Comentário sobre a trajetória política e intelectual do marxista peruano
Yuri Martins-Fontes, A terra é redonda, 12 de janeiro de 2021
Em 1930, antes de completar 36 anos, faleceu José Carlos Mariátegui. Sua tão breve vida não o impediu de legar à história uma obra ampla, que quase um século depois mantém sua atualidade.
Considerado um dos mais influentes marxistas da América, esse intelectual-militante – tipógrafo, jornalista, editor, historiador, filósofo – foi um pioneiro em interpretar a questão nacional latino-americana segundo os princípios do marxismo.
Comunista dialético e de práxis
Autodidata erudito, o pensador peruano ainda bem jovem se declara um comunista “convicto e confesso”. Em seus escritos teóricos, pode-se apreciar o exame minucioso dos conflitos e contradições socioculturais do período entreguerras – tanto relativos a sua realidade periférica andina e latino-americana, como acerca de questões do centro do mundo capitalista, que ele conheceu de perto.
Em sua polêmica filosófica “Defesa do marxismo” [1], afirma que suas investigações histórico-científicas e filosóficas se guiam pela metodologia dialética: o marxismo “não é um itinerário, mas uma bússola”; “pensar corretamente é, em grande medida, uma questão de direção”.
Por outro ângulo, enquanto homem político revolucionário, Mariátegui valorizou o princípio ético da práxis como sendo o núcleo do pensamento começado por Marx e Engels. Entende que a teoria só se verifica na prática, e nela se corrige; que ao existir na realidade, a teoria transforma o mundo real, sendo por sua vez transformada por este novo real.
Segundo manifesta em suas reflexões críticas à “passividade” da Segunda Internacional (parlamentarista, pacifista), Mariátegui não escreve porque meramente aprecia ou deseja escrever, mas porque precisa dizer: porque se sentia eticamente compelido a comunicar o que analisara, o que descobrira. Para ele, as “certezas positivistas” (a pretensão cientificista por uma verdade exata e única) do socialismo da Segunda Internacional são uma “fossilização” acadêmica do marxismo [2].
Trata-se de uma postura existencial combativa (ativa, de luta), tão oposta ao conformismo de certo marxismo academicista, regular, “profissional” – com sua crítica acomodada pelo hábito da boa posição intermuros, com sua moral de pena limpa que, ao meramente escrever sobre realidades que não vivencia, limita sua própria crítica, e mais: isenta-se da autocrítica com que poderia vislumbrar seu próprio elitismo (na prática social concreta do cotidiano).
Eis a contraditória corrupção do marxismo asséptico a que Mariátegui tanto criticou: um “marxismo” sujeitado aos moldes capitalistas da competição (intelectual, midiática). Um “marxismo” autorizado pelo sistema que continua “validando” os discursos acerca do que “é” ou “não é” verdade. E isto, sobretudo em certos meios vira-latas periféricos (editoriais, acadêmicos), que continuam copiando e idolatrando o que vem de fora. Veja-se por exemplo a sintomática proliferação – até no campo das “esquerdas” (!) – de publicações filiais de meios estrangeiros (revistas e portais que sequer ousam modificar o nome de sua matriz estrangeira).
Mariategui na história
Desbravador de um marxismo atento às peculiaridades da realidade americana colonizada, Mariátegui exerce até hoje grande influência sobre variados movimentos sociais: de agrupamentos de resistência camponesa e indígena, a grupos de distintas tendências socialistas.
Aliás, por incrível que pareça, ele é aclamado inclusive por “liberais”: como instituições oficiais, políticas e culturais peruanas, que se vangloriam de seu “grande nome das letras nacionais” em arrastados textos “históricos” que sequer mencionam sua posição político-filosófica marxista.
A quase um século de seu decesso, a herança mariateguiana pode ser observada hoje pelo mundo, e se expande – como se vê na crescente pesquisa sobre sua obra que tem se desenvolvido no Brasil, América Latina e até mesmo no centro capitalista – em espaços normalmente dominados pela anglofonia.
