A pandemia e vários incidentes mostraram que a eliminação de stocks na economia "just in time" pode levar a uma perigosa escassez de bens e serviços. Mas esta forma de distribuição tem outros problemas: da sua pegada ecológica aos salários baixos, trabalhos precários e pressão constante sobre trabalhadores.
Kim Moody, Esquerda.net, 6 de novembro de 2021
Um choque dos preços nos mercados globais de gás natural está a eliminar vários pequenos fornecedores de energia no Reino Unido, deixando os clientes sem aquecimento e com uma subida dos preços. Um incêndio colocou fora de serviço o gigantesco cabo que transporta eletricidade de França para o Reino Unido, ameaçando as casas com a escuridão e aumentando as contas de eletricidade. O navio porta-contentores Ever Given1, proveniente da Malásia com destino a Felixstowe2, ficou preso no Canal de Suez durante seis dias, em finais de março de 2021, interrompendo a navegação com um custo estimado de 730 milhões de libras3 e atrasando a chegada dos gadgets eletrónicos encomendados à Amazon Prime.
O que estes incidentes têm em comum é a rapidez com a qual um único evento pode perturbar as cadeias de abastecimento em todo o mundo. Quase sempre que se encomenda um artigo online, este é transportado através de uma rede de empresas, caminhos-de-ferro, estradas, navios, armazéns e motoristas de entregas que, juntos, formam o sistema circulatório (just-in-time4) da economia global. Esta infraestrutura, rigorosamente calibrada, foi concebida para um movimento contínuo, perpétuo. Assim que um elo se rompe ou encrava, o impacto nas atuais cadeias de abastecimento just-in-time faz-se sentir de forma imediata.
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O sistema Just-in-time é criação de Taiichi Ohno, um engenheiro da Toyota nos anos 1950, que se inspirou na obra de Henry Ford (1863-1947). Ohno definiu-o como uma forma de eliminar os “desperdícios” – ou seja, stocks, trabalhadores suplementares e “minutos não utilizados” – na produção e circulação de mercadorias. Em vez de desperdiçar tempo, mão-de-obra e dinheiro armazenando peças ao longo da linha de montagem ou armazenando mercadorias (como durante décadas os fabricantes haviam feito), a ideia de Ohno era a de que os fornecedores pudessem entregar essas peças no momento em que são necessárias. Isto aumentaria os lucros, reduzindo a quantidade de dinheiro que as empresas gastam na manutenção do stock e no pagamento de mão-de-obra extra.
Após a sua introdução no Ocidente nos anos 1980, o modelo just-in-time saiu gradualmente da fábrica de automóveis para se estender a todos os tipos de bens e serviços. Impôs-se em todas as cadeias de abastecimento até ao ponto em que cada fornecedor, grande ou pequeno, é obrigado a entregar rapidamente ao comprador seguinte. Isto aumentou a concorrência entre empresas para entregar produtos muito rapidamente, o que permitiu às empresas reduzir os seus custos (de um modo geral os custos com a mão-de-obra). A entrega just-in-time contribuiu, assim, para o crescimento de empregos com salários baixos, que são frequentemente mais precários, uma vez que os trabalhadores só são recrutados quando são necessários. Esta pressão constante sobre os trabalhadores tem alimentado a nossa "cultura" de trabalho de 24 horas por e sete dias por semana e os problemas de saúde mental que a acompanham, enquanto as tentativas de reduzir o preço do trabalho têm contribuído para a crescente desigualdade sócio-económica, independentemente dos governos no poder.
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A entrega rápida de mercadorias depende de infraestruturas. A partir dos anos 1980, as autoestradas foram alargadas, os portos aprofundados e foram acrescentadas pistas de aterragem aqui e ali para acompanhar o ritmo das mudanças. Os armazéns do século XXI foram transformados de instalações de armazenamento em enormes centros de distribuição e montagem. Mas a velocidade, como qualquer piloto de Fórmula 1 sabe bem, tem os seus próprios riscos. Fenómenos como inundações, cortes de energia, encerramentos de estradas, disputas laborais e, claro, pandemias, podem todos eles parar o sistema. Dado que o just-in-time eliminou a acumulação de stocks, uma crise imprevista pode levar a escassez de bens e serviços inesperada e perigosa. No início da pandemia, havia uma escassez generalizada de equipamento de proteção individual, batas, máscaras e luvas de plástico, todos eles dependentes da produção no sistema just-in-time, com poucos stocks de reserva.
Atualmente, o nosso mundo just-in-time é cada vez mais propenso a crises. Os horários de transporte de contentores não têm sido fiáveis desde o início da pandemia, no princípio de 2020. O aumento dos preços do combustível levou também a uma redução da velocidade de navegação, conhecida como "vapor lento"5. A British International Freight Association6, por seu turno, alertou para uma "escassez de transportes terrestres" – por outras palavras, o número de estivadores ou armazenistas foi diminuído após o início da pandemia Covid-19 e existe um número insuficiente de motoristas devido à pandemia e ao Brexit, bem como a anos de salários estagnados, horários de trabalho longos e falta de formação. A Road Haulage Association7 estima a escassez atual de motoristas em cerca de 100.000 no Reino Unido. Poucos motoristas implicam portos congestionados, navios parados, prateleiras vazias e preços mais elevados.
