José Correa Leite, CTS em foco, n.1 out-dez 2020, p. 40-46
Em nosso mundo pandêmico, as esperanças se voltam para pesquisas que ofereceriam, com uma vacina, a solução de nossos problemas. Elas são feitas por grandes corporações farmacêuticas privadas, mas também por empresas estatais e universidades. A ciência é apresentada como a “bala de prata” que mataria o lobisomem da peste. Ela é questionada pelo “ceticismo” ou por teorias delirantes que se apoiam quer no fundamentalismo religioso, quer no nacionalismo conservador - que a apresentam como mais uma crença. A ciência como bala de prata ou uma crença entre as demais: esta seria a alternativa epistemológica de nossos tempos? Sabemos que não, que o enfrentamento desta e de outras pandemias exige, tanto quanto vacinas, mudanças
estruturais no sistema alimentar agroindustrial, mas esta mensagem encontra um eco social e político pequeno.
A disjuntiva parece reforçada quando vemos o cenário aceleracionista das tecnologias alavancadas pela revolução digital. Um punhado de megacorporações instauraram uma sociedade que se apresenta como o ápice do progresso humano, mas que é também uma concentração de poderes inédita na história. Todas as tentativas de supervisão pública das “redes sociais” e de sua apropriação privada de dados até agora apenas arranharam a superfície do poder que se assenhora da capacidade humana de cooperação. Mas, na medida em que dissolve o terreno estabelecido de relação entre formação e informação e debate público, o capitalismo monopolista digital cria um contexto ainda mais favorável para a expansão do ceticismo frente às ciências,
das crenças delirantes e de políticas de ódio. O progresso técnico descontrolado, apropriado pelo capitalismo de vigilância (ZUBOFF 2019) alimentaria, em uma espiral sem fim, o mundo das fake-news? Nos ameaçariam ainda, como apontam alguns críticos, com um futuro pós-humano e a singularidade?
A disjuntiva se torna ainda mais complexa com o questionamento à ideia tradicional de progresso, que emerge como conclusão lógica da crise ambiental e do crescimento econômico infinito em um planeta finito do Antropoceno (BOUNNEIL e FRESSOZ, 2016; LATOUR 2020). Aqui o conhecimento das Ciências do Sistema Terra se alia às práticas dos povos tradicionais, dos movimentos ecológicos e à crítica anticapitalista - em uma convergência improvável também com a Igreja Católica. Mas este conhecimento da teia da vida e da complexidade não é o oposto do que sustenta a afirmação do progresso técnico e do crescimento econômico amparado na ciência? O controle da natureza pela ciência e a artificialização da vida deixaram de ser o horizonte imaginativo da humanidade?
Uma ciência problemática. O que emerge das tendências da Grande Crise do presente e de seus debates mais profundos é, de um lado, a constatação de que a ciência hegemônica se tornou muito questionável e, de outro, a necessidade imperiosa de se consolidar outra concepção de conhecimento, que preserve seus ganhos e a supere. Precisamos mais do que nunca de um conhecimento empiricamente comprovável que busque a universalidade como horizonte normativo e esteja sempre aberto ao questionamento fundamentado, mas seja um conhecimento ancorado em responder às necessidades humanas fundamentais e solidário com a natureza.
A ciência experimental, o novo entendimento do mundo formulado por Galileu, Bacon, Descartes e Newton no século XVII, foi uma autêntica revolução cognitiva. Ela alicerçou a modernidade, impulsionou conquistas irreversíveis, mas também gerou contradições e evidencia hoje seus limites, se tornando problemática. A ciência clássica não é apenas uma epistemologia, mas uma ontologia e uma axiologia peculiares, hoje insustentáveis. Nela, o mundo é compreendido como mecânico, atomista, determinista e quantificável, matéria infinita manipulável (que, no século XX, percebeu-se ser convertível em energia), passível de previsão e controle. O ideal desta ciência é um conhecimento neutro do ponto de vista de valores - isento, objetivo, imparcial. Ainda em meados do século XX ele compunha o que Robert Merton teorizava como o ethos científico (universalismo, comunitarismo, desinteresse, ceticismo organizado...).
