Independente do quão exaustos estejamos das limitações que o vírus da covid-19 nos impõe, ele permanecerá entre nós, ainda que de forma menos dramática. Mas tragédias evitáveis, desigualdades avassaladoras e crises ecológicas que se transformaram em ameaça existencial à nossa civilização vem restabelecendo, contra o eterno presente neoliberal, o sentido de uma história humana. Imprevisibilidade, luta pela vida e corrida para evitar catástrofes maiores voltam a se colocar - ainda que em um mundo danificado e de expectativas decrescentes. É a partir da totalidade concreta da teia de vida, na qual estamos imersos, que podemos formular juízos críticos. São eles que nos permitem passar da mera ação reativa e frenética para a atividade política estratégica.
José Correa Leite, 4 de dezembro de 2021
Introdução. Uma nova variante do covid-19 foi detectada em 22 de novembro na África do Sul; no dia 26 de novembro, foi batizada, pela Organização Mundial de Saúde (OMS), com a letra grega ômicron. Ela já responde por 75% de todos os vírus de covid-19 sequenciados no país. A rapidez de sua expansão e o fato de ter mais de 30 mutações na proteína espícula, responsável por “enganchar” o vírus nas células humanas, tornaram a ômicron uma “variante de preocupação” da OMS. O maior temor é que, além de ser mais transmissível, as atuais vacinas possam ser menos eficazes face à ômicron e ela reinfecte aqueles já vacinados.
O bioquímico norte-americano Jesse Bloom afirmou que a ômicron é, contra os anticorpos, “mais bem-sucedida do que qualquer coisa que vimos até agora”. Para Bloom, isso “não significa que a variante escapará completamente dos anticorpos gerados pela vacina ou por uma infecção anterior”, já que as defesas humanas possuem outras armas. Porém, Stephen Hoge, presidente da Moderna, destacou que “o mais assustador sobre este vírus é que ele conseguiu colocar todas as suas maiores vantagens em uma variante [a ômicron] e, então, adicionou talvez dez mutações que nós ainda nem mesmo sabemos o que pensar delas”.
A reação dos demais países foi caótica e sem qualquer coordenação, como vem sendo há dois anos. Eles passaram a suspender, individualmente, os voos para oito países do sul da África. Mas imediatamente vários países detectaram a variante ômicron em viajantes em seu território. Descobriu-se a presença da ômicron em amostras coletadas na Holanda em 19 e 23 de novembro. Como afirmam José Eduardo Agualusa e Mia Couto, “os governos fizeram o mais fácil e o menos eficaz: ergueram muros para criar uma falsa ilusão de proteção. Era previsível que novas variantes surgissem dentro e fora dos muros erguidos pela Europa. Só que não há dentro nem fora. Os vírus sofrem mutações sem distinção geográfica. Pode haver dois sentimentos de justiça. Mas não há duas pandemias”.
O mundo vive uma quarta onda da pandemia, em especial no hemisfério norte - ainda que, em vários países, com menos mortes graças aos avanços da vacinação. Oficialmente, a pandemia já fez 5,2 milhões de mortos e é hoje, em larga medida, uma ameaça mortal para os não vacinados. O surgimento da variante ômicron é exemplar de como as desigualdades, que criam um apartheid de vacinas, realimentam a pandemia. Deixar o vírus circular sem combatê-lo forma o caldo de cultura para o surgimento de mutações; a seleção natural favorece a expansão das variantes que facilitam sua circulação. Maior o número de casos, maior a probabilidade de mutações.
A revista Nature publicou, em 2 de dezembro, um apanhado do estado do conhecimento neste momento sobre o tema. Levará pelo menos mais duas semanas para que se dimensione todo o alcance da variante ômicron - que parece mais transmissível, embora não mais agressiva do que a variante delta. Muitos, que ansiavam por voltar a uma suposta “normalidade”, reagiram com negação à realidade que a nova cepa impõe. Contudo, se de algo podemos ter certeza, é que esta variante não será a última variante do vírus da covid-19.
