José Correa Leite, novembro de 2019
[Este texto, escrito com o objetivo de fazer um balanço das políticas ambientais dos governos petistas, foi originalmente publicado com o título "O petismo no poder: 'neodesenvolvimentismo' e predação ambiental" como um capítulo do livro "O Pânico como Política: o Brasil no imaginário do lulismo em crise”, organizado por Fábio Luis Barbosa dos Santos, Marco Antonio Perruso e Marinalva Oliveira (Rio de Janeiro: Mauad, 2020).
A sua divulgação parece oportuna quando a Usina de Belo Monte - um projeto que era apresentado por Dilma Roussef como essencial ao seu projeto de Brasil e atacado por todo o ambientalismo como uma excrecência injustificável - está operando com apenas 3% de sua capacidade. Belo Monte teve e continua tendo um impacto não apenas ambiental, mas também social devastador sobre as populações indígenas e ribeirinhas da região.
Mas lembremos que entre as heranças de Dilma Roussef está a aprovação de um novo Código Florestal em 2012, que liberou o agronegócio predador de uma série de restrições, com consequencias desastrosas, que agora se cobram seu preço na crise hídrica e energética que atravessa o país. O Brasil é um dos países do mundo mais vulneráveis às mudanças climáticas antropogênicas, em especial pelo desmatamento da Amazônia, do Cerrado e do Pantanal, e a política do petismo no poder de estímulo ao agronegócio e ao extrativismo mineral para produção de commodities aprofundou muitos dos problemas estruturais vividos atualmente pela sociedade brasileira. Foi estrategicamente, frente à emergência climática que assomava, uma política de colapso. JCL]
Quando a extrema-direita e projetos neofascistas governam o país, é fácil lembrarmos com nostalgia das administrações petistas que governaram o Brasil de 2003 a 2016. E, no caso da área ambiental, mais ainda: Brumadinho, estímulo a incêndios na Amazônia, devastação das praias do Nordeste, a liberação de todo tipo de agrotóxicos, autorização para o plantio de cana na Amazônia, desmonte de todo o sistema de gestão ambiental por Ricardo Sales à frente do Ministério do Meio Ambiente (MMA)... A lista parece infinita.
No entanto, isso é resultado não só de um secular passado de predação ambiental e humana e de uma guinada da conjuntura, mas também da inação mais recente do petismo no governo, sob Lula e Dilma, por suas escolhas por uma governabilidade pactada com setores reacionários, com recuos cada vez maiores frente ao que um país civilizado demanda. Eliane Brum, que acompanhou a construção da usina de Belo Monte nos governos Lula e Dilma, que nem mesmo a ditadura militar foi capaz de executar, afirma: “Não é uma obra, mas uma engenharia de destruição. Não uma obra, mas um país. Belo Monte é a materialização de uma perversão: como um projeto autoritário pode ser imposto na democracia, a partir de uma coalizão de interesses e de omissões interessadas. Ou, como o crime pode acontecer dentro da lei” (BRUM 2019, 14). Revisitar os canteiros dessa e de outras ruinas é a única maneira de não fraudar a história e entender o presente.
A predação ambiental como alicerce do Brasil
Mas comecemos pelas raízes da “coalizão de interesses e de omissões interessadas”. Como afirma Luiz Marques,
“duas, e apenas duas, são as premissas da história que nos fez o que somos: (1) durante três quartos de sua história, isto é, de 1500 a 1888, a sociedade brasileira foi, em sua maioria, composta de escravos e de escravistas ou beneficiários da escravidão. O Brasil foi de longe o maior importador de escravos do antigo sistema colonial e o último país do mundo ocidental a abolir “oficialmente” a escravatura; (2) durante toda sua história de pouco mais de 500 anos, mas, sobretudo, nos últimos 50 anos, as estruturas socioeconômicas fundamentais da sociedade brasileira constituíram-se através da ocupação predadora e devastadora de seu território, em sentido leste-oeste, isto é, do litoral em direção ao interior, até atingir, após os anos 1960, os grandes biomas do Brasil central e norte-oriental: o Pantanal, o Cerrado e a Amazônia” (MARQUES 2012: 163).
