Michael Löwy, professor emérito da Escola de Altos Estudos de Paris, criou, nos anos 1970, a ideia de ecossocialismo, uma forma de esquerda que se opõe, por exemplo, à ideia do progresso clássico. Defende que a humanidade deveria pensar mais na igualdade e em uma distribuição equitativa do que na geração de mais riqueza. Considera que os populismos do continente não foram a fundo em mudanças que devem considerar, de todos os modos, a questão ambiental e a mudança climática. É preciso aprender a viver melhor, com menos, inspirando-se em jovens como Greta Thunberg.
Jorge Fontevecchia entrevista Michael Lowy, Perfil / IHU-Unisinos, 26 de fevereiro de 2021. A tradução é do Cepat.
A esquerda clássica teve uma visão cética em relação à ecologia, que historicamente nasceu ligada a grupos religiosos dos países nórdicos. Como se dá o processo em que a esquerda volta a assumi-la como eixo reivindicativo?
Boa parte da esquerda fez isso. Para além da esquerda, muita gente percebeu que a ecologia não é um tema entre muitos outros. É a questão política, social e humana central do século XXI. A ameaça ecológica, o que representa a mudança climática para o conjunto da humanidade, é algo sem precedentes. Incomparável com o ocorrido em milênios. É um tema que deve estar no centro das preocupações de quem se considera de esquerda. E de todos os seres humanos. É uma questão que já não pode ser marginalizada, nem ignorada, nem deve ser menosprezada. Os piores cegos são os que não querem vê-la.
Falou de “uma classe dirigente depredadora e gananciosa, que obstaculiza qualquer vontade de transformação efetiva. Quase todas as esferas do poder e de influência se submetem a um pseudorrealismo que considera que é impossível qualquer alternativa, que a única via imaginável é o crescimento”. É possível distribuir sem crescer?
A Oxfam, uma ONG internacional que não é marxista, simplesmente humanista, calculou que há 12 pessoas multimilionárias que têm propriedades equivalentes às da metade mais pobre da humanidade. A primeira coisa é distribuir essa riqueza. Essa desigualdade absurda, totalmente irracional para qualquer análise. Temos que começar distribuindo a riqueza existente. É o primeiro passo de um ponto de vista socialista.
Em seguida, é preciso efetivar outro modelo de crescimento, que não é o capitalista, o do produtivismo e do consumismo ilimitado. Temos que desenvolver tudo o que satisfaz as necessidades humanas elementares. Pensar em uma agricultura ecológica, na saúde e na educação. Considerar as necessidades fundamentais. Precisamos reduzir ou suprimir tudo o que é desnecessário, o irracional, no atual sistema produtivo. Para dar um exemplo, os submarinos nucleares, a publicidade, que é uma atividade que consome enormemente energia e matéria-prima. Há um montão de atividades que podemos suprimir.
Pode haver uma transformação que não seja uma modernização ou um progresso?
A modernização e o progresso, nas formas realmente existentes, que são as do capitalismo e do neoliberalismo, são um desastre do ponto de vista social, pela desigualdade absurda, pela destruição das comunidades. Também por razões ecológicas. Esse modelo de progresso, desenvolvimento, modernidade, crescimento, é insustentável. É preciso pensar outro modelo no qual possamos nos inspirar em valores éticos, sociais, inclusive cristãos ou da tradição marxista. Temos que traçar outro tipo de progresso. Outro tipo de sociedade que não seja essa da modernidade realmente existente, capitalista e neoliberal.
O Papa Francisco está dentro do coletivo da esquerda cristã?
A escola cristã é um movimento que surge na América Latina, primeiro no Brasil e depois em todo o continente, a partir dos anos 1960. Depois tomará a forma da teologia da libertação. É uma tentativa de articular o ensinamento cristão com algumas ideias fundamentais do marxismo. Bergoglio, o Papa Francisco, vem de outra tradição teológica. Sua formação se deu no que se chama de teologia do povo na Argentina, que é diferente da teologia da libertação. Não utiliza conceitos marxistas, não fala de capitalismo e socialismo, não fala de luta de classes. Mas fala do povo e da religiosidade do povo, etc.
E aí temos Juan Carlos Scannone e vários teólogos argentinos muito importantes que formularam esta teologia do povo. Vem desta tradição, mas ao assumir o pontificado começa a desenvolver uma reflexão mais profunda, mais radical que a tradicional da teologia do povo. A teologia do povo dá mais importância aos temas culturais e à questão da religiosidade popular que ao socioeconômico.