Entrementes, é útil formularmos algumas conclusões que se impõem ou deveriam ser tiradas da pandemia e de sua relação com outros processos em curso na cena global, em especial a crise ambiental.
1. A pandemia não será vencida, apenas domada. A vacinação é parte desse esforço, mas não impede a circulação do vírus; ela reduz muito internações e óbitos. Máscaras, ambientes ventilados e distanciamento social continuam medidas necessárias, combinadas com a vacinação. Grandes aglomerações, sem que estas condições possam ser respeitadas, devem ser desestimuladas. Uma coisa é muita gente em um parque ou avenida; outra é em uma casa noturna com ventilação limitada. Com o tempo - que pode ser maior ou menor de acordo com as variantes que surjam e os processos de vacinação - a covid-19 tende a se transformar em epidemia e depois em uma doença endêmica. As reinfecções se tornarão cada vez mais comuns.
2. A vacinação terá que ser periódica, com doses de reforço ou eventuais atualizações da vacina. Alguns países, inclusive o Brasil, vem recomendando o reforço da vacinação cinco ou seis meses depois da segunda dose. Com a eclosão da variante ômicron, a Inglaterra decidiu encurtar o prazo para a dose de reforço, para todos maiores de 18 anos, para três meses. E o governo do estado de São Paulo definiu uma dose de reforço para a Jenssen apenas depois de dois meses de vacinação e quatro meses para as demais. Um estudo publicado na Science no início do mês mostra que a efetividade das vacinas Pfizer e Jenssen cai pela metade depois de um semestre de sua aplicação. Uma vacina específica contra a variante ômicron pode, segundo os laboratórios, ser produzida em três meses. Isso destaca a importância tanto da capacidade de produção de vacinas como dos serviços de saúde pública. O Sistema Nacional de Imunização no Brasil é paradigmático dessa centralidade e sua defesa deve ser acompanhada do reforço da capacidade de produção nacional de vacinas.
3. A luta pela quebra ou suspensão das patentes das vacinas e pela ampliação da capacidade de produzi-las tornou-se mais estratégica do que nunca. A Covax Facility, o fundo internacional que deveria apoiar a vacinação nos países pobres, mostrou-se um grande fiasco. Os interesses privados envolvidos nos ganhos com as patentes de vacinas de mRNA vem se mostrando um obstáculo central ao combate da pandemia. Há, segundo o NYTimes pelo menos dez centros capazes de produzir vacinasno Brasil (Bio-Manguinhos e Instituto Butantan), Argentina (Sinergium Biotech), África do Sul (Biovac Institute e Aspen Pharmacare), Índia (Gennova e Serum Institute), Tailândia (BioNet-Asia) e Indonésia (BioFarma). Eles já poderiam estar fabricando vacinas de ponta, de mRNA, não fosse a ganância da Big Pharma e a mesquinharia dos governos que as apoiam, que já tínhamos visto em ação no caso da epidemia de HIV-AIDS. A Lei das Licenças deveria, no caso brasileiro, permitir isso, mas o Congresso precisa derrubar vetos de Bolsonaro à lei.
4. A pandemia entrará em seu terceiro ano com força. A ômicron nos lembra que estamos mais próximos do começo da pandemia do que seu final, afirma Jeremy Farrar. Ela provavelmente voltará a atingir, de forma desigual, mesmo países que hoje parecem tê-la controlado. Ela está hoje, globalmente, produzindo cerca de sete mil mortes por dia. Mas é hoje uma pandemia de ceifa principalmente a vida e a saúde dos não vacinados - com a África se destacando nesse quesito. Caso a enorme maioria da população esteja vacinada, a pressão sobre o sistema hospitalar e o número de mortes será muito menor. Os novos tratamentos antivirais que estão sendo desenvolvidos também ajudarão a reduzir as internações e mortes.