Essa predação da natureza como fundamento da formação do país vem sendo destacada pela história ambiental, em trabalhos como os de Warren Dean (1995) e José Augusto de Pádua (2002). Os “ciclos” econômicos no Brasil colonial, imperial e republicano foram ciclos de predação ambiental e humana, pragas de gafanhotos que destruíram tudo à sua frente. Mas a predação se acentuou nos marcos da “grande aceleração” do Antropoceno que caracterizou o crescimento da economia capitalista mundial após a II GM (MCNEILL e ENGELKE 2015), etapa que correspondeu no Brasil à consolidação e posterior crise do nacional-desenvolvimentismo. Se quatro séculos de ocupação colonial ou neocolonial haviam devastado a Mata Atlântica, reduzindo-a em 1993 a menos de 8% de sua área original de 1,35 milhões de km2, foi o nacional-desenvolvimentismo que iniciou a destruição do interior do país.
O desenvolvimentismo como ideologia deconstrução nacional
O desenvolvimentismo emerge como perspectiva alternativa ao lugar tradicional do Brasil como país agroexportador. Deveria ser, então, a negação do legado da escravidão e da predação ambiental. Até então a “civilização” era uma imitação da vida europeia, incapaz de absorver a maioria da população na “nação” e demandando a eugenia como política de estado. Depois da I GM e do banho de sangue em que a “civilização” tinha mergulhado e das revoluções russa e mexicana – que propõe a “raça cósmica” como resultado da mestiçagem (Vasconcelos) –, a modernidade foi sendo identificada com a industrialização e com a ideia de uma nação que fosse capaz de aceitar o povo que tinha. O progresso ganhava um movimento artístico original no Brasil, a antropofágica, capaz de absorver índios e negros no mundo da máquina e do dinamismo moderno, do capitalismo urbano e industrial, das classes trabalhadoras disciplinadas e educadas (SEVCENKO 2009).
Daí constitui-se gradativamente, após a ruptura de 1930, um primeiro projeto real de nação para o Brasil. O desenvolvimentismo ganha a dimensão de política de construção nacional especialmente a partir da ditadura do Estado Novo (1937-45). Entre seus postulados fundamentais estavam: “i) a industrialização integral é o caminho para superar a pobreza e o subdesenvolvimento do Brasil; ii) não há possibilidade de conquistar uma industrialização suficiente e racional do país mediante o jogo espontâneo das forças do mercado, e por isso é necessário que o Estado planifique o processo; iii) o planejamento deve definir a expansão desejada dos setores econômicos e os instrumentos para promover essa expansão; iv) o Estado deve, ainda, orientar a expansão, captando e fornecendo recursos financeiros, e realizando investimentos diretos naqueles setores nos quais a iniciativa privada é insuficiente” (BIELSCHOWSKY 2009: 24). A CEPAL e o do ISEB deram consistência a esse projeto nacional-desenvolvimentista – que foi, a cada momento, contestado, em maior ou menor grau, pelo pensamento liberal-conservador, vinculado aos interesses agroexportadores.
Mas, no nacional-desenvolvimentismo vigente até a década de 1980, a democracia sempre foi mais uma promessa para o futuro do que uma realidade. Quando se estabilizou alguma democracia, após o final da ditadura militar, o desenvolvimentismo tinha se esgotado e ela se deu em marcos liberais-conservadores. Assim, a modernidade não chegava no Brasil como acerto de contas com o passado e democracia, mas pela mão do Estado demiurgo da nação, que a construía desde cima, autoritariamente. Historiadores e cientistas políticos apresentam, não sem razão, a república populista como um avanço do país no sentido da democracia (GOMES 2019). Mas também somos, na bela fórmula de Elide Rugai Bastos (2006), em sua análise da obra de Gilberto Freire, “criaturas de Prometeu”, daquele que nos presenteou com o mito da democracia racial e com as figuras patriarcais construtoras da nação.
Isso fica mais claro em pelo menos duas dimensões perversas do desenvolvimentismo. De um lado, mesmo nesse período dito democrático (1945-1864), o pacto populista mantinha a massa da população (agrária) sob a tutela dos “coronéis”. A CLT e o trabalhismo destinavam-se a uma pequena parcela da classe trabalhadora, clientela das elites estatais reformadoras. De outro, o desenvolvimentismo se associou rapidamente à ideologia da integração nacional, iniciada nos governos de Vargas e Juscelino Kubitschek, concepção consolidada pelos ideólogos da Escola Superior de Guerra, durante a ditadura militar, com o lema “integrar para não entregar”. Modernizava-se” o extermínio dos povos indígenas: Carajás, Tucuruí, Transamazônica... "Grande parte da coletividade militar expressa a ideia de um meio ambiente exclusivamente brasileiro, revelando (...) uma postura de afirmação da soberania nacional nos moldes da doutrina de segurança nacional aplicada aos tratos ambientais, que se materializada pela crença hegemônica na ameaça da internacionalização da Amazônia” (ANDRADE JUNIOR 2005: iv).