O Papa Francisco, por exemplo, em uma de suas mais importantes encíclicas, Laudato Si’, confere um peso muito grande às questões socioeconômicas e ecológicas. Laudato Si’ é muito importante do ponto de vista ecológico. Não é marxista, não fala de socialismo, não fala de capitalismo, não é ecossocialista, mas é uma contribuição muito importante para uma crítica ao sistema econômico e social. Diz que é responsável pela pobreza, a miséria e a destruição econômica. Nós, marxistas, dizemos que esse sistema é o capitalismo, mas o Papa Francisco faz uma formulação antissistêmica do ponto de vista humano, ético, social e ecológico. Não tem tanta importância se é uma esquerda ou não.
O Papa Francisco formula uma crítica ao sistema, ao capitalismo?
De fato, sim. É minha interpretação. Fala do sistema econômico e social atual, baseado na maximização do lucro, em um sistema perverso de propriedade. Isso é o capitalismo. Mas o Papa utiliza outros termos, outras categorias de análise.
Geralmente, costuma-se criticar o populismo, mesmo o populismo de esquerda, como extrativista. Não tem a sustentabilidade no centro de sua agenda. Como é a sua análise das diferentes experiências populistas de esquerda?
Esses governos de esquerda ou de centro-esquerda, ou populistas de esquerda, têm aspectos positivos em tocar na distribuição de riqueza. E favoreceram as camadas mais pobres da população. A isso se somam alguns aspectos positivos mais avançados, em alguns países como a Bolívia e Venezuela. Mas não romperam com o liberalismo, ao contrário, são uma variante mais social das políticas neoliberais. Constitui-se um social-liberalismo.
Em muitos países, essa política de distribuição de riqueza está baseada na extração de matéria-prima de minerais e em particular das energias fósseis, como o carvão, o gás e o petróleo. É um problema para o país que depende exclusivamente dessas matérias-primas. É uma forma de dependência. A teoria da dependência estudou a questão em profundidade.
O outro aspecto é que contribui para a catástrofe ecológica, o aquecimento global. É verdade também que é difícil para um país como a Venezuela decidir, de um dia para o outro, que não extrairá mais petróleo. Se fecha e joga a chave, a economia cai e o país é destruído. Seria necessário tomar algumas medidas mínimas para tentar sair desse beco sem saída.
No Equador, houve uma proposta interessante de Rafael Correa, do movimento ecológico, primeiro dos indígenas, sobre o Parque Yasuní. Em uma região amazônica do Equador, uma mata muito rica em biodiversidade onde viviam muitas comunidades indígenas, havia petróleo sob o sol. Então, decidiu-se que esse petróleo fosse deixado debaixo do solo, exigindo dos países ricos do Norte que subsidiassem o Equador com a metade do valor desse petróleo.
É uma proposta interessante. Contudo, depois de alguns anos, dado que a maioria dos países do Norte não se interessava pela proposta, Rafael Correa a abandonou e começou a entregar o Parque Yasuní às companhias de petróleo multinacionais. Foi muito negativo. É um tipo de medida que deveria ser tomada não só no Equador, mas na Venezuela, na Bolívia, no Brasil. Pedir uma indenização pelo uso do petróleo.
Não acaba sendo também uma dependência dos países ricos?
De alguma forma, sim.
Mas mais ecológica.
Com esse dinheiro, os países poderiam desenvolver outras atividades. Desenvolver a agricultura biológica e a soberania alimentar. Para a Venezuela, importa a comida. Não tem soberania alimentar. Se tivesse este subsídio dos países do Norte, poderia desenvolver sua agricultura ecológica. Seria um grande passo para a sua independência econômica.
Qual é a sua visão sobre a teoria da dependência? Você estudou com Fernando Henrique Cardoso e depois traçaram caminhos divergentes.
A teoria da dependência surge nos anos 1960. Vários brasileiros tiveram um papel importante em seu desenvolvimento. Fernando Henrique Cardoso, Ruy Mauro Marini, André Gunder Frank, que não era brasileiro, mas vivia no Brasil naquela época. Também Theotônio dos Santos. Todos desenvolveram uma concepção que demonstra a natureza do capitalismo nos países da América Latina. Como funcionava o capitalismo dependente sob a hegemonia do capital do Norte. E também como o desenvolvimento não consegue mudar isto. O desenvolvimento industrial é controlado pelo capital multinacional. A maioria deles apontavam que a única alternativa a essa dependência, a essa dominação do capital multinacional, era uma alternativa socialista.