5. O certificado obrigatório de vacinação se tornará uma norma pelo mundo. Tem se ampliado os passes sanitários e de mobilidade, os atestados e começam a se implantar lockdowns de não vacinados. Isso tem como contraponto a resistência que um setor minoritário da população oferece à ela e que, em vários países, poderá consolidar ainda mais um núcleo de extrema-direita radical. Estes ultraliberais colocam a liberdade de escolha individual acima das opções comunitárias (embora esta oposição também polarize alguns setores “naturalistas”, que teriam, em outro contexto, uma orientação progressista). A obrigatoriedade não é novidade, existiu para doenças que se queria erradicar e ainda é exigida no caso da febre amarela nas viagens para muitos países; deve ser apoiada por nós. Os “céticos das vacinas” estão se aproximando e interagindo com os “céticos do clima”. O resgate de um horizonte comunitarista para a vida social é, face ao individualismo egoísta, uma lição da pandemia.
6. A persistência da pandemia é a expressão, em parte, da rejeição das políticas de genocídio. Há uma realidade positiva na situação atual que, por vezes, não é suficientemente enfatizada: a força do conhecimento científico e a eficácia dos serviços de saúde, que foram capazes de criarem e aplicarem vacinas eficazes em menos de um ano. Não é mais aceitável, na maioria dos países, deixar que a doença siga seu curso sem obstáculos, produzindo vítimas até atingir a “imunidade de rebanho” (como era o caso das pestes e epidemias do passado), a expressão mais acabada da necropolítica - embora a postura de ausência de coordenação da “comunidade internacional” leve ao descaso para com os países mais vulneráveis. A defesa da ciência - na saúde como no clima - é um combate central em defesa da vida, que deve ser feito compreendendo as especificidades do método científico. Deve, evidentemente, ser feita com o espírito crítico que lhe é próprio e não como um dogma positivista.
7. A amplificação da anticiência pelas redes sociais ajuda a explicar a persistência da pandemia. Empresas de plataforma datificadas não criaram a anticiência, que sempre foi uma marca do pensamento reacionário. Mas as redes sociais da Meta e da Alphabet (donas do Facebook, Whatsapp, Instagram e YouTube) têm interesse em multiplicar a atenção, o tráfego e a captura de dados. Seus algoritmos amplificam quase todo tipo de discussão polarizadora, como as estabelecidas pelo conservadorismo radical. Como já tinham evidenciado as “dúvidas” sobre os efeitos do tabaco na saúde ou o “ceticismo do clima”, conscientemente forjados e financiados pelas corporações interessadas, a desinformação consciente é central no mundo contemporâneo. Há uma profusão de “mercadores da dúvida” (Naomi Oreskes), incidindo nas disputas das questões decisivas da atualidade, mercadores que encontram nas redes sociais espaço fácil de atuação. A agnotologia, o estudo da produção consciente da ignorância, é uma disciplina mais necessária do que nunca para a teoria social crítica. As plataformas modulam algoritmicamente a formação dos valores, sentidos e subjetividades contemporâneas, estabelecendo um regime de informação pós-factual, impulsionando o embotamento cognitivo e radicalizando o fluxo de imagens como mobilização de paixões pelo capitalismo do espetáculo. A regulação e controle das plataformas é, hoje, uma questão vital para a humanidade, estreitamente ligada à disputa internacional de projetos.
8. A pandemia está sendo acompanhada de “terapias de choque” que ampliam as desigualdades pré-existentes. Há, de um lado, a desigualdade de acesso às vacinas. 70% da população dos países ricos está vacinada, enquanto entre os países de baixa renda apenas 3,1% receberam pelo menos uma dose.Mas a riqueza não garante a vacinação. O Brasil já vacinou 61% de sua população, enquanto os EUA vacinou menos 59% e a Rússia, que produz sua própria vacina, apenas 38%. Mas, de outro lado, a vacinação não apenas expressa as desigualdades sociais, econômicas, culturais e políticas existentes (que levam a que a pandemia seja chamada de sindemia), mas as requalificam e reforçam, exemplificando como as corporações e países capitalistas aplicam “terapias” de choque permanentes (Naomi Klein). O prolongamento da pandemia é um enorme ônus de renda, alimentação, saúde (inclusive mental), educação... para e sobre os setores mais pobres e vulneráveis da população mundial e em cada país, com seus cortes de classe, gênero e raça/etnia. Em todas as partes, apesar do alerta para o agravamento das questões ambientais, as atividades predatórias dos territórios estratégicos - hotspots ecológicos - estão crescendo. O choque é aproveitado para privatizar os bens comuns. A pandemia vem se revelando como a arma de etnocídio dos povos tradicionais, cuja cultura oral depende da atividade dos seus membros mais velhos.