Luiz Marques destaca que essa ideologia da “integração nacional” exprime os interesses de amplos setores da sociedade:
“(1) os tradicionais beneficiários do agro-negócio são, obviamente, os mais imediatos interessados na destruição do que resta da manta florestal brasileira. Trata-se de uma tentacular estrutura de interesses que congrega os pequenos, médios e grandes proprietários de terra, os laboratórios (...), os traders multinacionais, as construtoras de usinas hidrelétricas na floresta e de estradas para o escoamento da produção agropecuária, os grandes frigoríficos, os grandes distribuidores do varejo, o sistema financeiro e administrativo que irriga e gerencia os recursos dessa estrutura e, enfim, os partidos políticos e demais grupos de pressão. Em suma, toda a malha de poder econômico e político do país, com suas articulações internacionais; (2) os intelectuais nacionalistas compõem a frente ideológica. Dispostos num arco que vai da extrema-direita à extrema-esquerda, eles sustentam que a destruição da floresta é o preço inevitável a ser pago pelo crescimento econômico e que toda tentativa de obstruir esse processo serve (...) os interesses das grandes economias globais, as quais, destruídas suas próprias florestas, querem agora impedir nosso desenvolvimento pela destruição da “nossa” floresta; (3) os movimentos sociais que toleram a ocupação da floresta pelos excedentes populacionais urbanos e rurais, historicamente sedentos de “reforma agrária”. Como a propriedade agrária do sudeste brasileiro é em geral produtiva, esses movimentos apregoam que tais contingentes de trabalhadores “sem terra” têm o direito moral de se apropriar das terras “improdutivas”, categoria que não se distingue claramente das florestas; (4) enfim, os ideólogos da “sustentabilidade”, em geral economistas e engenheiros agrícolas (...) tendentes a demonstrar (...) a possibilidade de incrementar uma economia de escala na Amazônia, integrada ao mercado nacional e internacional, sem destruir sua floresta” (MARQUES 2012).
Esse bloco, flexível e heterogêneo, sempre abarcou os donos do poder, tornando o Brasil um “construtor de ruinas” (BRUM 2019). Ele perdeu algum espaço de poder no auge da industrialização nacional-desenvolvimentista depois de 1930, e em especial entre 1956 e 1980. Mas o recuperou integralmente na Terceira República, quando a Constituição adotada em 1988 reforçou o federalismo e adotou o “presidencialismo de coalizão”, ambos fortalecendo o poder oligárquico de raiz agrária.
Brasil: a construção interrompida
A integração da economia brasileira ao capitalismo global nos marcos neoliberais, a partir da posse de Collor como presidente, em 1990, restaurou o poder tradicional do agronegócio e das atividades extrativistas no centro da política brasileira. Ela orientou as definições estratégicas tomadas nas décadas seguintes, em particular a forma incondicional pela qual o Brasil aderiu à Organização Mundial de Comércio em 1994 e ao seu fundamento, o Tratado Relativo à Propriedade Intelectual e Similares (TRIPS) (GONTIJO 2005). A prioridade dada à defesa das exportações primárias em detrimento das industriais tornou-se, desde então, com altos e baixos, o eixo das relações econômicas internacionais do Brasil.
1988-1990 representou, nas palavras de Celso Furtado, a interrupção do processo de construção nacional do Brasil (FURTADO 1992), que, como observamos, não deve ser mistificado como democrático. Pode-se dizer que ele tinha potencialidades que iam nessa direção e que ficaram evidentes entre 1978 e 1989 (ao mesmo tempo que asfixiava outras, como o enfrentamento das questões racial e ambiental).
Instaurou-se, desde então, um processo de desindustrialização do país. “Em 1980 o Brasil era o sexto maior produtor de bens industriais do mundo e respondia por 4,1% da produção dos maiores fabricantes mundiais. Na ocasião, a China estava (...) com apenas 1,65% dessa produção. No ano passado, a China estava no topo da lista, concentrando 24,2% da produção dos 30 maiores países, e o Brasil já detinha apenas 1,86% do total”. Para a jornalista que levanta estes dados, entre os motivos da brutal desindustrialização do país estão: a saída do Estado como indutor e investidor em alguns setores industriais e em infraestrutura, a abertura comercial dos anos 1990 e o fracasso das tentativas de políticas industriais nos anos 2000, que apostaram em setores como pouca densidade tecnológica (NEUMANN 2019). Mas ela não menciona o essencial: a prioridade dada à defesa os interesses agroextrativistas à frente dos industriais.
