Jesús Martín-Barbero nos ensinou, com "Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia", uma forma de mover nossa mente, uma forma de pensar comprometida com as derivas imprevisíveis e sempre contingentes da realidade que se busca apreender, antes do que com o objeto empírico que nos foi atribuído pela compartimentação epistemológica moderna.
Verónica Tobeña, Clarín-Revista Ñ, 20 de junho de 2021. A tradução é do Cepat.
No dia 12 de junho, aos 83 anos, faleceu Jesús Martín-Barbero, em Cali, Colômbia. Foi uma referência no campo da comunicação e um analista da cultura de importância mundial. Filósofo, semiólogo e antropólogo, nasceu em 1937, em Ávila, Espanha. Desde 1963, estabeleceu-se em Cali, onde fundou a Faculdade de Comunicação Social, na Universidade del Valle.
Ainda posso evocar a sensação física com que experimentei o clique mental suscitado pela provocação que fez aos que assistiram a conferência magistral oferecida no auditório da OEI, da Cidade de Buenos Aires, em 2015. Mediando o seu discurso, com a eloquência e a simplicidade comuns nas mentes brilhantes, Jesús Martín-Barbero lançou:
“Bem-vindos ao caos! Bem-vindos de volta ao caos! Vocês acreditam que estamos condenados ao progresso e que o progresso está sempre à frente? Não percebem que o progresso é a ideia da providência, camuflada em uma retórica laica e cientificista? Acreditam que a realidade é capturada dissecando-a, atribuindo a cada disciplina sua parte e reconstruindo, em seguida, o todo como um quebra-cabeças? A realidade está entrelaçada e suas lógicas não estão subordinadas às da racionalidade moderna. Por isso, bem-vindos de volta ao caos. Abracem o caos, não busquem neutralizar a diversidade, porque essa é a natureza do mundo e só poderemos apreendê-la com um pensamento holístico, com lentes todo-o-terreno, ou seja, a partir da multidisciplinaridade”.
Martín-Barbero é um farol para quem se formou no campo da Comunicação Social e nos convoca à reflexão sobre as identidades culturais. Quando eu estava no curso, nos anos 1990, a Comunicação como campo de estudo costumava ser desprezada pelos colegas de outras ciências sociais por carecer de objeto: “a comunicação não é uma disciplina”, proferiam alguns. Ou, “ah, como você não sabia o que estudar, inscreveu-se em comunicação”, afirmavam outros, com falta de apreço.
A leitura de Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia (1987) chegou, em seguida, para elevar minha autoestima e me oferecer um ângulo para olhar o problema que transformava a suposta fraqueza de meu campo de estudo em uma virtude. Esse livro me permitiu deixar de me pensar como órfã de disciplina para abraçar uma perspectiva de pensamento livre dos espartilhos que delimitam o conhecimento e desobediente aos vistos impostos por aqueles que cercam os saberes.
Porque o que este mestre nos ensinou com essa obra é uma forma de mover nossa mente, uma forma de pensar comprometida com as derivas imprevisíveis e sempre contingentes da realidade que se busca apreender, antes do que com o objeto empírico que nos foi atribuído pela compartimentação epistemológica moderna. Por isso, Dos meios às mediações.
Esse livro dizia a nós, comunicólogos, que nosso objeto não se esgotava nos meios, que nossa análise não deveria se restringir aos sinais puros e duros, mas deveria abarcar a matéria significante mais sutil que medeia toda a comunicação. Dizia-nos que era necessário analisar o fato comunicativo à luz das condições envolvidas na codificação e na decodificação. A lição mais contundente que nele o autor nos dava é que no estudo dos meios não se encerra a missão das ciências da comunicação, que a análise de suas mensagens não proporciona em si a chave dos ecos que têm em seus destinatários.
Para sair desta leitura determinista dos meios, Martín-Barbero acentuou a importância da pertença cultural como mediação chave para a recepção/interpretação do mundo e, consequentemente, contribuiu para potencializar uma nova maneira de olhar para os meios e, com isso, uma estratégia para manter vinculado o estudo da comunicação em sua intersecção com a cultura.
Barbero soube enquadrar a educação sob o influxo dessa lente e, pensando no fato pedagógico, o perímetro desse campo de estudo ficou delimitado pela cultura escolar em seu encontro com as culturas das infâncias e as juventudes, e o marco contemporâneo que se torna o chão para esse vínculo.
Não falto à verdade quando afirmo que minha linha de pesquisa, agora que meu objeto de reflexão é a educação, segue devedora de sua influência. Ainda que a psicanálise se empenhe em subscrever o contrário, meu instinto não foi o do parricídio. Não pude matar meu pai. É que o seu ponto de vista para construir “a questão educacional” já era o meu por formação profissional e, desde o início, o meu tema foi o que é hoje: educação e mudança cultural.
Também devo a Barbero o prisma que construí para abordá-lo, não só porque boa parte de meu arsenal conceitual se baseia em pérolas espalhadas em seus livros, artigos, conferências e em tanto material seu que pude devorar no Youtube. Mas também porque, graças a ele, entraram em meu radar Polegarzinha, de Michel Serres, Los bárbaros, de Alessandro Baricco, o conceito de interface e o das tecnologias digitais como uma forma de inteligência - que reconstrói a partir da figura de Alan Turing -, e desempoeirei, por sua mediação, a ideia de culturas pré-figurativas de Margaret Mead e considerei o valor das teorias do caos e a complexidade, sobre as quais alertou para ressaltar a incompatibilidade deste enfoque epistemológico com o do enciclopedismo que organiza o saber escolar.
