Lideranças históricas da demarcação e homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, estão entre as vítimas da Covid-19. Dionito, Bernaldina José Pedro, Alvino Andrade da Silva e Luciano Peres, todos da etnia Macuxi, lutaram desde os anos 50 para que os povos tivessem reconhecidos seus direitos sobre o território. Em questão de dias, perderam suas vidas pela falta de proteção e apoio das autoridades no combate ao novo coronavírus.
Janaina Souza, Amazônia Real, 30 de julho de 2020
“Nossas lideranças estão partindo. Essa doença braba que ninguém conhece está dizimando nossos povos”, desabafou Jacir José de Souza, irmão de Dionito José de Souza, do povo Macuxi. Jacir, ex-tuxaua da aldeia Maturuca e ex-coordenador do Conselho Indígena de Roraima (CIR), é reconhecido internacionalmente pela defesa da demarcação e homologação da TI Raposa Serra do Sol. Em 2008, ele foi recebido pelo Papa João Paulo II no Vaticano, na Itália.
Atualmente ele está em recuperação da Covid-19 em Boa Vista e alerta para a urgência na proteção dos povos indígenas. “Precisamos agir, pois essas lideranças deixaram famílias e muita gente está contaminada. Eu tive que vir para a cidade passando mal e fui tratado no Hospital de Campanha. Faço um apelo às autoridades para olhar o povo indígena com mais atenção. Enviar médicos, enfermeiros que entendam dessa doença para as comunidades, antes de que a situação piore”, disse Jacir.
A pandemia chegou a várias comunidades indígenas de Roraima, onde quase metade do território é indígena e vivem os povos Wapichana, Macuxi, Ingaricó, Wai Wai, Patamona, Sapará e Taurepang. No Distrito Sanitário Especial Indígena Leste Roraima (Dsei) Leste, há 1.529 casos confirmados de Covid-19 até esta quinta-feira (30 de julho), segundo a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão do Ministério da Saúde. A Sesai diz, que até o momento, 1.114 estão infectados pela Covid-19 e 382 foram curados da doença.
A população abrangida pelo Dsei Leste é de 51.797 indígenas que vivem em 342 comunidades. De abril a julho, de acordo com a Secretaria Estadual de Saúde (Sesau), 37 indígenas morreram por causa do novo coronavírus, sendo 28 da etnia Macuxi, cinco Wapichana, dois Wai-Wai, um Ingaricó e um Taurepang.
Dionito Souza tinha 52 anos e esteve na linha de frente durante a operação Upatakon, da Polícia Federal, que retirou em 2009 produtores de arroz e não índios de dentro da terra indígena. A TI Raposa Serra do Sol já havia sido homologada quatro anos antes pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, depois de demarcada no governo de Fernando Henrique Cardoso e identificada em 1993 pela Fundação Nacional do Índio (Funai), mas foi continuamente invadida, antes pelos arrozeiros e atualmente pelos garimpeiros. Essa era a luta de lideranças como Dionito, que era vice-coordenador da Região da Serras e deixou esposa, 10 filhos e 13 netos.
Eldina Gabriel, esposa de Jacir, também chora a perda da mãe, Bernaldina José Pedro, de 75 anos, outra defensora da homologação da TI Raposa Serra do Sol. Ela era matriarca e pajé do povo macuxi, vivendo na Comunidade Maturuca, na região das Serras. Conhecedora dos saberes da medicina tradicional, era uma artista e fazia artesanatos como colares, pulseiras, brincos, redes e tipoias. Sempre fazia a abertura dos eventos com rituais, dança e cânticos, o chamado maruai. “Vó Bernaldina”, como era chamada por muitos, morreu no dia 24 de junho, no Hospital Geral de Roraima (HGR), vítima da Covid-19.
“Minha mãe ensinou às futuras gerações os cânticos, a arte da confecção da panela de barro. Quando as crianças estavam doentes, ela defumava, até mesmo nos adultos, com o maruai. Tudo que aprendi com ela estou passando para meus filhos e crianças da comunidade”, destacou emocionada, por telefone, Eldina.
