Considerado um dos precursores do jornalismo socioambiental no Brasil, Washington Novaes deixou órfãos todos aqueles que se inspiraram em seu trabalho em defesa dos povos indígenas e do meio ambiente, do Cerrado e da Amazônia.
Instituto Socioambiental (ISA), 26 de agosto de 2020
Paulista de Vargem Grande do Sul, onde nasceu em 1934, Washington Novaes morava em Goiânia. Considerado um dos precursores do jornalismo socioambiental no Brasil, Novaes partiu na noite desta segunda-feira (24/08), por conta de complicações causadas depois de uma cirurgia para retirada de um tumor no intestino.
Deixou órfãos todos aqueles que se inspiraram em seu trabalho em defesa dos povos indígenas e do meio ambiente, do Cerrado e da Amazônia . Fosse seguindo seu exemplo no ofício de jornalista, fosse no ativismo e na militância socioambiental. Autor de documentários notáveis sobre os índios xinguanos, ele não se cansava de contar histórias e falar das lições que aprendera, durante suas estadas no Território Indígena do Xingu, antes chamado Parque Indígena do Xingu. Dessa vivência nasceu Xingu, a Terra Mágica, em 1985, documentário com dez episódios exibido pela à época pela Rede Manchete de Televisão. “Foi um momento raro de sensibilidade e de beleza da televisão brasileira, uma exaltação à nossa diversidade cultural ”, afirma André Villas-Bôas, secretário executivo do Instituto Socioambiental (ISA).
Novaes era associado ao ISA e teve importante papel nas articulações que resultaram na Campanha Y’Ikatu Xingu, lançada em 2004, pela recuperação das matas ciliares do Rio Xingu, num movimento inédito que juntou grandes e pequenos produtores rurais, indígenas, assentados, sociedade civil organizada, academia e governos locais e regionais. Hoje, a campanha se transformou na Rede de Sementes do Xingu, hoje a maior rede de sementes nativas do Brasil utilizadas para reflorestamento.
Na Rede Globo de Televisão foi editor do Jornal Nacional e do Globo Repórter. Na TV Cultura Washington foi comentarista e coordenador de conteúdo do Repórter ECO e criador do projeto Biodiversidade Brasil, um programa de debates onde era um dos entrevistadores. Também escrevia com regularidade no jornal O Estado de S. Paulo, sempre abordando questões socioambientais “Foi o mais importante jornalista com visão socioambiental da sua geração, um velho sábio, sereno e contundente”, diz Beto Ricardo, sócio-fundador do ISA.
Novaes foi autor de mais de dez livros. A Década do Impasse, da Rio-92 à Rio+10, publicado em 2002 pela Editora Estação Liberdade e pelo ISA, reuniu uma série de artigos valiosos escritos em jornais nesse período.
Vinte e dois anos depois de Xingu, a Terra Mágica, que faz parte do imaginário dos brasileiros, Novaes revisitou a região e lançou a série Xingu, a Terra Ameaçada, mostrando as pressões que pairavam sobre o Território Indígena do Xingu. Infelizmente, as ameaças que ele apontou em 2007, continuam a pairar sobre a vida dos xinguanos. Veja entrevista de Novaes ao Programa Roda Viva, da TV Cultura, em julho de 2007.
O ISA presta sua homenagem a Washington Novaes com um texto escrito por seu amigo Marcio Santilli, sócio-fundador do ISA, que o imaginou chegando no céu e sendo recebido pelo sorriso largo do cacique xinguano Aritana, que também partiu recentemente.
Festa no Céu
Por Márcio Santilli
Como se diz por aqui, “cada dia, uma agonia!”. E hoje é o dia em que nos despedimos de um eco-precursor, o Washington Novaes. Quando ainda eram invisíveis para quase todos as imagens do Brasil socioambiental, ele trouxe as cores do Xingu até as nossas almas. Ele decupou, bem antes do ambientalismo de agora, o estado da arte desse mundo doente.
