Agatha Cristie*
Do lado de lá da América, a intelectual negra e teórica feminista estadunidense bell hooks definiu a sororidade como uma política feminista poderosa entre as mulheres, capaz de conectar raça e classe e produzir pensamento e prática antissexista. Do lado de cá, na América-Latina e Caribenha, é a dororidade, pensada por Vilma Piedade - intelectual preta e teórica feminista brasileira - que unifica as mulheres negras e se impõe poderosamente na denúncia das políticas de mortes provocadas pelo racismo estrutural e na defesa das vidas negras como pauta prioritária da luta política.
Uma dor secular que só as mulheres negras reconhecem e, por isso, as fazem construir ações auto-organizadas como o Julho das Pretas. Uma agenda comum entre organizações e movimentos de mulheres negras da Bahia, região Nordeste, e mais alguns estados do país. Criado em 2013 pelo Odara – Instituto da Mulher Negra, com o objetivo de fortalecer as organizações de mulheres negras, o Julho das Pretas chegou à sua oitava edição, em 2020, em uma versão totalmente virtual em virtude da pandemia do novo coronavírus.
Sob o tema “Em Defesa das Vidas Negras, pelo Bem Viver”, o Julho das Pretas deste ano registrou 275 atividades oficiais em toda a Região Nordeste, e estados como Pará, Paraná, Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, além de uma infinidade de outras ações não-oficiais. Para Bruna Stéfanni, professora da Universidade Estadual do Piauí (UESPI), pesquisadora na área de relações raciais e gênero e militante feminista antirracista e antiproibicionista, o sucesso do Julho das Pretas demonstra a potência política do movimento de mulheres negras no Brasil.
“O Julho das Pretas representa uma agenda política muito interessante, principalmente porque tem como central pensar a luta contra o racismo a partir do Nordeste, dos territórios das mulheres negras nordestinas e suas especificidades e diversidades regionais e culturais. É uma iniciativa grandiosa que junta coletivos, movimentos, organizações e entidades da sociedade civil em ações auto-organizadas que rompe as fronteiras das capitais e ganha espaço também nas cidades do interior nordestino para refletir, entre outras questões, como a morte física de homens negros afeta a vida de comunidades e famílias negras inteiras, como mães, esposas, filhas, companheiras”, afirma.
Bruna destaca que o Julho das Pretas de 2020 foi planejado no primeiro semestre, já em meio ao cenário de pandemia, mas um pouco antes das grandes mobilizações do movimento negro estadunidense e os levantes mundiais antirracistas. “Se no mês de junho estávamos gritando aos quatro cantos que vidas negras importam. Nesse mês de julho, nós mulheres negras, estamos negritando a ideia de que as vidas das mulheres negras também importam. E que, para além de denunciar o genocídio e o extermínio cotidiano de vidas de homens e de mulheres negras, estamos construindo um projeto político que enfrenta o genocídio e combate o racismo”, disse.
É então, segundo Bruna, quando a categoria do Bem Viver aparece no lema da 8ª edição do Julho das Pretas como um futuro negro a frente, um futuro afro-indígena que pensa a partir de outras matrizes de construção de conhecimento e construção cultural para criar um horizonte estratégico que privilegia a vida. “O Bem Viver é um projeto de respeito à diversidade e a pluralidade de modos de vida. Esse mote é muito importante porque valoriza os modos de vidas a partir de uma matriz, como vai dizer a Lélia Gonzalez, amefricana, que pensa os conhecimentos tradicionais articulados com o enfrentamento ao capitalismo. Então, essa é a reflexão que o julho trouxe esse ano fortalecida com o que tá acontecendo na rua”, conclui.
25 de Julho
O Julho das Pretas também celebra o 25 de Julho, Dia Internacional da Mulher Negra Afro Latina-americana e Caribenha. Data criada no ano de 1992, quando no mês de julho, mulheres negras de diferentes países se reuniram no 1º Encontro de Mulheres Negras da América Latina e do Caribe, em Santo Domingo, na República Dominicana.
No Brasil, 22 anos depois, a data também foi estabelecida pela Lei nº 12.987/2014 como Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, que é uma heroína negra, símbolo de resistência e representatividade no país. Deste então, a data ficou marcada pela luta e resistência das pautas das mulheres negras, que ultrapassam gerações.
Julho das Pretas em retrospectiva
2019: Mulheres Negras Por Um Nordeste Livre - Teve como objetivo destacar a vanguarda da região nas lutas por liberdade, contra o racismo, o patriarcado, a democracia plurirracial e pelo Bem Viver. Além de visibilizar a ação e alinhamento político de uma gigantesca rede de mulheres atuantes na Região, articulada sobretudo pela Rede de Mulheres Negras do Nordeste.
2018: Mulheres Negras Movem o Brasil - Foi uma edição marcada pelos 130 anos da falsa Abolição da Escravatura e dos 30 anos do primeiro Encontro Nacional de Mulheres. Momento de anunciar a toda a sociedade que as mulheres negras movem o Brasil e reafirmar as estratégias de resistência na luta contra o racismo, o sexismo, a lbtfobia e a todas as formas de opressão que atingem a vida e existência das mulheres negras.
2017: Negras Jovens e as lutas de enfrentamento ao racismo, a violência e pelo bem viver - Dialogou sobre as estratégias construídas pelas negras jovens feministas para enfrentar o racismo, machismo, lesbofobia, transfobia e todas as formas de opressão a partir da troca intergeracional com ativistas do movimento de mulheres negras.
2016: Mulheres Negras no Foco: Mídia, Representação e Memória – Debateu o direito das jovens e mulheres negras à comunicação, representação política, a narrativa de luta, acesso a direitos, enfrentamento às violências, incidência política, assim como estratégias e desafios para assegurar os registros e memórias da história da população negra, e como estes temas vêm sendo tratados nas diferentes linguagens de comunicação.
2015: A participação da mulher negra na políticas: estratégias e desafios – Colocou em pauta a participação e representação política das mulheres negras nos diferentes espaços políticos no país, através de um olhar crítico sobre as estratégias de participação, as agendas apresentadas pela luta de enfrentamento ao racismo e fortalecimento das mulheres negras.
2014: Mostra de Arte e Cultura de Mulheres Negras – Visou aprofundar e discutir o fortalecimento em torno da autonomia financeira das mulheres negras, do intercâmbio de experiências solidárias e criativas do empreendedorismo negro protagonizado pelas mulheres.
2013: Fortalecimento Institucional das Organizações de Mulheres Negras na região do Nordeste Brasileiro – Teve como objetivo mapear as organizações de mulheres negras da região Nordeste e discutir estratégias de fortalecimento político, financeiro e institucional.
Com informações do Odara – Instituto da Mulher Negra
Agatha Cristie é jornalista, do Time de Comunicação da Insurgência.