Esta ciência que se torna coextensiva à modernidade no Iluminismo e nas revoluções do século XVIII se integra ao capitalismo industrial como ciência positiva, produtora de tecnologia. A atividade de Thomas Edison em Menlo Park ou da indústria química alemã instalaram a tecnociência no coração do modo de produção capitalista, estabelecendo uma afinidade eletiva entre as práticas de mercado e a racionalidade vigente, a razão instrumental. Alimentada por duas guerras mundiais e pela Guerra Fria, a tecnociência capitalista foi também o modelo para o comunismo soviético, vinculando-se às aspirações de poder dos estados. A globalização neoliberal privatizaria o impulso da tecnociência, depois de 1980, para os departamentos de pesquisa e inovação das grandes corporações, sem nunca romper totalmente seus vínculos com os estados.
David Graeber vai, provocativamente, apresentar o cenário atual como o de uma enorme redução da capacidade de inovação humana por esta privatização e despotencialização da vocação universal da ciência, além de vinculá-lo à difusão do que chama de “empregos de merda”. Mas esta não é a percepção dominante. A generalização do mercado total pela globalização neoliberal produz a sensação de aceleração, perda de controle e vertigem em um mundo em desequilíbrio permanente, apreendido como derrota existencial por bilhões de perdedores dos novos cercamentos. A revolução digital e a hiperconectividade das corporações da economia aditiva do clique amplificam a percepção de desamparo. Ao mesmo tempo, a crise ambiental corrói o horizonte do futuro como progresso; não parece mais existir, como aponta Latour, um mundo para todos. As derivas identitárias são, assim, compreensíveis como reações à perda do mundo da vida; e são apropriadas por projetos políticos hiper-regressivos, que querem apenas “salvar o seu”
Uma ciência que atenda à ambição universal original de que foi portadora requer outra fundamentação! Ela nunca foi livre de aspectos normativos, a começar pelo ideal de poder baconiano. Hugh LACEY (2008) lembra que virtudes científicas embasariam a suposta autonomia da ciência: objetividade, distanciamento, honestidade, integridade, razoabilidade, submissão à evidência. E que a definição de teorias é feita a partir de valores cognitivos como adequação empírica, consistência, simplicidade, fecundidade (fertilidade), poder explicativo e verdade ou certeza. Hilary PUTNAM (2008) destaca que todo experimento é permeado de valor e normatividade; a ciência é carregada de valores epistêmicos: coerência, plausibilidade, razoabilidade, simplicidade, naturalidade, beleza de uma hipótese, sucesso preditivo passado, etc.
Mas a escolha das linhas e estratégias de pesquisa são orientadas pelos valores sociais. E aí temos, ao lado da solidariedade desinteressada, cooperação, busca do bem-estar coletivo, respeito à alteridade, empatia e defesa da vida, todas as dimensões sombrias da alma humana: a busca de lucro e poder, do enriquecimento a qualquer custo e do sucesso, egoísmo, ressentimento e vingança, o “narcisismo das pequenas diferenças”. A razão instrumental e as estratégias descontextualizadas, escolhidas por sua rentabilidade para os negócios e resultados imediatos, se tornam grande parte da ciência realmente existente, da tecnociência capitalista orientada pelo ethos comercial.
A cosmologia da ciência clássica não apenas apresentou a nossa espécie a um universo de tempo e idade abissais, mas a jogou em uma vertigem para a qual não apresenta respostas, estabelecendo a crise de sentido e significado que que o niilismo detectou. Esta ciência, enquanto atividade de investigação, nunca foi capaz de responder à necessidade humana de valores existenciais. Ela rapidamente se tornou um rótulo fácil para filosofias políticas - enquanto tais, legítimas - ou para sistemas de crença religiosas, apresentadas como ciências, mas, de fato, pseudociências. Talvez a economia utilitarista em sua formulação neoclássica seja o mais poderoso sistema de crenças religiosas do mundo contemporâneo, uma crença que, como outras, é disputada por correntes fundamentalistas ou moderadas.