Quando cessaram as suas últimas forças, o céu de Goiânia se encheu de luzes, mas que não puderam ser vistas por afoitos olhos humanos. É que os espíritos da floresta vieram buscá-lo. Superando o sofrimento terreno, Washington se viu envolvido e embalado por energias revitalizantes que o fizeram levitar, para que o seu espírito fosse levado por brisas de afetividade até o seu novo lugar. Ou melhor, o seu lugar de sempre, de onde ele veio quando chegou a este mundo, que gira em torno do sol.
Assim, levitando, a essência do Washington foi se aproximando de um espírito vigoroso que, de longe, mais parecia um gigante colorido. Mas, de perto, ele era um grande sorriso: a alma do Aritana, destacado por outros seres divinos para recebê-lo nas portas do céu. Eram portais imaginários e o céu, cá entre nós, só chamei de céu porque, daqui, só vemos um azul que parece infinito, mas lá está, na verdade, um mundo exuberante.
Aritana o recebeu com um abraço de amor da largura do Rio Xingu, no qual Washington mergulhou profundamente para atenuar e expurgar as dores, a aflição e o cansaço do seu desprendimento desse mundo e da viagem até aquele lá. Foi abraçado ao Aritana que o Washington avistou uma legião de espíritos femininos, que dançavam e faziam coreografias de anunciação para agradecer ao Washington pela luta pela vida que havia travado em vida. De repente, da legião destacou-se o espírito de Dona Laurita Krenac, que partiu desse mundo muito triste pela morte do Rio Doce - que foi o seu berço, o seu lugar - mas que estava vibrante, alegre e agradecida. Laurita lhe ofereceu um melado revigorante e chamou Washington para dançar.
A coisa já estava muito boa quando apareceu o Zé Adalberto Macuxi, pulando e cantando como um pássaro alegremente embriagado, anunciando que naquele mundo tinha muito mais gente amiga querendo festejar o retorno do Washington. De imediato, o céu foi virando uma grande festa. “Olha aqui, Washington, quem veio te cumprimentar”, gritou o Adalberto apontando para o Paulo Paiakã, que descia de um arco-íris gigante.
Foi então que o Paiakã explicou que a destruição das florestas é uma coisa chocante e que uma parte da humanidade continua matando impunemente, mas que o Washington poderia, assim mesmo, se alegrar, pois a fonte primária de todas as formas de vida estava ali no céu, fora do alcance dos predadores que ainda dominam a maior parte da Terra, cuja biodiversidade é apenas uma sua expressão material e parcial.
A partir do horizonte, veio se desdobrando uma espécie de manta iluminada, tecida por múltiplas formas exuberantes e desconhecidas de vidas. Esticando essa manta por duas pontas, lá estavam Sofia Borari, que viveu nos domínios do Rio Tapajós para recuperar a identidade do seu povo, e Higino Tuyuka, professor que, sorridente, acolheu Washington indicando o caminho até a cobra da transformação, que o libertaria de todos os males sofridos e trazidos da Terra para prepará-lo para novas vidas que o esperam na jornada infinita da vida.
Uma sereia transexual esplendorosa o esperava na beira do rio por onde navega a cobra da transformação. Recitou uma poesia sobre a metamorfose da existência e contou que, no papo da cobra, Washington se encontraria com Alfredo Sirkis e Pedro Casaldáliga. No retorno, todos esses seres estariam aptos a juntar suas energias para emanar inspiração aos que permanecem nesse front (ou será um avesso?) terreno.
Pois é, festa no céu e tristeza danada na Terra! Hoje cedo, a notícia da sua partida me chacoalhou desse sonho delirante. Pela janela, constato um mundo a se descolorir. Pode ser o efeito acumulado com a fumaça que vem de todos os lados, da Amazônia ao Pantanal. Pode ser o peso da saudade. Nem a seca aguda de agosto no Planalto Central pode dissolver as lágrimas. Mas o que foi dito e escrito, está inscrito nesse mundo e vai alimentar de sabedoria e esperança, outros tantos.
Obrigado❤Washington Novaes!