9. Acumulou-se um gigantesco trauma coletivo que continua se intensificando. Entre suas ondas de choque, se incluem pandemias de doenças mentais, overdoses, feminicídios e ataques domésticos a mulheres, crianças e vulneráveis. A pandemia acirrou a violência social que já escalava no mundo neoliberal e agora é alavancada pelas políticas de ódio da extrema-direita global. A covid-19 gerou uma brecha imensa na socialização das crianças e adolescentes, cujas sequelas perdurarão por décadas. Ou, de forma mais imediata, as sequelas da longa covid, que reduzem a expectativa de vida dos que foram acometidos de forma grave pelo vírus! A pandemia amplificou a condição de solidão que golpeia os idosos em sociedades cada vez mais individualistas. Os lockdowns criaram situações terríveis para os pobres na maioria dos países da periferia do capitalismo, onde não existem sistemas de amparo coletivo - para além de autênticas catástrofes em número de mortos, como a brasileira, estadunidense, indiana, peruana... Temos hoje, segundo os dados conservadores do Banco Mundial, 150 milhões de miseráveis a mais do que no início de 2020. A pandemia catalisou desigualdades sistêmicas que crescem desde os anos 1980, aumentaram ainda mais depois de 2008 e escalaram a crise da reprodução social que acompanha a mercantilização da vida.
10. A pandemia está promovendo um “reboot” da gestão do trabalho pelo capital e uma nova vaga de compressão do tempo-espaço. A gestão da força de trabalho precarizada por plataformas, algoritmos e aplicativos já estava bem avançada em 2019. Mas a pandemia foi um recomeço que extravasou em muito a “uberização”; agregou-lhe múltiplas camadas, forçando experimentações e, rapidamente, a difusão generalizada do trabalho remoto no terciário. Incontáveis barreiras e resistências foram vencidas. Um grande número de atividades mostrou-se viável nesses marcos, oferecendo ganhos para parte importante das empresas, que se livraram de custos e deslocaram tanto o ônus da requalificação como da viabilização das condições de trabalho para seus empregados. Essa supressão do espaço para a parte da população mundial mais conectada e integrada ao mercado de consumo é uma nova vaga de compressão do tempo-espaço (Harvey), de aceleração da rotação do capital e das relações a ele associadas. Isso foi galvanizado, em boa medida, pelas big techs - enquanto os setores golpeados foram preservados com generosos subsídios governamentais. As plataformas, com sua gestão algorítmica do trabalho, deixaram para trás as corporações fordistas do século XX que foram - da linha de montagem ao just-in-time - o paradigma da apropriação do poder social da cooperação pelo capitalismo. As formas de organização e o pensamento crítico sobre o mundo do trabalho herdadas tornaram-se profundamente defasadas desta realidade.
11. Não haverá volta ao normal; o trauma redefine o mundo vindouro. A própria pergunta “quando voltaremos ao normal” é um despropósito. O mundo voltou ao normal depois da I GM ou entrou na “era das catástrofes” (Hobsbawm)? O mundo atinge hoje, oficialmente, a marca de 5,2 milhões de mortos pela covid-19. Estes números, em países com estatísticas e sistemas públicos de saúde precários, só serão conhecidos quando demógrafos e estatísticos se detiveram, dentro de alguns anos, sobre os dados populacionais dos anos 2019 a 2023. A revista inglesa Economist, por exemplo, já coloca o número de mortos pela pandemia em torno de 17,4 milhões - o que faz com que as mortes pela covid já ultrapassem o número de vítimas da I GM. O mundo mudou, a miséria material e espiritual cresceu, os empregos mudaram, as formas de sociabilidade se alteraram e, além disso, a pandemia catalisou uma convergência de tendências críticas em curso nas sociedades (ambientais, dos processos de reprodução social, do agenciamento das subjetividades pelas redes…) que nos remetem para um mundo de instabilidade, dilapidação e expectativas decrescentes. A compreensão consciente dessa mutação complexa é o fator que nos permitirá incidir com eficácia sobre a realidade social.
