Ele fugiu dos ataques brutais de invasores que mataram seus parentes, viveu uma fuga solitária por dez anos e reencontrou os integrantes de sua etnia em seu território, no Maranhão, entre eles um de seus filhos; em julho, morreu de Covid-19.
Luma Ribeiro Prado, De olho nos ruralistas, 3 de agosto de 2021
— Os karai [não indígenas] mataram a minha esposa e meu filho. Eles atiraram neles na mata. Atiraram com arma de fogo feita de ferro. Eu era o pai. Quem morreu foi um antigo filho meu. Os karai o mataram com arma de fogo. Nós corremos e eles foram atrás de nós e os mataram. Os karai matam até crianças Awa! Mataram meu filho! Eu andei muito pela mata. Às vezes era muito calor e sentia sede. De longe eu ficava observando os karai. Via suas plantações de mandioca e milho. E pensava que um dia ia matá-los. Andava muito pela floresta: a floresta é grande! Muitas vezes eu estava tão perto dos karai que escutava o galo cantar. Por vezes eu passava fome.
Esse relato feito em 2013 por Karapiru Awá Guajá é de um sobrevivente, mas não de um imortal: em julho, ele perdeu a vida para a Covid-19. O guerreiro Awá Guajá testemunhou o massacre de sua família e, para não sucumbir aos ataques violentos das frentes de expansão, fugiu e se escondeu por uma década nas matas, florestas e cidades do sul do Maranhão à Bahia.
Karapiru não resistiu aos sintomas agressivos da Covid e faleceu em 17 de julho, apesar de ter tomado as duas doses da vacina. Desde março de 2020, ao menos outros 1.135 indígenas morreram em decorrência da pandemia. O governo negacionista de Jair Bolsonaro demorou para atender os vulneráveis indígenas na imunização. De Olho nos Ruralistas mostrou que, ao contrário, o governo federal incentivou o falso tratamento precoce: “Pazuello mentiu à CPI sobre distribuição de cloroquina para indígenas“.
APÓS DEZ ANOS EM JORNADA SOLITÁRIA, ELE ENCONTROU FILHO QUE JULGAVA MORTO
Karapiru sobreviveu ao massacre de sua família capitaneado por posseiros que invadiram o território dos Awá Guajá, nas franjas da Floresta Amazônica no Maranhão. Para sobreviver, ele fugiu com uma bala alojada nas costas e iniciou uma jornada solitária de dez anos nas serras do Brasil Central até ser encontrado na Bahia, em 1988.
A antropóloga Renata Otto registrou a saga no Memorial Vagalumes: desconfiando que o andarilho solitário fosse um Awá Canoeiro ou Awá Guajá, diante do local em que ele foi encontrado e das palavras em tupi que pronunciou, o sertanista Sydney Possuelo convocou um funcionário da Fundação Nacional do Índio (Funai) para identificá-lo.
Tiramuku (Benvindo Guajá) foi a Brasília reconhecer o homem e encontrou o próprio pai. O filho de Karapiru também sobreviveu à emboscada e havia sido criado pelos karai do posto da aldeia Cocal, onde naquela época trabalhava. Karapiru, então, voltou a morar com os seus. Primeiro, na TI Alto Turiaçu; o restante da vida, na TI Caru. Sua história foi descrita no filme Serras da Desordem (2006), de Andrea Tonacci, ao lado de outros Awá Guajá.
Karapiru não foi o único de seu povo a adotar a fuga constante como estratégia de sobrevivência. Para resistir à política de extermínio do governo militar, famílias Awa Guajá dispersaram-se em pequenos grupos e se refugiaram em ilhas de matas preservadas no Maranhão.
PROJETO CARAJÁS, DA DITADURA DE 1964, IMPACTOU DIRETAMENTE A ETNIA
Isso ocorreu porque o lema “uma terra sem homens, para homens sem terra”, da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), atraiu levas de migrantes da seca para a Floresta Amazônica maranhense. A migração de não-indígenas para a região intensificou-se com o Programa Grande Carajás, desenvolvido pela então estatal Companhia Vale do Rio Doce — hoje a privatizada Vale — no governo do ditador João Baptista Figueiredo.
Carajás impactou uma área de quase 1 milhão de quilômetros quadrados entre os Rios Xingu, Tocantins e Araguaia, considerada, naquela época, uma das maiores jazidas de ferro do mundo. Obras de infraestrutura foram realizadas pelo governo ditatorial para explorar de maneira sistemática o minério e escoar a produção. A Estrada de Ferro Carajás cortou o território Awá, enquanto as hidrelétricas de Tucuruí e o Porto de Ponta Madeira afetaram mais de uma dezena de povos originários e comunidades tradicionais.
