O futuro será escrito pelas pessoas que reconhecem a necessidade de agir e que, de facto, se organizam para agir. Em breve haverá apenas dois grandes grupos: os que organizam o desaparecimento da Humanidade e os que organizam o seu salvamento.
João Camargo, Esquerda.net, 6 de janeiro de 2022
O movimento de justiça climática deve abandonar definitivamente o processo da Convenção-Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climática, mais conhecido por COP – Conferências das Partes. A sua presença ali está a legitimar um aparelho antidemocrático, autoritário e repressivo que nunca irá produzir o que precisa de ser feito mesmo a nível técnico: o corte de emissões de 45-55% até 2030 em relação aos níveis de 2010 e o fim da utilização de combustíveis fósseis.
Hoje, a agenda das COP está totalmente limitada às novas narrativas para a abertura de novas fronteiras de exploração e acumulação capitalista: dos mercados de carbono às compensações de carbono, do capitalismo verde à mineração intensiva. O espaço da COP é o terreno para uma nova expropriação de terras a nível global, uma nova Conferência do Congo em que os países ricos desenham e decidem onde expandir-se, o que destruir de seguida no Sul Global e nos países mais pobres.
O movimento pela justiça climática cresceu em torno da história das COP e dos seus sucessivos fracassos, rejeitando o ambientalismo liberal e conservador que dominou durante muito tempo esta área, mas existe ainda assim uma melancolia em abandonar o passado por um futuro que ainda é incerto (sendo que a certeza de seguir as instituições é a garantia do colapso). As COP foram o local onde o movimento pela vez se reuniu, articulou, onde descobriu a natureza global da luta, partilhando as experiências e as ruas.
Mas precisamos olhar para a realidade. Em 1995, na COP1, em Berlim, as emissões de gases com efeito de estufa, na sua maioria provenientes da queima de petróleo, gás e carvão, foram claramente identificadas como a causa das alterações climáticas. Nessa COP foi proposto um compromisso juridicamente vinculativo de estabilização das emissões de gases com efeito de estufa nos níveis de 1990 até ao ano 2000 e uma redução desses níveis após o ano 2000. Bons, os tempos da ingenuidade.
Entretanto, mais de metade de todas as emissões históricas de CO2 desde o início da revolução industrial aconteceram desde a realização dessa COP. Essa é a verdadeira consequência da COP. Bem, não a única, porque a COP produziu também complacência e derrotismo.
No campo da justiça, como no das emissões, o processo das COP fez o contrário do seu propósito. Os mecanismos desenvolvidos ao longo de décadas - o Protocolo de Quioto, o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, REDD+, todos reforçaram o extrativismo e o assalto de terras, o despejo e a expropriação de comunidades pobres de todo o mundo. Emissões neutras e mercados de carbono são o novo nome do jogo e o seu objectivo é proporcionar oportunidades económicas para as empresas privadas afundarem ainda mais os seus dentes na natureza e nas comunidades. Não se trata de um acidente, é o seu próprio desenho do processo.
Durante a COP26 foi anunciado que mais de 800 novos poços de petróleo e gás seriam explorados em várias novas fronteiras, desde a Amazónia ao Ártico em degelo. No final da COP, o governo dos Estados Unidos abriu o maior leilão de contratos de petróleo no mar da sua história. É isto.
Mas não só. A COP usa explicitamente os movimentos sociais, apresentando a sua presença como prova visual de que se trata de um processo aberto, democrático e legítimo. Usa o movimento como álibi para a sua farsa.
As próximas duas COP, em 2022 e 2023 serão no Egipto e nos Emirados Árabes Unidos. No Egipto, o evento será num resort de luxo fechado em Sharm El-Sheik, organizado pelas mãos sangrentas da ditadura militar que esmagou a Revolução Egípcia no golpe de Estado de 2013. Depois, a COP passará para os Emirados Árabes Unidos, um petro-estado monárquico absolutista que defende as formas mais agudas de greenwashing, expansão da produção de combustíveis fósseis, repressão política e social, incluindo o apedrejamento e a flagelação.
Não há só um problema em participar nestes acontecimentos porque eles legitimam alguns dos governos mais repressivos e autoritários do mundo, há também o problema de continuar a legitimar o processo autoritário da COP. Mas essa questão está decidida por nós: ao escolher Sharm-El-Sheik no Egipto e os UAE como próximos locais de reunião, está garantido que não haverá participação da sociedade civil na COP27 e COP28. A COP está morta para nós.