12. A pandemia mostra o caráter cada vez mais regressivo dos nacionalismos. A pandemia é um problema global da humanidade que, como outros deste escopo, só pode ter uma solução global, na governança e gestão compartilhada dos bens comuns - que devem incluir a natureza, o conhecimento, infra-estruturas e sistemas de acesso a direitos. Mas a reação a ela, das medidas sanitárias à concepção, produção e distribuição de vacinas foi e continua sendo nacionalista, penalizando os países mais vulneráveis e impedindo a solução dos problemas. A distância entre “centro” e "periferia'' está sendo intensificada pela pandemia. Isto se mescla com à redefinições geopolíticas, nas quais a China emerge como um novo pólo do capitalismo e um novo imperialismo. Classe e nação são agenciamentos coextensivos à modernidade e ao capitalismo e jamais deixam de comportar ambiguidades. As nacionalidades devem ter o direito de disporem de si próprias, formando seus estados; todavia, exceto nos países imperialistas, elas vem se mostrando impotentes para se confrontarem com as forças dominantes do mercado mundial. A tonalidade dominante dos nacionalismos vem se alterando significativamente: os nacionalismos progressistas das revoluções anticoloniais e o anti-imperialismo campista do pós-II GM foram substituídos por nacionalismos conservadores regressivos e xenófobos. Eles constituem hoje uma verdadeira “internacional nacionalista”, reacionária como bem caracteriza John Feffer. Frente aos desafios postos pelas crises pandêmica e climática, os movimentos anti-imperialismos e as rupturas com a globalização neoliberal, a começar pelas que envolvem a governança da saúde, biotecnologias e transição energética, devem ter um caráter altermundialista.
13. Os governos agem como autômatos dos mercados na defesa do status quo; a crítica a ele vem sendo capitalizada pela extrema-direita. As demandas imediatas de reprodução sistêmica quase sempre se impõem. Há exceções, mas a margem de autonomia da política frente aos poderes econômicos vem se revelando mínima, como já vínhamos observado na questão climática. O processo de captura e esvaziamento da autonomia do poder político pelos detentores do poder econômico era percebido por setores da juventude desde a virada do século e continua aprofundando a crise de legitimidade da democracia liberal. A extrema-direita busca catalisar a revolta contra esta “ilegitimidade”, denunciando as elites políticas tirânicas e corruptas em sociedades “empreendedoras”, globalizando o ódio, como caracteriza Pankaj Mishra. A esquerda social-liberal e progressista, que no início da pandemia parecia propor um keynesianismo mais radical para a constituição, reconstituição ou ampliação de sistemas e redes de amparo às populações mais vulneráveis (com apoio de setores do centro político neoliberal), abandonou esse esboço de delimitação política, limitando-se a respaldar o globalismo neoliberal cosmopolita na defesa dos sistemas de saúde pública. Polarizada entre globalistas (liberais, social-liberais e defensores do capitalismo de estado chinês) e neofascistas e conservadores ultraliberais anti-globalistas, a cena política continuará se deslocando para a direita enquanto não emergir um terceiro vetor, antissistêmico desde a perspectiva da emancipação humana e internacionalista.
