José Correa Leite, 14 de junho de 2021
As manifestações ocorridas no Brasil, em 29 de maio, foram as mais decisivas desde 2018. José Antonio Moroni e Ana Claudia Teixeira as analisaram com propriedade, embora Angela Alonso tenha feito um reparo importante. Para as deprimidas esquerdas brasileiras, os atos foram uma lufada de oxigênio, em especial caso prenunciem a abertura de novas iniciativas que desbloqueiem a atividade autônoma das massas. Poderemos testar seu potencial nos atos convocados para o próximo 19 de junho. Porém, quando observados do cenário latino-americano - há quatro décadas a região social e politicamente mais conflagrada do mundo -, estes protestos parecem tímidos. Boa parte dos países do continente não compartilham para nada o estupor que atinge o movimento autônomo das massas brasileiro desde 2013.
O Brasil desde o mirante continental
Se rejeitarmos a ideia de uma excepcionalidade brasileira, poderemos observar desde uma perspectiva muito mais abrangente os processos que atravessam a sociedade brasileira e que compartilhamos com boa parte do continente - que ajudam a entender o bloqueio político que representam as esquerdas institucionalizadas de nosso país. Para o Brasil, que tem uma das culturas políticas mais provincianas do mundo, uma “visão do mirante” (alegoria que Michael Lowy utiliza para descrever a vantagem do marxismo sobre o positivismo) é sempre superior e libertadora. Ela auxilia a desenhar a “paisagem da verdade” que pode nos ajudar a superar o empirismo e permitir que atuemos levando em conta a totalidade do capitalismo global, ou seja, o conjunto da “floresta” onde estamos imersos e não apenas “as árvores” ao redor da clareira que agora vemos.
A presente crise é a maior que o continente e nosso país atravessam desde 1929. Ela é sistêmica, vem de longe (no nosso caso desde 2013), desencadeia movimentos tectônicos poderosos e exigirá respostas de envergadura análoga àquela da década de 1930. O evento “1930” rompeu com a hegemonia liberal inglesa na região e levou ao desenvolvimentismo, através de políticas estatais capitalistas de substituição de importações que perduraram até a década de 1980. Que resposta ofereceremos à crise em curso nesta terceira década do século XXI? Que lugar a região pode vir a ocupar na divisão internacional do trabalho do capitalismo do Antropoceno e nos rearranjos da crise da hegemonia norte-americana?
O trauma social que estamos vivendo no Brasil (e em outros países) já é, em todo caso, similar ao de uma enorme guerra civil. O número de mortos continua escalando, sendo os dados oficiais bastante subestimados; quando os mortos nas estatísticas estava em 423 mil, a Organização Mundial de Saúde estimava o número real em 617 mil. Dificilmente deixaremos de ter menos de um milhão de mortos pela pandemia e pelo governo Bolsonaro. E, diferente das enfermidades do passado, hoje sabemos que isso não se deve a um ato da natureza ou a uma fatalidade, mas a escolhas políticas - biopolíticas, necropolíticas e de ecocídio. Um sofrimento humano nesta escala seria impensável, entre nós, há pouco tempo atrás.
É muito provável que tenhamos, nos próximos anos, uma grande reorganização geral da vida política no Brasil; nada do que existe pode ser considerado garantido, tudo que parece sólido pode se desmanchar no ar. É útil, assim, prospectar nosso país a partir dos problemas, análises e debates estratégicos que compartilhamos com nossos vizinhos, que nos oferecem experiências preciosas.
As vantagens do atraso e os caminhos não trilhados
O ponto de partida é a constatação do tema clássico no marxismo da “vantagem do atraso”, trabalhado em escala regional - que Marx via na Alemanha feudal em meados do século XIX e na Rússia das comunas agrárias no final de sua vida, ou Lenin, em 1913, quando observava a “Europa atrasada e a Ásia avançada”. Enquanto o Brasil semi-industrializado dos anos 1980, com um vasto parque de manufaturas fordistas, não compreendia a guinada neoliberal e ainda se fiava na ilusão de alcançar as potências globais (erro que Lula repetiria no governo duas décadas depois, com apostas muito mais rebaixadas pelo boom das commodities), muitos de nossos vizinhos eram confrontados de maneira inescapável, nesta década perdida, com sua colonialidade. Eles assumiram que o arcaismo constitutivo de suas formações sociais não se devia à permanência dos laços comunitários pré-capitalistas, mas, ao contrário, à forma como o capitalismo global internalizado deforma todas as relações nestes países e articula e impõe sua sincronicidade a estas relações.
