Francisco Louçã, A terra é redonda, 19 de novembro de 2020
Lawfare, de Cristino Martins, Valeska Martins e Rafael Valim, agora publicado em Portugal, é um estudo perplexo sobre uma nova realidade, a emergência da judicialização da política como instrumento da politização da justiça. Como quem leia as páginas seguintes se aperceberá, os autores partem da sua própria experiência no turbilhão da mudança das regras judiciais num caso de grande alcance, o julgamento do ex-presidente Lula (apresentam-se, aliás, como os advogados que constituíram a “defesa técnica” do acusado, sublinhando assim que se definem como sendo alheios à leitura política do caso), para tentarem identificar e explicar o processo de corrupção dessa justiça, descobrindo que há traços universais nesse movimento.
O livro começa por descrever esta simbiose entre a lei (law) e a guerra (warfare), para depois apontar a estratégia que deste modo se corporifica e as táticas que a concretizam, concluindo com anotações, porventura demasiado breves, sobre três exemplos, os de um caso que envolveu a Siemens, o da investigação contra o senador republicano Ted Stevens, durante a presidência de Obama, e, finalmente, a acusação contra Lula, que impediu a sua candidatura presidencial e que o levou à prisão durante um ano e meio e a um processo ainda em curso. A escolha dos exemplos indica como os autores evitam uma leitura simplificada e suspeitam que o lawfare possa vir a ser um instrumento de uso generalizável em distintos contextos de poder político, até de diversas cores.
A manipulação da lei e da justiça por um governo autoritário não é, evidentemente, de hoje. A lei do apartheid e a prisão de Nelson Mandela, como é lembrado pelos autores, tem uma longa história no século XX, e outros casos não destoam dessa violência. Ela é uma constante universal. Se “o direito é a organização da força”, como escreveu Hans Kelsen, assim terá sido sempre, a história da lei é a do poder das classes dominantes que a definem e fazem aplicar. As ditaduras, mas também outras formas de poder discriminante usaram a lei para consagrar o inaceitável ou o seu discurso justificativo (só para nos mantermos no século XX, os estatutos do indigenato foram lei no Portugal imperial e salazarista, a distinção entre brancos e negros ou indo-americanos foi lei nos Estados Unidos, a exclusão dos direitos de voto das mulheres e outras imposições perduraram ao longo do século em vários países europeus, num caso quase até ao fim do terceiro quartel).
No entanto, houve sempre poderosos movimentos que, na modernidade, se não antes dela, terçaram razões para que a lei e o procedimento da justiça consagrassem regras verificáveis e que gerassem imparcialidade. Assim se foram desenvolvendo por séculos e mesmo milênios a lei escrita aplicável a todos, ou, mais recentemente, o tribunal de júri, a presunção da inocência ou a codificação dos direitos de defesa. Confiante nesse progresso, Lacordaire afirmava que, “entre o forte e o fraco, é a lei que liberta e a liberdade que oprime”. Quanto a saber se essa libertação pela igualdade na lei é uma presunção, uma garantia, ou uma quimera, as histórias modernas indicam exemplos contraditórios. E é aqui que entra o argumento dos autores deste livro.
O lawfare é o mecanismo pelo qual “o Direito deixava de ser uma instância de resolução pacífica de controvérsias para se metamorfosear, perversamente, em uma arma do Estado para abater os inimigos de turno”, escrevem os autores. Isso “significa o uso estratégico do Direito para fins de deslegitimar, prejudicar ou aniquilar um inimigo”. A genealogia do conceito confirma esta definição. Segundo nos explicam, as primeiras formulações serão de 1975, mas foi o major general Dunlap Jr, das forças armadas norte-americanas, quem, em 2001, identificou o lawfare como uma arma do inimigo.
No caso, tratar-se-ia das campanhas pelos direitos humanos, que prejudicariam a acção dos EUA ou de Israel. No entanto, em 2008 foi o mesmo oficial quem sugeriu que se trataria de uma arma a utilizar e não só a temer, no contexto das guerras híbridas que seriam a marca do nosso tempo. A arma serviria para atingir o adversário, para dividi-lo, para paralisá-lo e para virar contra ele a opinião pública. Esse procedimento exigiria o uso da justiça, não tanto para resolver casos individuais, mas, antes, para obter efeitos sociais demonstrativos. A justiça seria então transformada num modo de hostilização, o que supõe que as regras sejam adaptáveis e facultativas, ou que os fins justifiquem os meios.
Não se trata exatamente do estado de exceção, pois o lawfare não se pode revelar-se como um poder absoluto, dado que a eficácia desta guerra híbrida exige o seu reconhecimento como uma normalidade fora do cenário bélico ou do estado de sítio. Ao contrário da versão fascistizante de Carl Schmitt, para quem o poder absoluto define o soberano como quem decide o estado de excepção, aqui trata-se da força da banalização: a justiça como arma tem que ser aceite como a norma, como o costume. Para que os procedimentos judiciais sejam eficazmente instrumentalizados por entidades políticas para fins próprios, é ainda imperativo que o sejam sob a aparência da espada cega da justiça. Trata-se, portanto, de um modo de hegemonização.
