Entre seus múltiplos efeitos, a pandemia de coronavírus colocou muitas pessoas – finalmente – em uma crise de consciência. Obviamente, existe a necessidade de encontrar sentido e o ser humano tem uma extraordinária faculdade de unir fios narrativos para tecer uma versão dos fatos que permita encontrar uma espécie de ordem e propósito, ainda que este seja trágico ou letal. Recentemente, surgiu uma ideia amplamente difundida que afirma que a pandemia é somente uma manifestação a mais da crise climática e, inclusive, de uma crise da civilização humana como tal.
PijamaSurf/IHU-Unisinos, 16 de agosto de 2020. A tradução é do Cepat.
Neste caso, as intuições básicas das pessoas, que costumam ser menosprezadas por alguns cientistas, políticos e economistas, e que são expressas coloquialmente sob a ideia de que “tudo está interligado”, têm certo fundamento. Podemos afirmar que sim, na realidade, a epidemia que vivemos está relacionada à mudança climática, ao menos na medida em que possuem uma mesma causa e são manifestações de uma mesma problemática, sendo, neste caso, a mudança climática a condição mais profunda, expressão desta “crise da humanidade”, crise planetária, da qual, de certa forma, o coronavírus é um sintoma a mais.
O pesquisador Vijay Kolinjivadi descreve isto com uma pressagiosa metáfora: “A pandemia de coronavírus é como um bloco de gelo caindo de uma geleira. Você pode ver a queda do gelo, mas não pode ver que toda a geleira se derrete. Igualmente, a mudança climática continuará permitindo que caia blocos de gelo sobre a humanidade, depois que a pandemia de covid-19 for interrompida”.
A pandemia nos mostrou que existe algo sério acontecendo, mas embora em si gere alarme e talvez nos motive a fazer algumas mudanças, não nos deixa ver o problema de fundo. O iminente colapso da geleira sobre a qual a civilização está posta.
Há anos, diversos cientistas advertem que poderíamos estar entrando em uma era de pandemias, particularmente de doenças zoonóticas, transmitidas por animais cujos ecossistemas se veem ameaçados ou que entram em contato com humanos ou outros animais com os quais raramente se encontram. Este é o tema do livro Spillover, publicado em 2012, no qual David Quammen alerta sobre este crescente risco.
Entrevistado pela Universidade Yale, Quammen narra como em 2017 uma equipe de cientistas de Wuhan, em uma expedição em cavernas povoadas por morcegos da província de Yunnan, encontraram um novo coronavírus e identificaram seu genoma. Já se sabia, então, acerca do perigo deste tipo de vírus, pois o vírus que provoca a síndrome respiratória aguda grave (melhor conhecida como SARS, na sigla em inglês) é um coronavírus. Neste sentido, a atenção da comunidade científica estava sobre os morcegos por ser uma espécie especialmente propensa a hospedar vírus. Todos sabemos o que aconteceu depois.
Acredita-se que na China existe uma estranha tradição de comer animais selvagens de todos os tipos, que esta tradição está sumamente enraizada e que é de alguma maneira a causa da pandemia. Mas como Quammen observa, na realidade, isto é algo relativamente novo. Os textos antigos alertam a respeito dos efeitos negativos de comer animais. A autêntica causa do aumento de exposição a vírus zoonóticos, segundo Quammen, tem a ver com a nossa relação com a natureza, baseada no “consumo, a intrusão e a perturbação” dos habitats, destaca. Algo similar ocorreu para que outros vírus como o HIV e o ebola infectassem populações humanas.
Disse Quammen: “Quando vamos a uma mata tropical de grande diversidade e começamos a cortar árvores, capturar animais e matar animais por comida, oferecemos aos vírus a oportunidade de se tornar nossos vírus, de saltar e encontrar um novo hóspede, um hóspede mais abundante”.
Quammen oferece outro cenário de como isto acontece. O exemplo é o de metais raros como o coltan, utilizados há algumas décadas na fabricação e funcionamento de aparelhos tecnológicos. Em sua maior parte, o coltan é extraído em minas localizadas no Congo, perto de matas tropicais onde há gorilas, morcegos e todos os tipos de criaturas. Por outro lado, os trabalhadores nesses acampamentos mineiros trabalham em condições precárias, quando não francamente desumanas, o que os leva, entre outras práticas, a recorrer ao que se conhece como “carne do mato” para sobreviver, ou seja, a se alimentar de animais selvagens que talvez, em outras condições, nem sequer teriam maior contato. “Quando compramos um telefone celular – diz Quammen –, estamos aumentando esta rede de perturbação. Estamos aproximando os vírus de nós, talvez não tão diretamente como os consumidores de morcegos na China, mas, de qualquer modo, fazemos parte dela”.
Quammen entende que agora os recursos e a atenção estejam dirigidos a deter o novo coronavírus, mas sugere que uma vez que façamos isto, comemoremos apenas cinco minutos e nos coloquemos a pensar imediatamente no vírus seguinte, pois está a caminho. E talvez, além de estudar e antecipar possíveis surtos e dirigir recursos, ainda mais importante seria pensar na causa que produziu esta situação, em primeiro lugar, pois esta também tem a ver com a crise climática.