Seu pensamento se faz presente nos debates políticos e táticas de ocupação comunitária (de latifúndios) do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra do Brasil (MST); ou na ideologia guerrilheira autóctone do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN); ou mesmo na tática ofensiva de grupos armados, como os marxistas-leninistas das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia–Exército do Povo (FARC) – guerrilha de meio século hoje rachada entre um movimento político legal e uma parcela que dá continuidade à “crítica das armas”.
Além desses exemplos, como bem observou a professora Zilda Iokoi, é simbólico o caso do “Partido Comunista de Perú por el Sendero Luminoso de José Carlos Mariátegui” (PCP – Sendero Luminoso), histórica guerrilha camponesa de tendência maoista que, apesar de só parcialmente se apoiar no pensamento do autor (a quem homenageia), procurou articular a “estrutura do processo da Revolução Cultural” chinesa com os “princípios da mística andina” [3].
Formação política e contexto histórico
Nascido em Moquegua (Peru), em 1894, Mariátegui se muda cedo para a capital. Sua mocidade se dá em um momento histórico conturbado. Por um lado, com a Primeira Guerra Mundial, as potências capitalistas tinha levado a humanidade a conhecer uma de suas maiores carnificinas. De outro, na Eurásia, a Revolução Bolchevique propunha na prática uma alternativa às misérias gritantes do capitalismo.
Ele inicia a carreira profissional como tipógrafo aprendiz, no diário “La Prensa”, ainda adolescente. No prelúdio da Primeira Guerra, se lança na escrita, elaborando críticas literárias e versos. Pouco depois já publicaria seus primeiros artigos políticos.
Com a atividade jornalística, se aproxima do movimento operário, que se gestava desde o fim do século XIX – de linha anarquista bakuninista, migrado à América por militantes europeus.
Destacando-se como jornalista, Mariátegui em 1916 se torna cronista regular do jornal “El Tiempo”, dedicando-se ao embate político, denunciando a “democracia mestiça” de fachada – a demagógica fonte de “divertimento” que tinha a função de desviar a atenção do povo quanto ao fato de que a burguesia da costa peruana aliada aos grandes proprietários rurais tornavam o país cada vez mais um “setor colonial” do imperialismo estadunidense.
Esta foi uma época de grande alta nos preços dos alimentos. Em consequência do mal-estar popular, a movimentação operária se fortalece. Os escritos de Mariátegui – já de tendência socialista, embora ainda não “marxista” –, apoiam as greves, criticando a classe dirigente limenha.
Em 1918, em Córdoba (Argentina) começa um intenso movimento pela Reforma Universitária, manifestações que abrangeriam todo o continente. Entusiasmado, o pensador andino afirma ser este o “nascimento da nova geração latino-americana” [4].
Outro marco mariateguiano na política peruana foi a fundação revista “Nuestra Época” (1918), publicação que não traçava um “programa socialista”, mas aparecia como um esforço ideológico nesta direção. Mariátegui dava então início a suas atividades como editor, o que perfaria importante parcela de sua atuação política de orientação socialista.
O fim da Primeira Guerra assinala na América Latina e no mundo, um período de agitação da classe trabalhadora. Mariátegui, em 1919, funda o jornal “La Razón”. Neste mesmo ano, uma greve geral é reprimida com violência e prisões de líderes operários. Inicia-se no Peru uma década de populismo direitista – economicamente pró-ianque, mas que flerta também com parte do movimento indigenista.
A defesa de líderes operários presos, promovida por Mariátegui através de seu jornal, faria com que ele fosse aclamado em Lima por uma multidão. Um mês depois, seu periódico é fechado, e Mariátegui é discretamente deportado à Europa, sob o discurso oficial de “propagandista do Peru no estrangeiro” – um exílio “conciliador”, já que coincidentemente ele (de origem trabalhadora) era parente da mulher do presidente.
A Europa: uma mulher e algumas ideias
Mariátegui segue viagem, rompendo com suas primeiras experiências de literato “contaminado de decadentismo” (como depois expressaria em autocrítica). A partir de então, volta-se “resolutamente ao socialismo”. Passará três anos em viagem pela Europa, conhecendo alguns países do Leste e do Oeste, em especial a Itália – onde passa a residir.
Em meio à influência da conjuntura ali vivida – na qual ecoava alto a Revolução Russa – a Europa o aproxima das obras de Marx, Engels e Lênin, além do movimento comunista italiano e do surrealismo.