A generalização desta técnica de dominação tem suscitado alarme. Em junho de 2019, lembram-nos os autores, o Papa Francisco incluiu num discurso o alerta: “O lawfare, além de colocar em sério risco a democracia dos países, é geralmente usado para minar processos políticos emergentes e tende a violar sistematicamente os direitos sociais. A fim de garantir a qualidade institucional dos Estados, é essencial detectar e neutralizar esse tipo de práticas que resultam de uma atividade judicial imprópria combinada com operações multimediáticas paralelas”. Neutralizar o lawfare, não houve outro dirigente mundial que o tenha dito com tanta clareza. Vale a pena seguir então estas duas preocupações, perguntando-nos como é que esta estratégia obscurantista promove uma “prática judicial imprópria”, em primeiro lugar, e como se combina com “operações mediáticas paralelas”, em segundo lugar.
A prática judicial, o objeto da primeira das referências de Francisco, é o centro de atenção deste livro. Os autores evocam os riscos da delação premiada, que usa o interesse de alguns investigados para a construção de provas contra outros, permitindo a falsificação da evidência, ou o uso ou excesso de prisão preventiva, que pode servir como certificação para a opinião pública da periculosidade dos acusados, mesmo quando se trate de uma forma de ocultar a escassez de provas, ou os obstáculos processuais prejudicando a defesa, incluindo vigilância sobre advogados (no caso Lula, o juiz determinou escutas telefônicas ao escritório dos advogados de defesa), ou ainda a denúncia sem materialidade, tudo o que conforme uma justiça como perseguição.
Processos como os resumidos no livro são exemplos destas práticas. Os autores listam as táticas que as sustentam, incluindo, ao nível procedimental, o overloading (multiplicando as mensagens para tornar inviável a sua leitura), o jamming (confundir a comunicação) ouo spoofing (misturando informação falsa), ou na imposição de ações ilegais, como as que foram reveladas em 2019 pelos jornalistas do The Intercept, que apresentaram as mensagens trocadas em conversas do juiz Sérgio Moro com o procurador Deltan Dallagnol e que evidenciaram, com detalhes humilhantes de subserviência, como a investigação era encaminhada pela convicção e vontades do juiz.
Essa imposição foi facilitada pela anomalia que está consagrada no processo penal brasileiro e que permite que o juiz de instrução seja ainda quem julga na primeira instância, deste modo criando efetivamente uma inversão do ônus da prova. Trata-se aqui da mobilização de instrumentos poderosos: a indiciação para condicionar a opinião pública, nomeadamente através de cirúrgicas fugas ao segredo de justiça, partilhando informação verdadeira ou falsificada que, pelas circunstâncias, não pode ser contraditada, ou através de medidas demonstrativas, como a prisão preventiva para prosseguir uma investigação frágil e, em consequência, promover antecipadamente um julgamento definitivo pelos media. Talvez, no final do livro, os leitores concluam que a argumentação dos autores foi convincente e que o veredicto é apropriado. Creio que é, mas talvez o crime seja ainda mais grave do que o sugerido por este manual de entorses, que usa a justiça para a injustiça.
A segunda prevenção de Francisco é precisamente sobre esse perigo de ampliação do warfare através do alcance das “operações mediáticas”, que não são tema desenvolvido neste livro. Algumas dessas operações têm sido objeto de atenção em Portugal e noutros países europeus, e o caso brasileiro foi mais uma vez um exemplo, por vezes inábil, desse procedimento, dado que se tratava de uma operação de urgência para impedir uma candidatura presidencial (não tratarei neste prefácio de como, na minha opinião, a governança pelo PT, nomeadamente a sua adaptação ao funcionamento tradicional do sistema político brasileiro, assente na corrupção parlamentar, conjugada com casos anteriores, facilitou o contexto social para esta operação, pois exprimi a minha crítica noutros textos).
Creio que os democratas devem estar muito atentos a este segundo perigo. Mesmo admitindo que a lei, as instituições e as práticas judiciais pudessem ser protegidas da lawferização, a disseminação das formas instrumentais de manipulação mediática permite a qualquer agente usar o seu poder oculto para produzir danos irreversíveis no processo judicial, e sobretudo no processo penal. Se vivemos a época da política pós-maquiavélica, o que mudou é a forma da imposição da hegemonia, já não através de uma história credível, protegida por arautos e ideólogos e construindo uma narrativa, mas antes por via de um efeito de enxurrada. Talvez Trump, melhor do que todos os outros heróis do bufanismo tenha sido o exemplo do sucesso desse tipo de tecnologia de infoxicação. Mas creio que não nos livraremos da sombra desta tecnologia, mesmo que o resultado eleitoral de finais de 2020 lhe venha a ser adverso.