Os gestores das cadeias de abastecimento e os peritos em logística estão conscientes de todos os problemas potenciais e há mais de uma década que têm vindo a debater o equilíbrio entre “risco” e “resiliência” – sendo a 'resiliência' a capacidade de minimizar ou recuperar rapidamente de uma perturbação. Os diminutos stocks no sistema just-in-time aumentam o risco de escassez no caso de uma crise. A "resiliência", por outro lado, envolve stocks maiores, mais trabalhadores, múltiplos fornecedores e custos mais elevados. Isto cria um dilema. A competição torna a própria resiliência arriscada para empresas individuais. Quem quererá comprar a uma empresa que entrega mais tarde com preços mais altos? No entanto, enquanto o lucro for a força motriz do sistema, os esforços nacionais para se fechar ao exterior ou "recuperar o controlo" – ironicamente, muitas vezes numa tentativa de criar resiliência imaginada, como a que foi apresentada como justificação para o Brexit – apenas criam mais perturbações, quebra de cadeias de abastecimento e preços mais elevados à medida que as empresas procuram recuperar as suas perdas. O regime de bens de consumo baratos está a tornar-se cada vez mais difícil de manter.
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Para além disto, existem implicações ainda mais importantes resultantes deste capitalismo desenfreado. Todo este movimento globalizado em tempo real é alimentado por combustíveis fósseis que levam à degradação do clima. O aumento de tsunamis, incêndios florestais, inundações e outros eventos climáticos extremos torna as cadeias de abastecimento e os bens de primeira necessidade que elas fornecem ainda mais vulneráveis. Os manifestantes sentados no centro de Londres ou nas autoestradas não estão enganados. Se privarmos as grandes empresas da livre utilização das suas fontes de energia letais favoritas, isso pode abrandar as coisas para um ritmo humano – e talvez até salvar o planeta ao fazê-lo.
Décadas de desregulamentação, privatização e culto do mercado deixaram a sociedade vulnerável à força dissimulada das cadeias de abastecimento “just in time". Os subsídios governamentais, os cortes fiscais, a formação profissional e outras políticas tradicionais não serão suficientes para resolver as crises que enfrentamos, desde a pandemia até à crise climática, e que estão a provocar o fracasso das cadeias de abastecimento. É tempo de refletir não apenas no modo como produzimos e consumimos bens, mas também no modo como os transportamos.
Kim Moody é o antigo organizador da rede Labor Notes nos EUA e autor de numerosos livros, incluindo On New Terrain: How Capital Is Reshaping the Battleground of Class War , In Solidarity: Essays on Working-Class Organization in the United States. É atualmente um investigador visitante na Universidade de Westminster. Artigo publicado no A L'Encontre. Traduzido pelo Esquerda.net por Paulo Antunes Ferreira.
Notas:
1 Navio porta contentores de 200.000 toneladas e 400 metros de comprimento, propriedade da empresa japonesa Shoei Kisen Kaisha, navegando sob a bandeira do Panamá e tendo como armador a Evergreen Marine Corporation.
2 O maior porto de contentores do Reino Unido.
3 Cerca de 858 milhões de euros.
4 Método de gestão da produção que consiste em coordenar o sistema de produção em torno das encomendas em detrimento dos stocks, produzindo ou comprando apenas a quantidade necessária no momento certo em cada fase do processo. Com este sistema, o produto ou matéria prima chega ao local de utilização apenas no momento exato em que for necessário. Os produtos só são fabricados ou entregues a tempo de serem vendidos ou montados. Nesta abordagem a aquisição é estritamente limitada às necessidades de produção. Como resultado, a empresa não dispõe de existências no local que lhe permitam produzir sem fornecimento externo. Este método de gestão de stocks tem a vantagem de reduzir os custos de aquisição e de reduzir o espaço necessário para as áreas de armazenamento.
5 Reduzir a velocidade de um navio para reduzir o consumo de combustível, a fim de reduzir os custos.
6 A British International Freight Association, também conhecida como BIFA, é a principal associação comercial do Reino Unido que representa os transitários britânicos, empresas que transportam mercadorias internacionalmente para importadores e exportadores. https://en.wikipedia.org/wiki/British_International_Freight_Association(link is external)
7 A Road Haulage Association Ltd (RHA) é uma empresa privada dedicada aos interesses da indústria do transporte rodoviário de mercadorias. É a única associação comercial no Reino Unido dedicada exclusivamente ao transporte rodoviário de mercadorias. https://en.wikipedia.org/wiki/Road_Haulage_Association