Junto da mineração, as vias de acesso deveriam orientar a ocupação colonial dos territórios e fomentar a agropecuária na região. De acordo com as diretrizes do Programa de Integração Nacional, povos indígenas e florestas eram considerados empecilhos ao desenvolvimento, como se pode ver na oposição hierárquica entre áreas florestais e grandes crateras de mineração e estradas, no vídeo de propaganda do Projeto Grande Carajás:
Os remanescentes Awá, que sobreviveram às doenças dos karai e escaparam das armas de fogo dos invasores, foram abrigados nas TIs Alto Turiaçu e Caru, cujos estudos foram iniciados neste contexto, de acordo com os interesses da Vale do Rio Doce. O povo que tradicionalmente organizava-se em pequenos agrupamentos, com o avanço das frentes de expansão, adotou a vida nômade — assentada na caça, coleta e pesca — e se conformou em grandes assentamentos nos territórios demarcados, definidos segundo interesses alheios.
MADEIREIROS E POSSEIROS INVADEM TERRA INDÍGENA DOS AWÁ GUAJÁ
Como tantos povos indígenas, os Awá Guajá são sobreviventes de genocídios. Seu território ancestral foi atravessado pelas BR-222, BR-316, pela Belém-Brasília (BR-110), e sangrado pela Estrada de Ferro Carajás. Os Awá habitam hoje as Terras Indígenas Alto Turiaçu, Caru, Awá e Araribóia.
As três últimas TIs têm registro de grupos Awá isolados, que recusam sistematicamente o contato com não-indígenas. Desses, entre 40 e 60 pessoas partilham a T.I Araribóia com os Tenetehara, mais conhecidos como Guajajara. Conjectura-se que os “isolados” carregam na memória o massacre que testemunharam de seu povo e desejam afastá-lo para longe.
Flay Guajajara, Edivan dos Santos Guajajara e Erisvan Bone Guajajara, no documentário “Ka’a zar ukyze wà – Os Donos da Floresta em Perigo“, chamam a atenção para as ameaças à autodeterminação e à sobrevivência de seus vizinhos em isolamento voluntário.
Madeireiros, posseiros, traficantes de drogas e caçadores desmatam os resquícios da Floresta Amazônica maranhense e ameaçam a vida dos Awá Guajá e dos Guajajara. A TI Araribóia tem 38% da cobertura vegetal comprometida, segundo estudo de 2019 do Instituto Socioambiental (ISA) e do Joint Research Centre.
Outro integrante da etnia, Awá To’o, conhece bem a interdependência entre seu povo e a Floresta Amazônica. Para a Survival, ele demonstrou desassossego:
— Nós vivemos nas profundezas da floresta e estamos preocupados, na medida em que forasteiros se aproximam. Nós estamos sempre fugindo. Sem a nossa floresta, nós não somos ninguém e não temos como sobreviver.
Karapiru fugiu para longe de sua terra para continuar vivendo. Os Awá Guajá e os Guajajara pedem a desintrusão de seus territórios demarcados e reivindicam políticas específicas de enfrentamento à Covid-19. Os Awá isolados passam fome, sede, tristeza, sentem saudade dos parentes e calam o choro das crianças para permanecerem em refúgio, como relata o antropólogo Uirá Garcia.
INICIATIVAS BUSCAM TIRAR INVISIBILIDADE DAS VÍTIMAS INDÍGENAS
A favor da vida e da memória, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), organizações de base estabelecidas em todo o território e apoiadores levantam-se e organizam-se. Mulheres e homens indígenas continuam a erguer barreiras sanitárias improvisadas, expulsando invasores e organizando campanhas de arrecadação de fundos.
A Justiça também tem sido acionada. A Apib entrou com uma Ação de Descumprimento de Princípio Fundamental no Supremo Tribunal Federal (STF) exigindo ações de combate à pandemia, por meio da manifestação Levante pela Terra.
Os Awá-Guajá e Guajajara pediram providências à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Em luta por um registro mais preciso do número de vítimas e pela preservação de suas histórias, o Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena publica diariamente o resumo dos casos e o Memorial Vagalumes apresenta biografias dos parentes que se foram pela doença.
Somando-se a esse esforço, este observatório registrou Cem Faces Indígenas mortas por Covid e destacou as histórias de professores indígenas que morreram durante a pandemia.
Luma Ribeiro Prado é historiadora e repórter do De Olho nos Ruralistas