Ao mesmo tempo, o país se tornou mais poroso, de um lado, às pressões internas dos movimentos sociais e dos povos indígenas, e, de outro, às pressões internacionais pela preservação da Amazônia. A realização, no Rio de Janeiro, em 1992, da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Eco 92, teve um importante papel nesse sentido. Os anos 1990 viram um crescimento tanto na demarcação das terras indígenas como na formação de reservas e áreas de preservação.
Sob a presidência de Fernando Henrique Cardoso (FHC), sempre atenta às pressões internacionais, avançou-se no monitoramento e combate ao desmatamento na Amazônia, sancionou-se a Lei de Crimes Ambientais e criou-se o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza, com o estabelecimento de diversos parques nacionais e reservas indígenas e florestais. Seu governo também aumentou de 50% para 80% a área de reserva legal nas propriedades rurais da Amazônia. FCH sustentava um ambientalismo de mercado, em especial nas negociações internacionais ligadas ao Tratado de Kyoto (a criação de mercados de carbono ligados aos Mecanismos de Desenvolvimento Limpo). Era, frente aos governos anteriores, um patamar de tratamento da questão ambiental qualitativamente superior – agora em um país mais permeado pelas dinâmicas do ambientalismo mundial.
O PT, do desenvolvimentismo ao neodesenvolvimentismo
O PT foi marcado, desse seu nascimento, por uma combinação de vertentes políticas que carregavam componentes produtivistas e desenvolvimentistas amplamente hegemônicos no seu interior: o movimento sindical dos anos 1970 e 1980, a esquerda marxista tradicional, os movimentos populares desse período – aí incluído o MST, fundado em 1984. Mas o PT também carregou, desde o início, uma vertente do “ecologismo dos pobres” (ALIER 2007), expressa por Chico Mendes e Marina Silva, uma sensibilidade, todavia, muito minoritária em um partido urbano e do Sudeste e Sul do país. Na década de 1980, todos esses setores coexistiram de forma bastante federativa. Quando o PT começa a sistematizar um projeto de poder e uma estratégia para alcançá-lo, no final da década, gradativamente vai se impondo a visão desenvolvimentista, em uma resposta apenas aparentemente coerente. O mundo já tinha transitado da regulação keynesiano-fordista do pós-guerra para o neoliberalismo e, no Brasil, as classes dominantes tinham aderido à nova order global do capitalismo, aceitando um lugar qualitativamente inferior para o país na divisão internacional do trabalho.
Menções a um outro modelo, nunca explicitado, são feitas e permaneceram presentes em documentos por muito tempo. Assim, em seu 6º Encontro Nacional, em junho de 1989, poucos meses depois do assassinato de Chico Mendes, há dois item da resolução que versam sobre o tema, o IX, “Salvar a Amazônia e defender a vida” (com três curtos parágrafos, em defesa dos povos da floresta, em defesa da soberania brasileira sobre a região – ecoando o pensamento da “integração nacional” – e propondo um Pacto Amazônico com os demais governos da região), e o último item, o XIV, sobre “Ecologia e meio ambiente”. Apesar de uma menção à questão urbana, ele trata da questão agrária, da Amazônia, Pantanal e Cerrado, Litoral, Mata Atlântica e Zona Costeira, Mineração e garimpagem e Agrotóxicos, sem discutir o “modelo”. Isso parece relevante, mas ocorre em um conjuntura onde já se tinha o acidente da fábrica da Union Carbide em Bophal na India em 1984 (mesmo ano em que ocorre o desastre da Vila Socó, em Cubatão), a explosão da Usina Nuclear de Chernobyl em 1986 e o relatório da ONU, coordenado por Gro Brundtland, “Nosso futuro comum” em 1987. Um Partido Verde tinha sido fundado no Brasil em 1986, trazendo para cá os debates europeus sobre o tema.
Na década de 1990, o PT vai gradativamente se integrando na institucionalidade, em especial sob os governos FHC (1994-2002): o partido ganha eleições para prefeituras e governos estaduais, fortalece suas bancadas parlamentares em todos os níveis, vai perdendo sua base sindical, desconstruída pelas políticas neoliberais, sindicalistas vão entrando nos conselhos de empresas estatais e privatizadas como representantes dos fundos de pensão. O partido adota como estratégia impulsionar, através da conquista do governo federal, uma "revolução democrática" no Brasil. E, ao mesmo tempo, aceita os marcos definidos pelo Plano Real: o tripé macroeconômico e a busca de uma suposta inserção soberana e competitiva no capitalismo globalizado. A culminância desse processo é a Carta ao Povo Brasileiro, de 2002, em que Lula candidato pacta o respeito aos “contratos” e a continuidade da política econômica de FHC.
