Francisco Louçã, Esquerda.net, 10 de julho de 2020
Quando se percebeu como a pandemia era grave, alguns laboratórios nacionais ofereceram testes a 200 euros, ou mais. Ainda estão a ser feitos a 125 euros para o público em geral. Em março, para garantir mais capacidade, o Governo pagava 100 euros por teste aos privados. Quando, há duas semanas, alcançámos a fasquia de um milhão de testes, 40% dos quais no privado, ficámos a saber que os laboratórios poderão ter recebido entre 40 e 50 milhões de euros e, como o Serviço Nacional de Saúde os realiza com um custo que é menos de metade e neles não será diferente, terão obtido um lucro generoso. Entretanto, os hospitais privados tinham-se lançado à cata de doentes e anunciaram que cobrariam 130 euros ao Estado por cada um, até o ministério lhes fechar essa porta. Uma crise é mesmo uma oportunidade de negócio.
Nunca desperdiçar uma crise
Ficou famosa a frase de Rahm Emanuel “nunca desperdiçar uma crise séria” (no “Wall Street Journal”, 18 de novembro de 2008). Era então chefe de gabinete de Obama, uma das pessoas mais poderosas em Washington, estava-se em pleno colapso financeiro do subprime, a recessão viria logo a seguir. O dito tem sido citado como um bondoso apelo à correção dos erros, mas o que se passou depois não dá demasiado crédito a tanta expectativa. “O que quero dizer com isto é que é uma oportunidade para fazer coisas que pensámos que não poderíamos fazer antes”, acrescentou então Emanuel. Mas, se medirmos os resultados dessa oportunidade, foram magros. Nem houve modificação substantiva da forma de regulação da finança, nem as políticas sociais foram suficientes, ainda hoje os EUA se debatem com o risco de dezenas de milhões de pessoas sem proteção na saúde. Há poucas semanas, a 25 de março, Emanuel escreveu no “Washington Post” uma nova versão do mesmo apelo: “Vamos assegurar que esta crise não é desperdiçada”, sugerindo que o mesmo não pode dizer dos resultados da anterior.
Há quase 50 anos, Milton Friedman, um economista ultraconservador que viria a ganhar o Nobel e tinha sido alcandorado à fama por um programa de televisão, publicou um livro, “Capitalismo e Liberdade”, em que explicava que “só uma crise, seja real seja percebida como tal, conduz a uma verdadeira viragem”. A sugestão era mais fria, aproveite-se a crise para fazer o que é impensável por ser impopular. Não precisamos de ir muito longe para nos lembrarmos de como a aterragem da troika na Portela foi sentida como a oportunidade de impor o que nenhum programa eleitoral suportaria, o que o primeiro-ministro pouco depois admitiu inocentemente ser o programa para “empobrecer Portugal”.
O dever da empresa é o lucro
Friedman, ao contrário de Emanuel, tinha uma agenda marcante e por isso é adorado pelos liberais: na “New York Times Magazine” (13 de setembro de 1970) publicara um panfleto afirmando que a responsabilidade social da empresa é somente o lucro dos acionistas, não tem obrigação perante a comunidade. O texto é um manifesto coerente. Friedman tinha sido o principal assessor económico do candidato republicano Goldwater, um Trump antes do tempo, e tinha proposto o fim da Segurança Social. A essa luz, a crise é mesmo uma oportunidade.
Algumas empresas tomam-no ainda hoje ao pé da letra. Michael Flor esteve internado com covid durante 42 dias num hospital de Issaquah, que lhe apresentou uma conta de 1,1 milhões de dólares. Neste caso, a Medicare paga. Mas Janet Mendez, em Nova Iorque, tem uma fatura de 400 mil dólares e não sabe se o seguro cobre uma parte. Entretanto, a Gilead Sciences cobra 2100 euros pelo tratamento com Remdesivir, fixando o novo preço depois de o medicamento ter sido autorizado para alguns casos graves de covid. Para atalhar razões, anunciou que é um preço fixo para todos os países, os pobres que não se queixem. E aqui está como uma empresa que faz da crise a oportunidade não responde a obrigações sociais, mas aos lucros dos acionistas.
Ora, o que vem é ainda mais duro: há já duas vacinas em teste em larga escala, entre as 135 em desenvolvimento e, se alguma resultar, vai produzir milhares de milhões de doses, cobrando o melhor preço. Assim será se lhe for autorizada a patente, mesmo que o custo da investigação tenha sido suportado por dinheiro público (a Comissão Europeia já lançou 7,4 mil milhões de euros nestes projetos). Não há muito tempo, não foi assim: na década de 90, Mandela enfrentou as grandes farmacêuticas violando as patentes e replicando os medicamentos antissida, dado que a África do Sul não conseguia pagar os preços exorbitantes. Salvou vidas (e impôs o recuo da Casa Branca e das farmacêuticas). Precisamos de saber salvar vidas de novo contra a bela oportunidade do mercado.
Artigo publicado no jornal “Expresso” a 4 de julho de 2020. Reproduzido do Esquerda.net.