O filho mais novo de Bernaldina, artista plástico Charles Gabriel, de 41 anos, também quis se manifestar sobre a avó que deixou 6 filhos e 15 netos: “Durante a vida dela na TI Raposa Serra do Sol, na comunidade Maturuca, ela trabalhou, lutou por várias causas, uma delas para retirada dos garimpeiros na comunidade Lage, nos anos 1990. Minha mãe acompanhou a luta das lideranças e dos tuxauas. Deixa exemplo para muitos”, disse Charles, lembrando também da visita da avó ao papa Francisco em 2018, no Vaticano, levada pelo filho de criação e artista macuxi Jaider Esbell.
Outra liderança importante para os povos indígenas de Roraima foi o professor Alvino Andrade da Silva, da etnia Macuxi. Ele morreu no dia 20 de junho, no HGR, vítima da Covid-19. Deixou esposa e um casal de filhos. Ele se dedicou à educação indígena e participou da proposta de criação do Instituto de Formação Superior Indígena da Universidade Federal de Roraima (UFRR), Insikiran. Alvino foi assessor especial do reitor da instituição de 2015 a 2017 e coordenou o projeto E’ma Pia, plano base para ingresso de estudantes indígenas de graduação na UFRR.
O professor Alvino nasceu na comunidade Boqueirão, região do Tabaio, município de Alto Alegre, em Roraima, mas atualmente residia em Boa Vista. “Eu tenho orgulho de ser sobrinho dele e poder ter conhecido sua história de vida. Participou de vários projetos tanto no Conselho Indígena de Roraima, como na Organização dos Professores Indígenas de Roraima, entre outras organizações, sempre buscando o melhor para a causa indígena, no que tange à educação”, disse o sobrinho Izac dos Santos Justino.
Outra liderança de destaque na educação indígena levado pela Covid-19 foi o professor Luciano Peres, de 68 anos, também Macuxi. Ele faleceu dia 13 de junho, no Hospital Geral de Roraima, deixando esposa, cinco filhos e três netos. Desde muito cedo se dedicou à educação indígena na comunidade Barro, onde está sediado o Centro Indígena de Formação e Cultura Raposa Serra do Sol.
“Ele lutou bastante para termos uma educação diferenciada, como é até hoje. Trabalhou por algum tempo na fazenda Panorama que hoje é a comunidade Novo Destino, logo após começou a estudar na antiga Missão Surumu, deixando de ser vaqueiro da fazenda”, destacou Fabiano Souza Peres, o filho mais novo de seu Luciano. No internato, Luciano se formou em pedagogia e matemática, trabalhou na escola Padre José de Anchieta, onde foi professor e gestor pedagógico. “A vida do meu pai daria um documentário, pois é um exemplo para muitos jovens. Ele sempre dizia que a educação ninguém tira da gente”, disse Fabiano com a voz embargada.
Em nota, a Secretaria Estadual de Saúde (Sesau), por meio da Coordenadoria Geral de Vigilância em Saúde, informou que o Plano de Enfrentamento ao Coronavírus foi construído com a proposta de apresentar um fluxo de atendimento para atender toda a população, incluindo pacientes indígenas, não indígenas e imigrantes. De acordo com a Sesau, o HGR dispõe de uma Coordenação Indígena, que busca promover o contato direto entre o hospital, a Casa do Índio e familiares do paciente, dando o apoio desde a triagem até o momento da alta hospitalar.
No Hospital Materno Infantil Nossa Senhora de Nazaré, também há uma coordenação indígena, que presta a assistência a pacientes desde a alimentação até a instalação de redes, conforme solicitação da paciente ou familiares. No Hospital de Campanha (Área de Proteção e Cuidados), existem enfermarias instaladas com leitos-rede (redários) para atender os pacientes indígenas.
O Dsei Leste, ligado ao Ministério da Saúde, não se manifestou até o fechamento da reportagem.