O desenvolvimento torna-se cada vez mais diluído, um nome genérico para a elaboração de um programa que dialoga com a reorganização neoliberal da economia, do Estado e da sociedade, nos quais reivindicações de múltiplos movimentos são incorporadas em uma série iniciativas cada vez mais diluídas e anódinas.
Os governos Lula: o “neodesenvolvimentismo” e o retrocesso ambiental
Chegando ao governo em janeiro de 2003, Lula buscou trazer as demandas dos mais variados setores da sociedade, dos usineiros aos boias-frias, do agronegócio aos povos indígenas, das camadas médias urbanas ao grande capital financeiro, para dentro de seu governo, evitando toda proposta de participação popular efetiva pudesse reduzir sua margem de manobra para negociar a condução do poder. Por outro lado, multiplicou os conselhos consultivos. O nacional-desenvolvimentismo no sentido forte do termo, inseparável da construção de uma nação brasileira, vai se esmaecendo em um “neodesenvolvimentismo” que conduz os interesses do bloco no poder nos marcos da globalização neoliberal, aceitando a desconstrução nacional e trabalhando propostas complementares nas suas margens (em oposição direta ao que já tinham feito a Coreia, a China e a Índia).
Lula levou para o Ministério do Meio-Ambiente Marina Silva, formada na luta dos povos da floresta e senadora pelo Acre depois de 1994. Ela permaneceu no posto até maio de 2008. Mas foi todo o tempo espremida pelos embates com ministérios mais poderosos, a começar pela Casa Civil, primeiro com José Dirceu e depois com Dilma Rousseff.
O primeiro confronto foi estabelecido pelo agronegócio, que imediatamente buscou regularizar os cultivos transgênicos que vinham sendo introduzidos ilegalmente no país. De 2003 a 2008, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança foi o foco de embates sucessivos, com a aprovação de uma “lei Monsanto”, em que os transgênicos foram liberados acompanhados de seu par inseparável, os agrotóxicos. Os “analistas políticos não tiveram muita dificuldade em explicar porque o governo Lula e o PT mudaram tão radicalmente sua posição em relação aos transgênicos: a necessidade de constituir uma base aliada no Congresso, atraindo o PMDB e outros pequenos partidos que se agrupam na bancada ruralista, representativa do agronegócio brasileiro. Os custos políticos dessa mudança radical ficaram por conta do esgarçamento das relações entre o núcleo duro do governo de um lado e os ministérios do Meio Ambiente e Desenvolvimento Agrário de outro. Na sociedade civil, o governo Lula perdeu o apoio de setores influentes do movimento ambientalista” (LISBOA 2011: 20). Mas esse é apenas um terreno das novas amizades: em 2007, Lula chama os usineiros de cana-de-açucar de “heróis mundiais”.
Lula também confrontou o acúmulo anterior do PT ao desengavetar o projeto de Transposição do Rio São Francisco, ao invés de implementar o premiado projeto “Um milhão de cisternas”. Ele se confronta com a oposição da I Conferência Nacional do Meio Ambiente e com a greve de fome de Dom Luiz Cappio, bispo de Barra, em 2005, mas não recua e encarrega o Exército de iniciar as obras. Sob a coordenação do Ministério da Integração Nacional, a Transposição tinha como prioridade levar água ao polo petroquímico de Pecém, no Ceará, e à agricultura comercial de exportação de frutas.
Em 2007 é retomado o Programa Nuclear brasileiro, com o sinal verde para a obsoleta e insegura Usina de Angra III, a promessa de um pacote de novas usinas na beira do São Francisco e o domínio do ciclo completo do urânio para a construção de um submarino nuclear. A mina de urânio de Caetité, na Bahia, entrementes, era objeto de todo tipo de denúncias pela insegurança a que submetia seus trabalhadores e a população vizinha.
Em meio a esses embates, crescia o discurso – assumido por Lula e seus ministros mais poderosos – do meio ambiente como obstáculo ao “progresso”.“O modelo de desenvolvimento adotado no Brasil, desde sempre (...) trata o meio ambiente como uma maldição, algo a ser ultrapassado, na busca de um paraíso pavimentado, asfaltado e ascético” (BENSUSAN e RAMOS 2017: 167). E esse modelo se tornava, pelo mundo afora, visivelmente cada vez mais regressivo.