Setores da esquerda na região assumiram, assim, uma ruptura com um pensamento social e uma cultura política estrategicamente focadas no proletariado industrial e acorrentada em uma visão de progresso como crescimento das "forças produtivas" - a mesma que serviu de modelo, no Brasil, para o Partido dos Trabalhadores. A vantagem de nossos vizinhos se tornou nítida quando o capitalismo global desconstruiu, sob a batuta dos governos FHC e Lula, a industrialização dependente do Brasil praticamente sem resistências e o mundo do trabalho rapidamente se fragmentou. Esta posição decolonial tinha raízes profundas, sociais e intelectuais, nos movimentos indígenas e ambientais, na assimilação precoce da diversidade social e do pluralismo no campo popular e igualmente na estatura intelectual de pensadores como José Carlos Mariátegui e de toda a corrente nele referenciada. Em contraposição, no Brasil, sucessivas vanguardas políticas agiram e fizeram suas escolhas estratégicas desde uma leitura positivista do marxismo, com critérios quantitativos e homogeneizadores, considerando que mais capital significaria mais “progresso” para o país.
As encruzilhadas estavam dadas também no Brasil. É interessante, como exemplo, confrontarmos dois testemunhos dos debates e as opções de quatro décadas atrás, ambos impressionantes por sua ousadia. São “O PT e o partido revolucionário no Brasil”, um documento elaborado pela Democracia Socialista em 1981 (até hoje uma corrente do PT), e “O quilombismo”, uma proposta política publicada em 1980 por Abdias do Nascimento (que faleceria em 2011 como senador pelo PDT). A luta política tanto conduziu o PT para longe dos objetivos revolucionários então pretendidos pela DS, como a sociedade brasileira para longe do ajuste de contas necessário com seu passado escravista, o centro da proposta de Abdias. Evidentemente, a alternativa ao PT não precisaria ser o quilombismo, mas é evidente nem que uma coisa não deveria ter excluido a outra, como que muitos outros caminhos não trilhados deveriam ter sido percorridos desde então - como, por exemplo, manter a compreenção da participação popular como auto-emancipação e empoderamento e não apenas simplesmente reconhecimento ou esculta; ou ainda trilhar na linha da paridade de gênero.
As escolhas do passado não podem ser refeitas, mas, na grande crise do século XXI, com novos e múltiplos horizontes estratégicos se descortinando, e seria tolice manter a inércia que nos trouxe até aqui.
Os sujeitos interseccionais, sempre plurais
Desse ponto de vista, a decolonialidade é inseparável da questão do sujeito, agenciamento ou bloco histórico. Parte importante da esquerda brasileira ainda está imersa no luto da perda da classe operária e das suas formas de organização clássicas, fortemente homogeneizadoras, hierárquicas e burocráticas, associadas ao binômio "sindicatos" e "partidos". O neoliberalismo global e agora o capitalismo de plataformas reorganizam e fragmentam o mundo do trabalho e as formas prévias de organização colapsam, sem que novas tenham emergido. No máximo se busca substitutos em movimentos por reivindicações deste ou daquele setor (“econômicas”, na velha linguagem, justas mas particulares), estatizando e institucionalizando a política na dinâmica eleitoral ou ainda aceitando a contragosto a pluralidade dos sujeitos populares. Há experiências pontuais de redes, associações, cooperativas e sindicatos que exigirão, para sua difusão, uma verdadeira revolução cultural nas esquerdas brasileiras.
O abismo é, todavia, muito mais profundo, porque os protagonismos populares efetivos são, por todo o continente, plurais e crescentemente mobilizados por pulsões corpóreas e pelas novas culturas constitutivas da condição existencial de outros atores: mulheres, negres, lgbts, indígenas... Percebemos isso no Brasil com o assassinato de Marielle Franco. São movimentos que têm uma capacidade de interpelação e exemplaridade com a qual lutas de cunho economicista simplesmente não podem mais competir como constitutivas das identidades, sujeitos e alianças contemporâneas.