No Partido Bolchevique, Mariátegui enxerga a convergência entre teoria e prática, entre filosofia e ciência. Afirma ser Lênin “incontestavelmente” o revigorador “mais enérgico e fecundo do pensamento marxista” [5].
Durante esse período italiano, Mariátegui afirma ter se casado com “uma mulher e algumas ideias”. Sua companheira, Ana Chiappe, lhe transmite um “novo entusiasmo político” que o ajuda a superar seu juvenil decadentismo de fim de século [6].
A família de Ana é próxima à do filósofo Benedetto Croce, por meio de quem conhece a obra de Georges Sorel: sindicalista revolucionário de quem aprecia a ideia do “mito da greve geral”, bem como sua defesa ética da “violência revolucionária” contra a “violência instituída” [7].
Na convulsiva Itália, presencia ocupações de fábricas e congressos de trabalhadores, além de se aproximar do grupo da revista “Ordine Nuovo”, dentre o qual figurava Antonio Gramsci. Por este tempo, vivencia a criação do Partido Comunista da Itália, estreitando contato com o pensamento gramsciano e de outros marxistas italianos (como Terracini).
Fascismo: consequência da decrepitude social
A estadia europeia de Mariátegui foi também um mirante donde pôde observar o Oriente: desde a Revolução Chinesa e o despertar da Índia, aos movimentos árabes e diversos grupos resistentes do pós-Guerra. Nestes acontecimentos, percebe o declínio da envelhecida sociedade ocidental moderna.
Sua análise sobre a decrepitude moderno-ocidental ganha força quando observa de perto a ascensão fascista italiana. No fenômeno, logo identificaria uma resposta do grande capital a uma crise social e política profunda: a “crise da democracia”.
Note-se que, se no início de sua estada europeia, Mariátegui traz a humildade de um discípulo aberto ao centro do pensamento moderno, progressivamente ele passa a se decepcionar com os infortúnios que presencia na Europa, passando a assumir uma “perspectiva antropológica invertida” (de sujeito periférico que analisa criticamente a cultura eurocêntrica dominante).
Com tal olhar reverso, o marxista latino-americano logra captar detalhes da crise ocidental que eram, até então, negligenciados pelos próprios europeus. É o caso da decadência da dita “democracia burguesa”, que ele logo concebe como sendo uma nova farsa a se redesenhar com os traços autoritários do fascismo.
Para Mariátegui, o fascismo foi a solução encontrada pela ordem burguesa como reação à “crise da democracia”; ou de outro modo, uma adaptação estrutural diante dos novos tempos de imperialismo monopolista, em que a democracia-liberal com suas instituições parlamentares, já não servia aos interesses da burguesia [8].
Marxismo intuitivo: por uma crítica da impotência burguesa
Em paralelo a toda esta efervescência sociopolítica, Mariátegui tem na Europa acesso às obras de pensadores como Freud, Nietzsche, Unamuno. Interessa-se muito pela recém-criada psicanálise, bem como pela filosofia intuitiva do filósofo alemão – sobretudo no que tais análises ajudam a compreender a evidente irracionalidade humana. Nestes pensamentos ele encontra ferramentas críticas para a denúncia da alienação, da impotência e artificialidade do homem moderno: um ser castrado, inserido em uma repressiva estrutura sociocultural burguesa e cristã.
Entretanto, antes que os puristas do academicismo marxista o acusem: o marxismo de Mariátegui se manteve fiel aos princípios do materialismo-histórico; jamais flertou com nenhuma proposta de síntese eclética – mas se utilizou de alguns específicos conceitos psicológicos e filosófico-vitalistas como instrumental auxiliar em sua empreitada contra o reformismo e o determinismo mecanicista (ou seja, contra a mencionada fossilização acadêmica do marxismo).
É a partir da enorme tragédia da Europa que Mariátegui viria a compreender com nitidez o alcance histórico da tragédia da América. Quando retorna a Lima, em 1923, o ainda moço pensador já defende abertamente a causa comunista.
Yuri Martins-Fontes é doutor em História pela FFLCH-USP/ Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS). Autor, entre outros livros, de Marx na América – a práxis de Caio Prado e Mariátegui (Alameda).