas não se relacionam à fazenda onde a JBS coletou os animais (ou seja, Aripuanã)”, afirma em nota enviada ao The Guardian.
Ao contrário do que afirma a JBS, a base de dados do Ibama mostra que existe um embargo ambiental decorrente do desmatamento dentro da área da Fazenda Estrela do Aripuanã. A área coincide com parte da propriedade declarada pelo fazendeiro no Cadastro Ambiental Rural com o mesmo nome. A postagem do motorista e placa da fazenda que aparecem em sua foto também utilizam o mesmo nome que consta no embargo.
A reportagem tentou contato com os fazendeiros através da Agropecuária Rodrigues da Cunha, empresa de posse da família, mas eles não responderam aos diversos e-mails da Repórter Brasil pedindo esclarecimentos sobre o caso.
JBS está expandindo transporte de ‘gado magro’
A JBS tem expandido as suas atividade de transporte para além do carregamento de animais de uma fazenda para os seus frigoríficos. Recentemente, a sua transportadora tem atuado cada vez mais no transporte de gado entre fazendas — uma forma de aproveitar seus caminhões vazios na volta dos frigoríficos.
A atividade de transporte da JBS não se restringe somente aos fornecedores da empresa. Um executivo da companhia afirmou que a empresa faz o transporte “do que o produtor precisar”, em entrevista ao Giro do Boi, programa do Canal Rural no último dia 17 de julho. “Para qualquer tipo de transporte de gado vivo, eles podem contar com essa solução.”
Até junho deste ano, a demanda dos fazendeiros pelo transporte dos bovinos eram feitos por e-mail ou telefone. No último mês, a empresa lançou um aplicativo para celular onde os produtores podem fazer os pedidos de carregamento de maneira automatizada.
Batizado de Uboi, o aplicativo funciona de maneira semelhante aos de transporte urbano. Ele permite o planejamento de carregamento do gado seja agendado, traz o histórico das movimentações e permite avaliar em detalhes os serviços dos motoristas. Segundo a JBS, a operação deve contar com 600 caminhões próprios e 3 mil de parceiros.
Com a Uboi, a JBS deve ter uma base de dados ampla sobre o transporte do gado, com informações detalhadas de produtores, das fazendas, do transporte entre elas e também dos fornecedores indiretos.
Adriana Charoux, da campanha de Amazônia do Greenpeace, afirma que o sistema é uma rica fonte de informação rica para compreender o funcionamento dos fornecedores da empresa, e sua logística deveria ser usada na prevenção ao desmatamento.
“Uma vez que a empresa se diz comprometida em tirar o desmatamento de sua cadeia produtiva, subentende-se que eles vão lançar mão de todas as ferramentas para reduzir ao mínimo o risco”, diz Charoux. “É verdade que o pleno controle das cadeias passa por questões de políticas, mas também é verdade que a JBS tem meios técnicos de sanar esse problema.”
Questionada, a JBS informou à Repórter Brasil que as suas atividades de logística e de transporte seguem as mesmas políticas de sustentabilidade da empresa. Segundo a empresa, o aplicativo utiliza a base de consulta das listas públicas de áreas embargadas do Ibama, histórico de casos de trabalho escravo e também o CAR (Cadastro Ambiental Rural), no caso de áreas que ficam na Amazônia.
Diretor executivo da Amigos da Terra, Mauro Amerlin afirma que as políticas anunciadas para o Uboi não são suficientes. “A minha expectativa seria eles irem além, e não continuar a fazer exatamente o que eles já estavam fazendo”, diz Amerlin. “Se for exatamente o mesmo, não vai funcionar. O que vai mudar nos problemas que já acontecem hoje em dia? Não vai mudar nada.”