A ciência fiel ao seu impulso epistêmico originário teve que se confrontar, no século XX, com sistemas complexos, deterministas mas probabilísticos, que, sabemos hoje, compõem muito do universo e da vida humana. São estes sistemas complexos, não lineares, que presidem muito do mundo físico operado por tecnologias como a digital. As Ciências do Sistema Terra também tiveram que se confrontar com a análise integrada da biosfera do planeta constatando a fragilidade e interdependência da vida e a necessidade de sua preservação presidir a ação humana - uma ciência para controlar a natureza e empoderar o ser humano, mas também uma ciência para o autocontrole da humanidade e para que ela estabelece limites à sua ação.
O desafio de nossa época. Não temos aqui nada de novo. Esta era a demanda de Marcuse meio século atrás. Foi, antes ainda, a concepção de ciência que os historiadores chamam de ciência romântica ou vitoriana, ligada a demandas estéticas, de deslumbramento e de integração do ser humano no mundo natural (o Kosmos de Alexander von Humboldt). Ela foi responsável, então, na bela fórmula de Andrea Wulf, pela “invenção da natureza”, na acepção que hoje nos oferecem as Ciências do Sistema Terra. Mas tal entendimento foi suprimido pelo positivismo e pela emergência da tecnociência, só ressurgindo no final do século XX.
A ciência pode ampliar os poderes humanos sobre seu entorno e favorecer o desenvolvimento de novas capacidades e potencialidades. Mas pode, também, evidenciar os limites humanos. A ciência é encapsulada pelas instituições e sistemas de poder social vigentes, que frequentemente condicionam a adoção dos paradigmas dominantes (não precisamos concordar com Paul Forman para aceitar sua linha de pesquisa como muito instigante). A ciência opera por um complexo mecanismo infinito de acertos, erros e correções de erros. Não é um conhecimento seguro, mas é - usado com sabedoria - o melhor conhecimento de que dispomos.
A novidade é, frente aos debates passados, que pandemia, crise ecológica e apreensão do mundo no capitalismo de vigilância se imbricam na Grande Crise e evidenciam isso com uma força extraordinária. As Ciências do Sistema Terra, em especial, conseguiram uma façanha importante ao constituírem as condições para articular seu caráter moral. Elas se confrontam com um problema ético, discutido na esfera propriamente axiológica (Jamieson) e que está tendo que ser explicitamente articulado com visões sociais de mundo e projetos políticos.
A combinação de crise ecológica e pandemia demanda uma reforma do pensamento, tal como cobram, há muito, Serres e Latour. A ciência não deve ser nem rejeitada, nem mitificada. Deve ser requalificada de forma a incorporar a sabedoria ausente na vulgata instrumental estabelecida pelo poder vigente. Essa sabedoria é um sistema de valores e uma visão do nosso lugar no cosmos - uma ética, uma antropologia e uma cosmologia - coerentes com as melhores evidências científicas. Ela só poderá ser incorporada por uma ciência despida de arrogância fáustica, em diálogo e aliança com outras formas de conhecimento. Trata-se, não apenas de assegurar o respeito às potencialidades regenerativas da natureza, mas também de, em coerência com isso, moldar, direcionar e moderar o desenvolvimento tecnológico, colocando-o a serviço do bem-estar humano e da integridade da vida. Esta é uma tarefa política e civilizatória - o grande desafio epistêmico de nossa era de crise
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOUNNEIL, Christophe et Jean-Baptiste Fressoz (2016). L’événement anthropocène: La Terre, l’histoire et nous, Paris, Seuil.
LACEY, Hugh (2008). Valores e atividade científica. São Paulo: Associação Filosófica Scientiae Studia; Editora 34.
LATOUR, Bruno (2020). Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. Ateliê das humanidades.
PUTNAM, Hilary (2008). O colapso da verdade e outros ensaios. Aparecida (SP): Idéias e Letras.
ZUBOFF, Shoshana (2019). The Age of Surveillance Capitalism. New York: PublicAffairs/Hachette.