14. A hipermobilidade do capitalismo atual é uma irracionalidade sistêmica, só superável com uma desaceleração da economia. O terreno onde enfermidades de transmissão aérea e outras epidemias podem circular sem barreiras é a hipermobilidade internacional de pessoas, mercadorias e capitais, decorrente do barateamento das viagens aéreas. Uma novidade recente na história, estimulada pela publicidade, ela pode ser revertida, como mostra a experiência da Suécia. Neste mundo transformado em um grande mercado e irracionalmente acelerado, a estrutura econômica e social existente - do turismo de massa à aviação comercial - busca restabelecer as rotinas pré-pandemia, com a volta das mesmas atividades, do mesmo jeito. Quase nenhum governo buscou aplicar quarentenas efetivas - como fez, por 18 meses, a Nova Zelândia - e políticas de solidariedade social para conter o vírus. 50 aeroportos movimentaram, em 2019, mais de 44 milhões de passageiros por ano; foram transportados em vôos internacionais 4,5 bilhões de pessoas (apenas 2,1% na África, registre-se). Irracionalidade ainda maior são os cruzeiros marítimos que entretêm a classe média afluente globalizada. E, igualmente, o transporte internacional de mercadorias, que se expandiu não em função das necessidades das populações, mas dos interesses das cadeias globais de geração de valor das corporações. Todos buscam restabelecer o tráfego mais intenso possível, “movimentar o mercado” e a “venda de experiências”, mas este é um patamar insustentável do ponto de vista ambiental, pelas emissões de carbono e impacto sobre a biodiversidade, e por suas consequências humanas, pelo estresse que gera e seu impacto sobre a diversidade cultural.
15. O ciclo longo de baixo crescimento da economia capitalista, aberto em 2008, se consolida. A variante ômicron é uma notícia ruim para as economias. Michael Roberts tem razão quando enfatiza que, sem a destruição ou a desvalorização de parcelas significativas do capital, as taxas de crescimento são cada vez menores, de um lado; e quando destaca que esta crise deixará uma enorme cicatriz econômica, de outro. François Chesnais vai dizer que um novo regime de baixo crescimento se anuncia. Além dos conflitos geopolíticos, as contradições estão no interior daqueles que defendem o status quo neoliberal cosmopolita. Projetos de reforma do sistema - que envolvem a questão ambiental, a reconstituição de uma certa teia de amparo social, elementos de uma desconexão ou reinternalização de cadeias de valor, o controle das corporações de plataformas... - como aquele apresentado por Biden no início de 2021, vem se chocando com uma intensa resistência ultra-liberal, que o associa ao estado de bem-estar social e ao ambientalismo. Estes temas devem ser retomados como alternativas sistêmicas por qualquer esquerda que pretenda persistir enquanto tal.
16. A pandemia aprofunda o questionamento do sentido do trabalho precário e do horizonte de vida sob o neoliberalismo. O neoliberalismo deslocou o eixo do social do tempo para o espaço, mas a pandemia intensificou isso com a maior mediação digital das relações humanas. É um fenômeno contraditório, essencialmente beneficiando as corporações de plataforma e ampliando a precarização do trabalho, golpeando ainda mais o assalariamento. Mas certas parcelas de trabalhadores constatam o enorme custo pessoal que trabalhos sem sentido ou que exigem grandes deslocamentos representam. Percebem como sua qualidade de vida pode melhorar se conseguem rejeitar seja os modos de deslocamento e inserção no espaço, seja o automatismo do “eterno presente” sem perspectivas que se apresentam para eles. Há um novo surto de ativismo entre assalariados e camponeses. Além disso, a pandemia - associada às tecnologias de trabalho remoto - estimula, ainda que em setores minoritários, a percepção de novas formas de territorialização indispensáveis à qualidade de vida e ao bem viver. Estas não são reflexões filosóficas, mas constatações práticas do enorme movimento de demissões ou anti-trabalho que vem se expandindo na Europa, EUA e, de outra forma, também na China, na forma do tangping (“fique plano”).