De um lado, o boom chinês das commodities deslocava o centro das exportações brasileiras cada vez mais para os produtos agrícolas e minerais. Gudynas e Acosta caracterizam a reprimarização da economia pelos governos progressistas, mesmo quando utilizam parcela dos recursos ai auferidos para combate a pobreza e redução das desigualdades, de um “novo extrativismo”. Gudynas vai falar de um “progressismo canibal” que cria a base social de sua oposição. Como já afirmei em outro texto:
Manteve-se uma modalidade de acumulação de origem e natureza colonial no trânsito do extrativismo tradicional ao neoextrativismo redistributivo ou progressista. É um modelo focado no crescimento mediante a apropriação ampla de recursos naturais, em redes produtivas pouco diversificadas, voltadas à exportação. Os centros urbanos, inseridos nas lógicas de consumo capitalista, não sofrem diretamente os impactos do extrativismo. Enquanto isso, os territórios onde se realizam as atividades extrativistas assistem à degradação ambiental e dos modos de vida locais, com a violência atrelada a uma estratégia de criminalização do protesto social que se coloca contra o extrativismo (LEITE 2018: 106-7).
De outro lado, como parte dessa opção neoextrativista na conjuntura global de boom das commodities, o governo de Lula e sua ministra Dilma elegiam a exploração do petróleo na camada do pré-sal como o grande projeto “industrial” do Brasil. Descoberto em 2006 no litoral brasileiro do Espírito Santo a Santa Catarina, na zona econômica exclusiva do Brasil, em profundidades que variavam de 5 mil a 8 mil metros da superfície do mar, o pré-sal foi apresentado por Lula como o “bilhete premiado” do país.
Por fim, agora sob a batuta de Dilma, o governo Lula procura impulsionar o crescimento do PIB. “O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Sul-Americana (IIRSA) e o Plano Amazônia Sustentável (PAS) formam um vasto feixe de eventos hegemônicos. Eles apresentam alto poder de reconfiguração da Amazônia, melhor dizendo, da Pan-Amazônia, em função dessa estratégia que tenta impor (...) as normatizações necessárias para torná-los dóceis ao uso de seus recursos pelas corporações e, em última instância, pelos territórios cêntricos da globalização neoliberal” (RODRIGUES 2017: 161-2). Não é necessário destacar o impacto profundamente regressivo que isso exerceu sob o conjunto das economias e dos governos progressistas da América do Sul, aprofundando o caráter neoextrativista dessas sociedades, justamente quando a possibilidade de uma eventual coordenação política poderia propiciar a escala continental necessária para uma mudança de modelo (LANDER 2019; SVAMPA 2019).
A presença de Marina à frente do MMA mitigou um pouco os efeitos da predação ambiental em alguns biomas, em especial o desmatamento na Floresta Amazônica. De 29 mil km2 desmatados em 1994-5, tínhamos tido uma redução para 13,2 mil km2 em 1996-7, com um novo crescimento cujo pico foi em 2003-4 com a devastação de 27,7 mil kms2. Depois esses números vão caindo ano a ano, até atingirem 4,5 mil km2 em 2011-12, voltando a crescer desde então.
Mas Marina Silva não foi capaz de deter o ímpeto do Ministériode Minas e Energia. Desde os anos 1980, com o término da construção da Usina de Tucuruí, no Tocantins, e o desastre de Balbina, no norte do Amazonas, a construção de hidroelétricas na região norte estava estancada. Lula e Dilma retomam o processo: as usinas de Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira, foram leiloadas em 2007 e 2008, e a grande Usina de Belo Monte, no Rio Xingu, um contrassenso não só ambiental mas também econômico (BERMANN 2007), foi afinal leiloada em 2010. As propostas feitas por setores da Igreja que propunham a geração descentralizada de eletricidade por painéis solares instalados nas casas do programa “Minha casa, minha vida” – que seriam também fontes complementares de geração de renda – foram sumariamente descartadas pelo governo seduzido pelas megaobras, as relações promíscuas com as empreiteiras e as promessas fossilistas.
Os povos tradicionais e, antes de tudo, os povos indígenas foram as grandes vítimas desse processo. “Grupos historicamente marginalizados (...) seguem sendo alvo de formas de racismo e segregação que os consideram um resquício a ser eliminado. Os territórios dos povos indígenas e as paisagens naturais que colidem com os locais de avanço do extrativismo são sacrificados em prol de uma bonança nacional referenciada a um modelo consumista de vida urbana” (LEITE 2018: 107). Mas as condições históricas que permitiam o extermínio silencioso dessas populações deixaram de existir na medida em que a questão ambiental se colocou no centro da agenda da humanidade. No Brasil, a Constituição de 1888 reconheceu-lhes seus direitos, em aberta oposição ao ruralismo e ao fundamentalismo religioso. Os povos indígenas começam a deixar de ser vistos por setores progressistas como sobrevivências do passado pré-capitalista fadadas ao desaparecimento, e passam a ser considerados como populações com direito a preservarem seus modos de vida e seus territórios e, normalmente, como os únicos defensores das florestas. O Movimento Xingu Vivo para Sempre, com outros como o Brasil pela Vida nas Florestas e a Frente Pró-Xingu, formados na oposição à construção da Usina de Belo Monte, construíram uma vasta coalizão de apoio às lutas dos povos indígenas da região, envolvendo importantes setores da Igreja, artistas e intelectuais, tornaram-se um forte fator de desgaste no final do governo Lula e durante todo o governo Dilma.