Como menciona Quammen, a causa fundamental desta situação tem a ver com o modelo de expansão econômica da civilização ocidental capitalista. Este modelo está baseado no eixo norteador do “crescimento econômico”: crescer a todo custo. É tido como um fato, e isto é o dogma sagrado da economia, que o crescimento econômico é um fator que sempre, de uma maneira ou outra, se traduz em prosperidade (e, por conseguinte, em uma redução da pobreza). Até mesmo na perspectiva puramente teórica, estes postulados são questionáveis, pois é possível que, na realidade, o crescimento econômico bruto, em razão da desigualdade e das condições que são criadas para aumentar a produção, não tenha como efeito eliminar realmente a pobreza.
Mas não discutiremos este tema. O que, sim, é mais fácil perceber é que o crescimento econômico, baseado no extrativismo de recursos e, necessariamente, na expansão dos mercados até o ponto de converter o próprio mundo em recurso e mercado “global”, tem uma consequência muito óbvia: perturba os ecossistemas, destrói incontáveis espécies animais e altera radicalmente o clima. É possível argumentar que o crescimento econômico produz riqueza, mas não é possível defender que o crescimento econômico, que não suporta uma pausa, ocorrendo em um mundo finito, não ameace destruir diversas formas de vida, incluindo a civilização humana.
Há alguns meses, um grupo de cientistas da Universidade de Nova Gales do Sul emitiu um comunicado enfatizando que a ciência de nossa época descreveu os diversos perigos que o mundo natural enfrenta por causa da crise climática, mas, lamentavelmente, “nenhuma destas advertências considerou explicitamente o papel que nossas economias baseadas no crescimento e na concorrência possuem. Em nossa própria advertência científica, identificamos as forças subjacentes do hiperconsumo e explicamos as medidas que necessitamos tomar para lidar com o esmagador poder do consumo e o paradigma econômico do crescimento”.
Os cientistas acrescentam: “A conclusão chave a que chegamos em nossos estudos é que não podemos depender somente da tecnologia para solucionar nossos problemas ambientais atuais [...], devemos também mudar nossos estilos de vida afluentes e reduzir o hiperconsumo com uma mudança estrutural”.
Uma das ideias que estiveram em voga, nos últimos anos, tem a ver com o que se chamou de “desenvolvimento sustentável” e a confiança em uma “revolução verde”, o que traria energia limpa e também crescimento econômico. Mas à luz da informação científica e eventos como a pandemia recente, fica cada vez mais claro que estas são somente novas formas de manter o mesmo paradigma e deixar de lado a urgente situação em que vivemos. Para dizer de outra forma, queremos poder continuar fazendo o que fazemos, com a mesma comodidade e liberdade e sem ter que assumir muita responsabilidade, só que agora de uma maneira mais inteligente ou menos destrutiva, dada pelo milagroso desenvolvimento tecnológico.
No entanto, como sugere o movimento do “decrescimento” (originalmente “décroissance”), na realidade, o desenvolvimento sustentável é um mito. Atualmente, o mundo precisa deixar de crescer. Como disse o teórico da mídia Douglas Rushkoff: na natureza, não existe nada que cresça infinitamente, exceto um tumor, e esse crescimento acaba em morte.
Ainda que este movimento esteja associado negativamente a uma recessão e depressão econômica, o decrescimento se tornou uma necessidade ecológica e ética para o ser humano. Alguns críticos destacam que o decrescimento significaria perdas de trabalhos, maior pobreza e todos os tipos de inconvenientes.
Os proponentes do decrescimento destacam que, por um lado, esta transição é inevitável e, quanto mais a prorrogarmos, mais traumática será. Inclusive, a própria pandemia poderia ser vista como um mecanismo de “decrescimento”, talvez forçado, mas natural. Por outro lado, destacam que a autêntica prosperidade não depende exclusivamente do crescimento econômico e que concebê-lo assim é a base do problema.
Além disso, o decrescimento daria passagem a uma economia não mais baseada no desenvolvimento sustentável, mas na autossustentabilidade, permitindo ao chamado Sul Global (os países do hemisfério sul que, em oposição aos do norte, compartilham em sua maioria a característica comum do subdesenvolvimento) se libertar, de alguma forma, do neocolonialismo que o capitalismo global significa.
O movimento do decrescimento ressalta a importância de uma mudança de paradigma, deixando de depender tanto da tecnologia, abandonando a crença de que só a tecnologia pode solucionar nossos problemas, assim como também promovendo um menor consumo em geral de energias e recursos, cujo maior impulso é o próprio desenvolvimento tecnológico.
Cabe notar que, nos Estados Unidos, 80% do crescimento econômico, nas últimas décadas, está baseado na inovação tecnológica. E, em geral, a economia está, atualmente, 60% baseada em produtos que não existiam antes de 1860. Por acaso, antes de 1860, só existia pobreza e mal-estar no mundo? Por acaso não estamos muito mais destruindo o mundo por algo que é totalmente supérfluo? Não obstante, os proponentes deste movimento sustentam que a tecnologia, em uma forma limitada, será útil, em uma convergência de “digital commons”, para delinear e manufaturar produtos e cenários com os quais será possível construir este novo mundo de decrescimento.
Algumas das medidas delineadas são os limites de consumo por pessoa, limites de riqueza ou impostos à riqueza, “inovação frugal”, reciclagem massiva, “mutualização” (ou seja, compartilhar espaços e produtos, mais por solidariedade que por desejo de lucro econômico), limitar a publicidade, os transportes privados, etc.
O decrescimento tende claramente a uma vida mais frugal e, inclusive, mais próxima às raízes.