17. A pandemia está vinculada ao sistema alimentar fossilista e exige sua substituição. Ela se origina de uma ruptura do metabolismo entre sociedade e natureza, alertando para as zoonoses que estão na origem das doenças infectocontagiosas, decorrentes da criação de animais confinados ou da intromissão dos seres humanos em sistemas silvestres. Sem uma redefinição global e sistêmica da relação da humanidade com os animais e os ecossistemas, novas epidemias e pandemias assolarão as décadas vindouras - além das comorbidades crescentes decorrentes dos alimentos ultraprocessados e do sedentarismo. O mundo em que as doenças infectocontagiosas recuavam perante a combinação de saneamento e vacinação ficou para trás. A expansão neoliberal nos coloca permanentemente à espera da “próxima peste”. A OMS está iniciando a negociação de um acordo sobre como lidar com as próximas pandemias. A atual pandemia iluminou corretamente, ao lado do sistema energético baseado em combustíveis fósseis, a natureza destrutiva do sistema alimentar alicerçado na grande indústria agropecuária capitalista. O debate sobre as raízes da covid-19 auxiliou a que a grande agropecuária predadora, a maior responsável pelo desmatamento da Amazônia, se tornasse o alvo privilegiado dos movimentos ecológicos mundiais e estreitou sua solidariedade com a luta dos povos indígenas e das comunidades tradicionais. Além disso, o aquecimento global exige que a pecuária bovina seja, no fundamental, eliminada.
18. A multifacetada crise ambiental é a maior ameaça existencial para a civilização. A atual crise pandêmica é, em um sentido histórico, muito mais profunda do que as crises capitalistas anteriores porque expressa a emergência de uma multifacetada crise ambiental - resultado cumulativo de 250 anos de Antropoceno e três quartos de século da Grande Aceleração. Aponta para um colapso que só pode ser evitado por uma rápida e intensa virada em aspectos centrais da economia e da sociedade contemporâneas. A crise pandêmica não é uma “pequena onda'' em comparação com o tsunami ambiental que virá; é o tsunami que se forma e já golpeia o mundo - agora, não em 80 anos! Mas então o tsunami terá crescido a ponto de tornar a vida de bilhões de pessoas nos trópicos impossível. A emergência climática opera sobre os efeitos cumulativos do carbono hoje existente na atmosfera, produzindo ondas de calor e secas extremas em vastas regiões, derretimento das geleiras e disrupção dos ciclos hidrológicos, crises hídricas recorrentes em muitas partes, aumento das oscilações climáticas com furacões e tornados mais poderosos, desertificação, incêndios florestais endêmicos, redução das calotas glaciais... Assim, a degradação da Floresta Amazônica se aproxima de seu ponto crítico e impacta o sistema climático e os ciclos hidrológicos de toda a América do Sul. A busca por uma transição energética dentro do sistema não tem hoje uma solução visível, porque a infra-estrutura energética é bastante engessada nos combustíveis fósseis e sua efetivação envolve arbitrar perdas gigantescas. O movimento nesta direção será caótico e envolverá desequilíbrios sistêmicos (desabastecimento, inflação, recessão…).
19. A questão do crescimento deve dar lugar à questão da redistribuição. O crescimento é, dentro da forma mercantil da riqueza, um mecanismo para se fugir do conflito redistributivo; mas ela só é capaz de processar os influxos quantitativos do valor, não a definição qualitativa das necessidades. A manutenção do crescimento não é mais viável sem acelerar as manifestações da crise ambiental - inclusive novas pandemias. A expansão da economia é acompanhada de uma mutação de parte importante dessa “riqueza” na forma de mercadorias industriais, fruto das revoluções tecnológicas anteriores e da dinâmica do consumo de massas clássico, apoiadas no crédito, obsolescência programada e descartabilidade. Combustíveis fósseis, plásticos, grande parte da agricultura industrial ou dos meios de transportes (para não falarmos das armas ou da publicidade) se tornam, cada vez mais, forças destrutivas. Embora a humanidade seja hoje capaz de atender as necessidades de seus membros - sob outra estrutura de necessidades -, não o faz. Voltamos aqui ao problema da mediação digital das relações sociais - inclusive de produção - pelas plataformas corporativas. Elas se tornaram um vetor fundamental de reprodução da estrutura de necessidades estabelecida pelo mercado.