Conheci Fernando Henrique como um professor na Universidade de São Paulo. Em certo momento, ele tomou a iniciativa, com alguns colegas e alunos, de criar um grupo de estudo de O Capital, de Karl Marx. Algo fora da academia. Eram realizadas reuniões em sua casa, na casa de outros colegas. Participei durante dois ou três anos da experiência. Todo domingo líamos um capítulo de O Capital. Cardoso, a partir de certo momento, se distanciou do marxismo, do socialismo. Quando chega à presidência do Brasil, já assumiu uma orientação totalmente neoliberal. Assumiu o capitalismo dependente brasileiro que havia criticado durante vinte ou trinta anos. Aí nossos caminhos se separaram.
Cabe a Fernando Henrique assumir, nos anos 1990, quando poderíamos dizer, após a queda do Muro de Berlim, o neoliberalismo estava em seu auge. O Partido Trabalhista inglês fez um processo semelhante, que o levou à Terceira Via. É possível dizer que essa tendência, que nos anos 1990 chegou ao seu auge, hoje, na segunda década do século XXI, após a crise das hipotecas de 2008/2009 e a pandemia de coronavírus, está com a sua certidão de óbito?
A maioria dos governos do mundo segue aplicando a velha receita neoliberal, com nuances. Há pouquíssimas exceções. Algumas delas estão na América Latina. Não podemos dizer que “o neoliberalismo acabou”. O que, sim, existe é a crítica, a rejeição, o desejo de romper com o neoliberalismo. Isso, sim, é muito forte. Cresceu muito e assume diferentes formas em cada país. Isso é novo. Mas a realidade é que continua sendo hegemônico porque é a forma do capitalismo adaptada aos interesses da classe dominante. Não serão abandonados de modo tão simples, apesar da crise da pandemia, de todos os problemas. Continuam sendo as regras do jogo.
Definiu certas experiências latino-americanas como um tipo de governo: “Do tipo centro-esquerda, que eu chamaria de corte social-liberal e que não rompe com o neoliberalismo, ainda que, é claro, lhe dá um caráter social. Aí temos o Brasil, o Uruguai e a Argentina. Este modelo é herdeiro do velho desenvolvimentismo”. O PT também se comportou de modo neoliberal e não foi reformista?
Certamente, foi reformista. Fez algumas reformas sociais que são significativas. O social-liberalismo não é a mesma coisa que o neoliberalismo típico. Há diferenças, por isso dizemos social-liberalismo. Há uma série de medidas sociais que são importantes, mas não mudam o modelo, nem as estruturas, nem o sistema. Há uma orientação social, mas dentro do sistema.
Um exemplo é o caso da agricultura no Brasil. Há anos que se fala da necessidade de uma reforma agrária no Brasil. Mas os sucessivos governos do PT não a fizeram. Fizeram algumas concessões ao movimento camponês, mas o fundamental é que segue o monopólio da terra nas mãos de uma minoria. A maioria dos camponeses segue sem terra.
Agora, sim, algo mudou inclusive na distribuição do orçamento. O orçamento da agricultura no Brasil, durante o governo do Partido dos Trabalhadores, era de 90% para o agronegócio capitalista e 10% para a agricultura camponesa. Esses 10% são pouco, mas para as pessoas das cooperativas era algo importante. Essa é a fórmula, matemática se preferir, do social-liberalismo: 90% para o grande capital e 10% de ajuda aos trabalhadores. Esses 10% faz uma diferença importante, mas não muda o essencial do futuro, e isso se aplica a outros campos.
Sobre o PT, você escreveu que “a principal força da esquerda no Brasil, o Partido dos Trabalhadores, não conseguiu uma conscientização efetiva das classes populares. Além disso, contagiou-se com a tradicional corrupção dos partidos políticos”. É possível dizer que a corrupção é uma forma de contaminação também?
A corrupção, sobretudo na América Latina, faz parte do jogo político burguês. Todo político burguês aproveita que tem os elementos do poder político para se enriquecer e distribuir privilégios a seus amigos. É tradição da política das elites dominantes, em particular na América Latina. O PT vinha de uma tradição popular, operária, camponesa, de resistência, de luta. Fui membro desse partido durante muitos anos. Tinha uma ética, tinha um projeto radical, transformação social, um programa socialista. O programa era socialista, não era reformista. Era anticapitalista. Não aconteceu isso. E se somou o dano da corrupção.