Isto significa que o movimento pela justiça climática irá mudar. Alguns ainda acreditam que certos governos e estados podem ser persuadidos a melhorados, e isso pode ser verdade em alguns (poucos) contextos, mas o quadro institucional internacional foi objectivamente barrado ao movimento. Isto significa que não outro outro caminho para o movimento que não a mudança de sistema de que falamos há tanto tempo.
Afastar-se da COP é abandonar a agenda do capitalismo global, que não tem outro caminho além do que propõe há décadas: mercados de carbono, offsets de carbono e mecanismos especulativos cada vez maiores num contexto de intensificação da exploração da terra, das pessoas e dos combustíveis fósseis.
Isso significa que temos de construir a nossa agenda: Justiça Climática, Justiça Social, Transição Justa. Tudo isto é impossível em capitalismo, como o é, aliás, travar a crise climática e manter o planeta num rumo habitável, de menos de 1,5ºC de aumento de temperatura até 2100. É impossível com estas instituições, criadas para preservar a estabilidade e a normalidade do capitalismo. Estabilidade e normalidade neste tempo significam colapso.
O nosso programa, a nossa estratégia, as nossas táticas, têm de apontar a uma mobilização crescente e à disrupção, à criação da plataforma política e da organização internacional que permita um plano global de travar o colapso e criar as instituições que nos levarão à construção de uma nova economia e de uma nova sociedade. É muito? Claro. É complicado? Sem dúvida. Mas não assistiremos ao colapso na complacência e na espera daqueles que já provaram inequivocamente a sua incapacidade para salvar-se e salvar-nos.
O nosso tempo é agora, a nossa tarefa é a revolução.
A divisão histórica entre movimentos e partidos reformistas e revolucionários pouco significa hoje em dia, uma vez que a revolução tem sido largamente abandonada mesmo pelos movimentos que recrutam através de retórica revolucionária, fazendo da revolução um termo simbólico e não uma estratégia. A adopção de fórmulas de condições objectivas e subjectivas para uma revolução apenas levou a uma fetichização do passado e à táctica de não haver táctica de revolução. A aceitação do fim de grandes histórias e narrativas que construíram a modernidade significou a desistência de uma grande vitória. Vivemos entre pequenas vitórias e pequenas derrotas, rapidamente ultrapassadas e esquecidas para a próxima tendência e questão.
O capitalismo prospera com as pequenas histórias e interpretações diversas que mantêm sempre o grande quadro intocado. Fukuyama disse que a história tinha terminado e que o capitalismo tinha ganho, e todos começaram a agir como se fosse mesmo assim. O capitalismo continuou a proporcionar uma alienação cada vez mais adaptada ao consumidor e o próprio conceito de revolução tornou-se um slogan vazio. A globalização e a financeirização ajudaram ainda mais a confusão: onde se baseia agora o poder? Onde está o novo Palácio de Inverno para levar ou o novo rei para decapitar? Quem é o chefe se todas as encomendas vêm de uma aplicação? Porque é que os revolucionários estão sempre a ler livros com 100 anos e a apoiar a lei e a ordem?
A cultura apocalíptica e a pornografia de desastres, por outro lado, são-nos empurradas todos os dias para os olhos através do aparelho mediático e da agenda cultural, com o claro propósito de criar apenas portas fechadas na nossa mente para que aprendamos a deixar de nos preocupar com o que quer que seja que não seja imediato. A humanidade e a civilização não estão condenadas. Não há destino para nós, e as civilizações não estão "naturalmente" programadas para se auto-destruírem.
O futuro será escrito pelas pessoas que reconhecem a necessidade de agir e que, de facto, se organizam para agir. Em breve haverá apenas dois grandes grupos: os que organizam o desaparecimento da Humanidade e os que organizam o seu salvamento. Uma revolução hoje em dia só significa alguma coisa se quebrar o aparelho de destruição construído pelo capitalismo e remover as causas das alterações climáticas: o sistema de produção baseado em combustíveis fósseis. Isso chega? Não. Será preciso mudar muito mais, muito mais que técnicas, as próprias relações sociais conformadas durante mais de dois séculos para garantir que as rodas do capitalismo global estavam sempre oleadas.
Mas já vivemos em profunda convulsão ambiental e social, que não desacelerará, mas sim agravar-se-á. Haverá motins, guerras e rebeliões contra os efeitos da crise climática, contra a destruição das condições materiais que permitiram a existência de civilização de há milhares de anos para cá. Só uma revolução contra a causa da crise climática - o capitalismo - nos ganhará um futuro.
As revoluções não acontecem, elas são feitas.
Ensaio publicado em setenta e quatro a 19 de novembro de 2021