Tecnologia, cultura e caos
Naquela noite de 2015, quando retornei de sua conferência, busquei no Google o autor que mais havia citado, até então desconhecido para mim: o filósofo francês Michel Serres. Encontrei uma conferência intitulada As novas tecnologias, revolução cultural e cognitiva, e ainda ávida em prolongar (ou deveria dizer conter?) o tsunami intelectual que seu chamado a abraçar o caos havia suscitado em mim, apertei o play.
Conhecer Serres foi um divisor de águas em meu modo de pensar o projeto formativo que corresponde à escola no contexto da era digital. Dizia Serres: “Hoje, quando por meio de nossos telefones acessamos qualquer conhecimento, qualquer pessoa, qualquer lugar, não precisamos cultivar a memória e a reprodução mimética do saber consagrado. Hoje, pensar é sinônimo de inventar. As tecnologias digitais nos intimidam a ser inteligentes”.
Não era este um formidável programa de trabalho para a escola à altura das formas de pensamento não linear, em que as novas gerações precisam treinar para habitar o caos? Certamente, existe algo de nostalgia em minha evocação a Serres e a Barbero, agora que nós perdemos os dois e atravessamos esta realidade tão angustiante que é a pandemia (Serres morreu no dia 1º de junho de 2019). Mas estou certa de que estas circunstâncias seriam menos dolorosas, caso nós os tivéssemos ouvido com mais atenção.
Há quem pense que é justamente o contrário. Que autores como Martín-Barbero, Michel Serres e Alessandro Baricco, com seu olhar celebrativo sobre as tecnologias da informação e comunicação e o humanismo aumentado que delas derivam, nos levaram a esquecer as desigualdades e aquelas diferenças culturais que não se resolvem com a democratização da informação e o acesso em massa à cultura atribuída aos meios digitais.
Os que pensam assim, acreditam que esta visão peca por solucionismo tecnológico. E o que está acontecendo com a educação, na ausência da presencialidade, parece lhes dar razão. Os supostos “nativos digitais” não conseguem aprender por meio da tela e a experiência educacional se degrada profundamente no modo virtual.
No entanto, penso que se julgarmos com este enfoque a precariedade na qual a educação mergulhou, com a impossibilidade de voltar às aulas, é porque não conseguimos entender completamente a lição que Barbero nos deu em sua obra fundamental. A chave não está nos meios (as tecnologias digitais), mas nas mediações (a cultura digital).
Dito de outro modo: o sistema educacional argentino não está em sintonia com a era digital, pois da noite para o dia muda para o campo digital. Estará quando trabalhar sobre os deslocamentos pedagógicos exigidos pelas novas maneiras de fazer mundo promovidas pela mudança tecnológica e as formas de vida tecnológicas que se desdobram, agora que a existência salta, como disse Baricco, em The Game, entre o mundo físico e o ultramundo digital.
Isso é o suficiente para abordar a desigualdade educacional? Claro que não. Para argumentar neste sentido, podemos nos basear, não mais nos estudos da comunicação, mas na sociologia da educação de vertente crítica, dos anos 1960 e 1970. Ainda que caiba destacar que sua contribuição é totalmente compatível com a ênfase nas mediações que eram estimuladas por Jesús Martin-Barbero.
Porque quando Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, em sua obra A Reprodução: Elementos para una teoria do sistema de ensino (1970), e Basil Bernstein, em Classes, códigos e controle (1971), concordam em que o elemento que sustenta a seleção escolar negativa para os setores populares é a cultura ilustrada e os códigos sociolinguísticos que caracterizam as instituições educacionais, em definitivo, estão considerando o resultado do encontro da cultura escolar com a cultura de seus alunos, ou seja, com seus habitus de classe enquanto mediações cruciais para a recepção/interpretação do arbitrário cultural da escola.
Embora estas pesquisas oferecessem evidência empírica a favor da ideia de que a discriminação que a escola exerce sobre os setores socialmente desfavorecidos reside na natureza abstrata do conhecimento que nela circula, assim como no tipo de relação com o saber que se promove em suas aulas, em sintonia com o capital cultural dos setores médios e altos e alheio aos que estão na base da escala social, suas contribuições não foram devidamente apreciadas.
Quando fiquei sabendo da morte de Jesús Martín-Barbero, compartilhei a triste notícia com colegas de uma equipe de pesquisa que formamos em 2020, na pandemia. Reúno-me com eles para juntos pensarmos temas da educação e a mudança cultural, com foco especial no uso que os jovens fazem do Youtube para aprender e no fenômeno dos EduTubers.
Nunca nos vimos pessoalmente, não nos conhecemos fora do ambiente virtual. Nosso vínculo é fruto dessas novas formas de estar juntos, habilitadas pelas tecnologias da informação e comunicação sobre as quais Jesús Martín-Barbero nos falava.
Um dos meus colegas compartilhou estas palavras dele para recordá-lo: “Eu sou um dos seres humanos que não esconde que quando pesquisa, pesquisa o que lhe dá esperança. Não pesquiso para me masturbar e menos para me suicidar. Pesquiso para buscar o que me dá energias para continuar acreditando que este mundo é mutável, porque caso contrário dou um tiro em mim”.
Subscrevo cada uma das palavras de meu mestre. E me pergunto: para que pesquisamos se não for para produzir o conhecimento sobre a realidade que nos ajudará a mudá-la? Quando colocaremos em ação as teorias que explicam os problemas da educação que temos, para começar a construir a educação que queremos?