Metade da população mundial está já ligada à internet. Para a maioria, essa conexão concede uma experiência viciante de vida que consiste no jogo ou na rede social, ou nos dois, e, assim, uma parte do mundo vive num refúgio des-socializado e num simulacro de sociedade. Isso cria comunicação, mas é uma comunicação de tipo novo, orientada pelo algoritmo, subordinada à gênese de mitos como nenhuma outra forma anterior, dado que, na sua configuração atual, não conhece intermediações e se baseia na intensidade emotiva, em que a exuberância é o mercado mais promissor.
Neste mundo, o influencer é o bufão do baixo clero, o árbitro das redes, cuja ambição é o dinheiro e uma fama efêmera arrancada pelo abuso da trivialidade, a mais universal de todas as linguagens. No caso de Portugal, 63% de quem cá vive será informado pelas redes sociais e já não pelos media tradicionais do século XX; há programas de influencers que têm mais visualizações do que o telejornal da televisão dominante e, entre os jovens, a hegemonia é absoluta. Há uma geração que nunca abriu um jornal nem vê televisão. Na Coreia do Sul, são dois terços da população; nos Estados Unidos, 70% dos adolescentes têm como referência o Instagram, 85% o Youtube.
O que, no entanto, não se antecipava, à medida que foi crescendo este paraíso digital em que todos são apresentados como iguais, é que a bufaneidade ocupe uma parte tão importante da sua comunicação. E é uma clara marca de polarização política: numa sondagem recente do YouGov sobre os Estados Unidos, 44% dos republicanos declaram acreditar que Bill Gates criou o coronavírus para implantar um chip em cada pessoa através da futura vacina (ainda há 19% dos democratas que aceitam esta tese). O Pew Research Center concluiu em março que 30% dos republicanos pensavam que o Covid tinha sido criado para atacar o seu país (metade entre os democratas). Tinham todos lido essas certezas nas redes sociais, que se vão tornando o equivalente ao ministério da verdade de George Orwell.
Aaron Greenspan, que estudou em Harvard e foi colega de Zuckerberg, com quem terá criado o Facebook em 2003 e 2004 (a empresa pagou-lhe há dez anos uma fortuna para encerrar um litígio judicial por direitos autorais, em condições não reveladas) e que se tornou um crítico dos perigos da gestão das redes sociais, publicou um relatório em janeiro do ano passado em que afirma que metade dos perfis mundiais são falsos, com base em dados da própria empresa. O FB desmente, apesar de reconhecer um número mais reduzido, um em cada vinte.
A diferença é sensível, mas mesmo que a poluição seja menor do que o que sugere Greenspan, a vulnerabilidade à manipulação industrial, à mecânica da avalancha e ao sistema de bolhas é construída por esta mancha imensa e pela velocidade da transmissão sobre ela. Ora, nunca houve outro meio de comunicação, menos ainda o mais poderoso do mundo, que não fosse sujeito a alguma forma de obrigação legal ou a regras comuns de atuação, de controlo de ideoneidade dos criadores de conteúdos, de dever fiscal nos lugares onde opera o seu negócio. Agora, as redes sociais e as suas multinacionais estão acima dessas obrigações e não mostram qualquer vontade de se lhes submeterem, e é por isso que são um canal poderoso para o warfare. É aqui que as armas da comunicação são mais fulgurantes, e são letais.
Assim, neste ministério da verdade, a informação informa mas não tem fontes reconhecíveis, antes é produzida por uma miríade de replicações; a torrente não é verificável, o seu mapa é o caos; e a publicidade é manuseada de acordo com a nossa história, sabendo tudo sobre cada pessoa. A rede não depende de credibilidade, como um dia aconteceu com as empresas de comunicação social, antes promove a ocupação de espaço emocional, e nisso sobressai o burlesco. Não nos oferece um produto, o produto somos nós, como sublinhou o jornalista Paulo Pena no seu livro Fábrica de Mentiras: Viagem ao Mundo das Fake News. Assim, nunca houve comunicação tão avassaladora e é nisso que a mentira se estriba. Ora, não existe mentira mais majestosa do que a do lawfare, pois exibe a toga da justiça e veste a solenidade da lei.
Se, como sugere Francisco, se combinar a agressividade da instrumentalização hostilizante da lei com a infoxicação, então o poder assim obtido é imenso. Ora, se os seus manipuladores o sabem, é preciso que a democracia aprenda a proteger-se. E ainda não o conseguiu. O livro que vai ler conta a história de várias trincheiras numa guerra que é de movimentos e não lhe garante um final feliz. Talvez por isso exija tanto aos seus leitores, pois só a insurgência democrática pode salvar a democracia e a justiça.
*Francisco Louçã foi coordenador do Bloco de esquerda (2005-2012, Portugal). Autor, entre outros livros, de A maldição de Midas – A cultura do capitalismo tardio (Cotovia).
Referência
Cristiano Zanin, Valeska Martins & Rafael Valim. Lawfare: uma introdução. São Paulo, Contracorrente, 2019.