Marina buscou manter sua posição no governo negociando sucessivos recuos. Mas o abandonou em maio de 2008, após o lançamento do Plano Amazônia Sustentável, atribuído a Mangabeira Unger, voltando a sua cadeira no Senado Federal. Lula afirma: “o importante é que tenha alguém isento para tocar esse plano. A Marina não é isenta; o Stephanes [Ministro da Agricultura] não é isento. Por isso, será o Mangabeira Unger” (LEITÃO 2010).
A visão produtivista do lulismo não se limitou a golpear as populações tradicionais das regiões rurais. Ela estava instalada no coração do que sobrevivia de política industrial, com uma concepção de inclusão pelo consumo das camadas populares. Quando a crise de 2008 chegou ao país, a “marolinha” nas palavras de Lula, a resposta do governo foi estimular a produção e o consumo de bens duráveis, em especial de automóveis, com todo o impacto desagregador que isso tem sobre a qualidade de vida urbana – ganhando mais força no governo Dilma, com mais desonerações fiscais para manter a economia aquecida.
Como afirma Marijane Lisboa, analisando o período, não há “como recusar um balanço negativo da política ambiental do governo Lula. Não só foi ruim, como significou um retrocesso frente ao que houve anteriormente” (LISBOA 2011: 31).
Os governos Dilma: empreiteiras, ruralistas, megaeventos e desmonte ambiental
O juízo sobre a política ambiental do PT se torna muito maisnegativo frente aos seis anos de governo Dilma. Eleita em 2010, Dilma teria seu governo cada vez mais enfraquecido e dependente de setores conservadores. Fica evidente todo o peso não só das relações com o extrativismo e o agronegócio (principais beneficiados da política do BNDES de formação de empresas “campeãs nacionais”), mas também as alianças políticas reacionárias (inclusive com os evangélicos neopentecostais ao longo de todo o primeiro governo...) e as relações promíscuas do petismo com as empreiteiras para o financiamento das campanhas eleitorais da “base aliada”. O papel das empreiteiras parece fundamental para explicar a realização de obras de infraestrutura predatórias e economicamente inviáveis – como Belo Monte – mas também aquelas que promoviam a especulação imobiliária urbana, como as vinculadas à Copa do Mundo de 2014 e às Olimpíadas de 2016 (FAULHABER 2016). Enquanto bilhões eram gastos em estádios faraônicos e aeroportos, as prometidas obras de transporte público de massa nas grandes cidades não saíram do papel. Dilma rompe com todos os setores com sensibilidade ecológica, rifados pela política ambiental mais predatória desde a ditadura militar e por um “neodesenvolvimentismo” que ganha feições cada vez mais predatórias e autoritárias.
A disputa em torno de Belo Monte escalou e se tornou o centro de uma campanha internacional. A oposição à obra pela população local indígena e ribeirinha, igreja católica, ambientalistas e classe média progressista foi muito forte, gerando o movimento que já mencionamos, atrasando e encarecendo a usina, cobrando um alto custo político ao governo – além do desastre que representou para as populações da região. A crônica desse processo é bem descrita por Eliane Brum, em Brasil, construtor de ruínas, ao qual remeto os leitores.
Mas uma campanha igualmente marcante se deu, em 2010 e 2011, em torno da reforma do Código Florestal, projeto que consolidava a devastação promovida pelo agronegócio nas últimas décadas, autorizava mais desmatamento e fragilizava ainda mais as matas ciliares essenciais à preservação dos sistemas hídricos. As pesquisas de opinião mostravam uma ampla maioria da população contra o projeto, que, ainda assim, foi conduzido pelos parlamentares governistas e ruralistas surdos à sua impopularidade — tendo o deputado Aldo Rebelo, então no PCdoB, como um de seus maiores defensores. Apesar da imensa pressão popular, dos 81 deputados federais do PT, 43 votaram pela aprovação do novo Código, 37 votaram contra e 1 se absteve. Mas os exemplos podem ser multiplicados. A alteração no Código Penal que dificulta a caracterização e a fiscalização do trabalho escravo, um problema recorrente no Brasil, que os ruralistas se recusam a enfrentar. O Decreto 7957, de 2013, regulamentou o emprego de forças federais em conflitos ambientais, basicamente destinado a reprimir os povos indígenas que resistem às grandes obras em seus territórios.
