Todas as tecnologias são simplesmente cooptadas pela estrutura de poder vigente para reforçar o status quo.
João Camrgo, Esquerda.net, 9 de Dezembro de 2021
Em 1793 Eli Whitney, um professor e engenheiro nos Estados Unidos, inventou o descaroçador de algodão. Houve quem tivesse interpretado a invenção como um avanço tecnológico que poderia ser um passo em frente na abolição da escravatura, já que uma componente bastante relevante do trabalho escravo até então era justamente separar os caroços do algodão para o mesmo poder ser transformado. O resultado, no entanto, foi o contrário: com o trabalho de descaroçar simplificado, todo o processo acelerou e os proprietários de escravos aumentaram drasticamente as áreas plantadas no Sul dos Estados Unidos, aumentando a quantidade de escravos para números nunca antes vistos e provocando uma degradação ambiental pesada nos territórios cultivados com esta monocultura. Os lucros dos proprietários de escravos tornaram-se estratosféricos e a população de pessoas escravizadas passou de cerca de 700 mil em 1790 para quase 4 milhões no início da Guerra Civil americana. A tecnologia foi simplesmente cooptada pela estrutura de poder para reforçar o status quo.
Não existem tecnologias neutras. Existem, quanto muito, tecnologias de mais difícil controle como monopólios, mas mesmo estas podem ser subvertidas pelo patenteamento e pela propriedade. É mais fácil controlar um monopólio energético se se for proprietário de uma infraestrutura de produção e de uma rede de distribuição. Mais fácil se torna ainda se a fonte dessa energia for de difícil acesso, como por exemplo uma mina de carvão, uma plataforma petrolífera no meio do mar ou um campo de petróleo e gás que necessita de infraestrutura pesada e perigosa e pessoal muito qualificado para operar. Por isso também a indústria fóssil foi a rocha sobre a qual se erigiu a economia do capitalismo moderno.
Por outro lado, se considerarmos por exemplo a energia solar e eólica, cujas fontes pelo menos teoricamente se prestam a dificilmente ser monopolizadas, vemos na mesma emergir três padrões principais de subversão:
- o controlo da tecnologia que permite a sua captura;
- a exigência da produção massiva de aparelhos que permitem a sua captura e transformação;
- a reprodução do modelo energético fóssil reconstituído com fontes renováveis.
Não precisamos olhar muito longe para perceber como o problema se pode avolumar olhando para a história de outra fonte de energia não fóssil: a hídrica. A construção desenfreada de barragens por todo o mundo, em dimensões cada vez maiores teve como efeito concreto transformar o que era de todos (a água), numa mercadoria controlada por muito poucos (os operadores , sejam públicos ou privados), com os rios a serem aprisionados, provocando a degradação das massas de água por todo o mundo, a ruptura da conectividade dos rios, a disrupção por vezes irreversível dos ciclos de vida de vários animais e plantas, a falta de acesso a água a várias comunidades que estavam adaptadas aos ciclos naturais e a interrupção da alimentação dos deltas e dos litorais, ficando os nutrientes e sedimentos que mantinham as linhas de costa e várias espécies marinhas aprisionados nos paredões. As grandes barragens também modificaram a nível local os ciclos hidrológicos, criando novos fenómenos climáticos e promovendo o aumento da evaporação das águas paradas e sua degradação com aumento de matéria biológica em decomposição. As dimensões crescentes das barragens levaram à expropriação de terras e destruição de alguns dos solos mais ricos e férteis do mundo, aqueles próximos de rios e deltas, para poder inundar essas áreas ou pelo menos torná-las potencialmente inundáveis. Para mimetizar o carácter de “pilha” dos combustíveis fósseis, uma nova geração de projectos hidráulicos passou a ter dois paredões, bombando para montante a água, mantendo-a ainda mais contida e degradada.