Algo análogo pode ser dito do materialismo histórico e natural profundo que representa a identificação de um ativismo enorme, embora difuso, com a defesa da teia da vida, com a pulsão de vida na raíz do movimento ambiental que emerge de distintas territorialidades e temporalidades. Este mobiliza não só as “vítimas do progresso” (o “ecologismo dos pobres”), mas tem também um apelo universalista, propondo outros modos de vida para todas as populações. Nesta convergência, a luta social é ecológica e de defesa dos comuns ou não é anticapitalista. Estes são tod@s movimentos com práticas e apelo internacionalistas, dimensão sem a qual não se constituem alternativas credíveis.
O que a experiência do continente nos trás é a proposta de que as lutas inserseccionais e ecossociais são (ou podem ser) alianças estratégicas de luta pelo poder e por uma nova sociedade, e que elas não se subordinam nem à dinâmica dos partidos nem ao calendário das eleições (com o qual os partidos passaram a se identificar).
As esquerdas brasileiras - em parte ainda prisioneira dos paradigmas formulados na Europa nas décadas iniciais do século XX - tem muito a aprender com as lutas populares que eclodiram pela região. É evidente que o problema não é apenas brasileiro: por exemplo, as esquerdas “marxistas” argentinas fazem, em comparação, grande parte dos socialistas brasileiros parecerem abertos. Chavez, Maduro, Correa, Evo... são parte do mesmo espectro onde estão Kirchner, Lula e Bachelet, mas ai também estão diversas correntes que se reivindicam marxistas.
Estas esquerdas "coloniais" - no vocabulário (e a gramática) daqueles que empreenderam o giro ecoterritorial e interseccional - ainda dominam o terreno das disputas eleitorais, em especial onde os movimentos sociais não são autônomos, porém já não reinam sem questionamentos.
O estatismo, como conclusão lógica do nacionalismo (o Estado é a “ferramenta” de afirmação da “Nação”), e o campismo (aliança entre os governos / estados progressistas / “antiimperialistas”) permanecem convicções congeladas no tempo, não só para os “progressismos” mas também para vários “comunismos” sobreviventes. Tidas como lições da história para esses socialistas, são convicções que frequentemente foram, na medida em que o mundo do trabalho se fragmentava e a dialética da história se desdobrava por outros caminhos, tornando-se sua caricatura e negação. Os problemas de burocratização, eleitoralismo, integração ao estado, autoritarismo, verticalismo, caudilhismo, dogmatismo e conservadorismo escalaram nas intersecções entre o progressismo, o bolivarianismo e o castrismo - chegando, por exemplo, a uma dimensão trágica na ditadura orteguista na Nicarágua. Eles têm raízes comuns, que tem que ser diagnosticadas e combatidas ativamente não como pequenas deformações, como se pensava no passado, mas como bloqueios autoritários essenciais à alternativas sistêmicas do século XXI.
Contra isso, se formou, por todo o continente (embora em menor grau no Brasil), um vasto campo político plural a partir de vetores que se reforçam mutuamente - ecossociais, participativos, feministas, indígenas, antirracistas -, procurando conscientemente se afastar das referências possibilistas do progresso como mera quantidade, “desenvolvimento" e estatização da política, mesquinhas como horizonte de mudança e distantes das necessidades dos povos. A própria forma de conceber os movimentos e suas organizações se tornou distinta, a partir de redes complexas e flexíveis, lidando com incertezas e bifurcações, e não mais com hierárquicas rigidamente demarcadas, movidas por certezas otimistas quanto ao rumo da história. Apesar da longa duração das estruturas mentais, um abismo se coloca entre uma forma de agir-sentir-pensar e a outra; apesar da inércia das expressões políticas, que vemos todo dia em ação, muita coisa vem se tornando obsoleta. Hoje este campo ecossocial e decolonial emerge - em contraposição aos progressismos e as esquerdas institucionalizadas - como portador de futuro, capaz de catalisar uma multiplicidade de lutas e as energias utópicas que carregam. É a partir dele que existem condições para se formular estratégias de ruptura anti-sistêmica.