Em junho de 2013, quando o descontentamento com o sistema política já mobilizava também as mulheres e as populações LGBTs, que vinham sendo fustigadas pelas iniciativas de políticos neopentecostais, boa parte deles aninhados na base governista de Dilma, eclodiram os protestos contra o sistema político e por gastos sociais de qualidade (“Escolas e hospitais padrão FIFA”). Foram as maiores mobilizações de massa da história do Brasil, levando a rua mais de 20 milhões de pessoas. A ausência de uma resposta progressista por parte de Dilma e do PT fragilizou sua reeleição em 2014 e abriu a avenida para o golpe institucional de 2016, travestido de impeachment, e para a eleição de Bolsonaro em 2018.
É em parte pelo que representava Dilma, que Marina Silva, candidata pelo PV em 2010 teve 19,4% dos votos; novamente candidata pelo PSB em2014, obteve 21% dos votos – uma demonstração inequívoca do peso eleitoral desetores identificados com as lutas ambientais na sociedade brasileira.
Mas ainda veríamos, no governo Dilma, em novembro de 2015, o maior desastre ambiental da história do país, o rompimento da barragem da mineradora Samarco, uma associação entre as gigantes Vale e BHP Billiton, na cidade de Mariana, em Minas Gerais, que levou à destruição de todo o ecossistema do vale do Rio Doce. A longa trajetória da mineração irresponsável, sem controle por décadas, começava a cobrar tragicamente sua fatura.
Masa lista de problemas crescia: no mesmo ano, o Sudeste e o Nordeste foram atingidos por grandes secas, que produziram uma grave crise no abastecimento hídrico de cidades como Fortaleza e São Paulo — neste caso, gerido de forma temerária e privatista pelo governo de Geraldo Alckmin, do PSDB, mas contando com a cumplicidade da ANA. A relação de Dilma com as populações indígenas, péssima por conta de Belo Monte, deteriorou-se ainda mais pela decisão de levar adiante um novo conjunto de hidrelétricas na Amazônia, como Telles Pires e São Luiz do Tapajós. O Instituto Nacional de Câncer também associou o alto consumo de pesticidas no país, mais de cinco litros por ano por habitante, ao crescimento da incidência da doença, tema ignorado pelo governo (o Brasil tornou-se o maior consumidor de pesticidas do mundo e autoriza a pulverização aérea sobre áreas urbanas).
Em síntese
Parte importante daquilo que se designa no Brasil como desenvolvimento resultou da predação e do saque descomunais da majestosa fauna, flora e biomas existentes no território nacional – além do genocídio das populações racializadas. Isso se deu não apenas para a acumulação primitiva de capitais na Europa ou pela opressão imperialista, mas também como uma escolha consciente e permanente de gananciosas e arrogantes classes dominantes locais, com uma colossal destruição de vidas humanas, modos de vida e riquezas não mercantis pela imposição de formas de trabalho compulsório, recurso generalizado à violência, hierarquias excludentes e expropriação das populações de seus territórios.
Formou-se, em especial ao longo do trágico governo Dilma, um abismo entre a crescente sensibilidade ambiental de nossa época e o produtivismo predador tanto das classes dominantes do país — em especial suas frações agrárias e mineradoras —, quanto de uma esquerda prisioneira de uma visão produtivista e nacionalista. Assim, por exemplo, no episódio da Operação Carne Fraca, em março de 2017, já depois do impeachment de Dilma, amplos setores da esquerda se posicionaram em defesa dos frigoríficos e da “economia nacional”, ilustrando de forma grotesca essa cegueira economicista frente ao setor social e ambientalmente mais predatório do país, a pecuária, principal responsável pelo desmatamento da Amazônia e que frequentemente emprega trabalho em condições análogas à escravidão.
A busca histórica da "modernidade" no Brasil prosseguiu, sob Temer e agora por Bolsonaro, radicalizando as tendências predatórias anteriores, governando hoje com uma motosserra em uma mão e um isqueiro em outra.
São Paulo, novembro de 2019
Observação
Retomo, na análise do governo Dilma, aspectos tratados em meu texto “O PT e a construção de uma sociedade neoliberal no Brasil”
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