A construção de novas barragens e constante crescimento de capacidade instalada de produção de origem hídrica em nada afectou a expansão da produção eléctrica com base em fósseis, que continua a crescer (aliás, a fatia de energia hídrica no mix energético global é cada vez menor). Uma tecnologia potencialmente benéfica - ou pelo menos não tão destrutiva como os fósseis - foi transformada num catalisador de catástrofes sociais e ambientais para satisfazer os imperativos do poder e do status quo. Apesar de estar inequivocamente estabelecido que todos os cenários de alterações climáticas apontam para um aumento de escassez de água, novas barragens continuam a ser construídas, com um aumento muito assinalável de novas infraestruturas previstas até 2030 (um aumento de emissões de gases com efeito de estufa é expectável, associado aos primeiros 10 a 15 anos das novas barragens, em particular nos reservatórios tropicais, onde estão muitos dos novos projectos).
A previsão de aumento de preponderância também existe naturalmente para as energias renováveis. Os projectos anunciados e os modelos de produção previstos para a energia solar e eólica preparam, grosso modo, a reprodução das piores características do modelo fóssil: a recriação de sistemas de produção de grande capacidade, ocupando largas áreas de solo (em particular no solar), e mantendo as grandes e ineficientes redes de distribuição sob o controlo de entidades comerciais (pública ou privada) que determinam os preços conforme uma série de factores de alienação. Para compensar a falta de capacidade de armazenamento das renováveis, preparam-se uma série de processos paralelos com os seus próprios impactos devastadores, em particular a mineração para obtenção de lítio, cobalto, cobre e outras matérias primas, mas também a ideia da produção em massa de veículos eléctricos, os sonhos do hidrogénio e da amónia. Os próprios materiais para produzir painéis ou ventoinhas na escala que o sistema exige para se manter inalterado necessitarão de uma quantidade descomunal de matérias-primas que anunciam um novo assalto aos solos, subsolos e comunidades por todo o mundo.
Mas a ideia não é sequer substituir os fósseis por renováveis, é continuar a aumentar a disponibilidade de energia, seja fóssil, renovável, hídrica, nuclear ou outra. Isto é perfeitamente ilustrado pela proposta da Galp de avançar agora para a refinação simultânea de petróleo e lítio em Sines. Não existe cenário contemplado por qualquer governo que implique a estabilização da energia ou da produção. Todos, todos contemplam um aumento da energia e da produção em geral. Este é o cenário que todos os governos e todas as instituições prevêem para o tempo em que vivemos. Poderíamos dizer que são irrealistas pelos evidentes constrangimentos materiais que já existem, mas eles são muito mais do que isso, são a manifestação da pulsão suicida do capitalismo.
Não existe nenhuma versão deste modelo económico, produtivo e visão do mundo que não implique a mercantilização de todas as dimensões da vida e da natureza, nenhuma versão que não ponha o lucro crescente à frente da sobrevivência. Não existe nenhuma estrutura accionista que não entre em pânico quando não veja crescimento económico imediato e previsto para os próximos anos e a próxima década. A promessa do lucro vindouro num mundo em colapso é a contradição final do sistema capitalista.
A tecnologia não nos vai salvar de nada. Todas as tecnologias são simplesmente cooptadas pela estrutura de poder vigente para reforçar o status quo, não têm características autónomas. A única maneira da tecnologia servir para algo no sentido de travar a crise climática é se este sistema e este status quo forem destruídos, abolindo a mercantilização e a propriedade das infraestruturas e sistemas comuns, para poderem ser libertados para fornecer aquilo de que verdadeiramente necessitamos e não aquilo que é útil para as elites económicas e políticas usarem para consolidar o seu poder. Nesse sentido, não vale a pena olhar para as tecnologias como se pertencessem ao reino da magia. Elas não nos salvarão de nada, mesmo que tenham como base boas ideias – dentro deste sistema elas só alimentarão a degradação social e ambiental, garantindo o colapso. Não há nenhum atalho, nenhum acidente que resolva esta crise civilizacional. Só a acção concertada e completamente intencional de construir um novo mundo depois de desmantelado este status quo e esta estrutura de poder nos pode abrir as portas a um futuro digno e justo.
Artigo publicado em expresso.pt a 6 de dezembro de 2021. João Camargo é pesquisador em Alterações Climáticas. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990