20. Consolida-se a dialética da modernidade, com o horizonte da história se transmutando do progresso para a catástrofe. A ideologia teleológica do progresso associada ao capitalismo e assumida pelo movimento socialista tornou-se, no século XX, essencialmente regressiva. Depois da “era das catástrofes” (1914 a 1945), os “trinta anos dourados” pareceram reabilitá-la, mas este foi um efeito de superfície da “grande aceleração”. Há pelo menos três décadas isso vem se revelando empiricamente descabido; crises ambientais, saque dos comuns, desterritorialização, perda de direitos e precarização da existência, crise sanitária assomam como contrapartida da expansão quantitativa dos mercados. Para a esquerda, as teses Sobre o conceito da História, redigidas por Walter Benjamin em 1940, se perfilam, ao lado das Teses sobre Feuerbach de Marx, como definidoras de sua identidade política. Benjamin empreende uma crítica radical da ideologia do progresso, do tempo linear e vazio e da relação espoliadora da natureza que grande parte dos socialismos compartilhava com o liberalismo (e que o social-liberalismo ainda propaga). Quando “adiar o fim do mundo”, impedir “a queda do céu” ou acabar com o “blá-blá-blá” que nos impede de combater o incêndio da “casa comum” se tornam imagens fortes para descrever a situação do capitalismo global, o deslocamento das referências políticas se torna uma imposição avassaladora. Há um gap cognitivo, mas uma possibilidade de comunicação, entre os que conheceram a afluência no passado e são capazes de dimensionar a profundidade das perdas e a geração que hoje se torna adulta com o horizonte da catástrofe, porém um abismo afetivo com as gerações intermediárias que vivenciam essencialmente desorientação e ressentimento. O horizonte ameaçador da catástrofe nunca impediu nem os movimentos ambientais, nem os povos indígenas de lutarem, nem desestimula a juventude que se identifica com Greta Thunberg ou o Extinction Rebelion a se mobilizar globalmente. Grande parte da esquerda deve reaprender a partir daí, reencontrando um autêntico caminho internacionalista e cosmopolítico, acolhendo também a defesa da Terra.
21. A crise pandêmica evidencia a globalização inédita da política. A realidade global é onipresente. Há uma interdependência crescente de grande parte dos processos vitais para humanidade, não só ambientais e sanitários, mas também dos sistemas técnicos que sustentam nossa civilização - da internet às redes de transportes, da energia à logística de produção e comércio. É a partir das experiências na luta por suas condições de vida que as classes constituem-se como classes no terreno internacional, no sentido que E.P. Thompson dá ao termo classe, mas também como proposta para toda a sociedade e como horizonte de futuro - o sentido que Gramsci dá ao termo hegemonia. O mesmo vale para quase todas as formas contemporâneas de agenciamento - setores oprimidos, movimentos ecológicos, religiões, filosofias e espiritualidades universalistas. A formação fragmentada e concorrente das identidades que se multiplicaram com o nome de “pós-modernismo” é um epifenômeno, expressão do perspectivismo produzido pela generalização do individualismo mercantil, da pseudo-concreticidade do mundo tal como apreendida pela consciência reificada. A constituição de sujeitos políticos está, porém, sobredeterminada por processos universalizantes que articulam o local (os territórios, os corpos, as lutas) e o global - o glocal. Até mesmo a luta dos povos indígenas por sua manutenção passa a ser hoje justificada por seu papel essencial essencial para toda a humanidade, como guardiões dos territórios. A cultura contemporânea está completamente interconectada e as políticas que contam são definidas na arena internacional, sendo aí também sistematizadas como projetos políticos. Isso vale para o globalismo neoliberal cosmopolita e para o ultraliberalismo nacionalista, autoritário e social-darwinista. Mas vale essencialmente para qualquer esquerda que queira se estabelecer como força antissistêmica e se tornar cosmopolítica. As tendências e padrões políticos estabelecidos a partir dos protestos de Seattle, em 1999, são orgânicos ao mundo contemporâneo e perdurarão, com seus fluxos e refluxos, pelas próximas décadas.