Houve uma campanha no Brasil como se os únicos corruptos fossem os do Partido dos Trabalhadores. Isso é injusto. Os mais corruptos são os dos partidos de centro, de direita. Mas houve contaminação. Houve figuras e personalidades do Partido dos Trabalhadores que participaram da corrupção.
Na Argentina, é conhecido o Teorema de Baglini. Partidos ou pessoas que começam com uma posição mais radical vão para o centro, na medida em que chegam ao poder?
Isso aconteceu com muita frequência, sem dúvidas, mas não com todos. Um exemplo do contrário na América Latina é Hugo Chávez. Chegou com um programa muito moderado, com um pouco de desenvolvimento nacional e de redistribuição. Depois, foi se radicalizando. O programa foi aprofundado e passou a falar de socialismo. Não houve uma revolução socialista, mas delineava a necessidade do socialismo como um horizonte. Tudo aconteceu com certos limites, mas houve um processo inverso. Não há uma lei universal.
É possível dizer o mesmo de Fidel Castro.
Está correto. Tem toda a razão. Fidel Castro chega ao poder com um programa democrático, patriótico, talvez anti-imperialista. Mas houve um processo de radicalização, na medida em que enfrentou o imperialismo, com a oligarquia cubana, com o capital. Fez uma ruptura.
Na Argentina, aconteceu o mesmo, ainda que de maneira mais moderada, com o kirchnerismo? Néstor Kirchner, em seu primeiro mandato, era mais de centro e Cristina Kirchner, em seus dois mandatos, foi mais radical. O elemento em comum é que se radicalizam em resposta à rejeição que suas reformas produzem.
Não conheço suficientemente o processo argentino para dar uma opinião. Sua hipótese é muito razoável. Mas claro, com limites. A experiência argentina com os Kirchner nunca foi tão longe como foi o processo bolivariano de Hugo Chávez. Houve um aprofundamento. Ainda que, repito, me falte informação.
Como analisa a gestão de Rafael Correa, especialmente diante do processo eleitoral que haverá no Equador, no mês de abril, com o segundo turno?
Correa representa uma posição intermediária, um pouco mais radical do que Lula e um pouco menos radical do que aconteceu na Venezuela. Tomou medidas importantes, por exemplo, não pagar a dívida externa em certo momento. O problema com Correa não é tanto se suas medidas foram mais ou menos radicais. É que a partir de certo momento enfrentou violentamente os movimentos sociais. Teve uma atitude muito autoritária de repressão ao movimento indígena. Isso foi muito negativo.
Isso pode fazer com que, agora, os movimentos indígenas se unam a um banqueiro, Guillermo Lasso, para derrotar o candidato Andrés Arauz?
Houve um certo incitamento do candidato indígena. Parecia que ia apoiar o representante da oligarquia de direita, mas, por fim, parece que não. O mais provável é que ele e seu partido tomem uma atitude de abstenção no segundo turno. O que não sabemos é o que farão suas bases. Suponho que a maioria, sim, votará em Arauz, apesar de todos os problemas que houve, que foram muito graves.
Como analisa a gestão de Evo Morales?
Vejo a experiência de Evo Morales como uma das mais radicais de esquerda, com todos os seus limites. Não funciona tanto o ecológico, porque afinal é uma economia baseada na exportação do gás, energia fóssil com consequências ecológicas muito negativas. Foi uma experiência avançada em vários campos da redistribuição social, do enfrentamento à oligarquia e o imperialismo americano.
Colocaria a Bolívia no mesmo campo que a Venezuela, como algumas das experiências mais avançadas de governos progressistas, mas sempre dentro de certos limites, sem romper com as estruturas existentes, sem realizar a transformação ecológica radical. Não por acaso, agora, o mesmo Movimento ao Socialismo de Evo Morales volta a vencer as eleições na Bolívia.
No Brasil, houve uma experiência com Marina Silva, onde uma candidata ambientalista esteve a ponto de passar para o segundo turno. Essa experiência se extinguiu e hoje estamos no oposto, com Bolsonaro, um presidente de marcada tendência direitista. O que aconteceu no Brasil?
Tenho muito respeito por Marina Silva. Efetivamente, tem uma sensibilidade ecológica importante. Faz parte das poucas lideranças políticas que levantaram a questão ecológica. Mas fez isso dentro dos limites da economia de mercado, de um capitalismo verde. Um capitalismo verde é melhor que um negro ou marrom, ainda que não resolva o problema. Nós, como ecossocialistas, estamos convencidos de que para enfrentar o desafio ecológico, precisamos romper com o capitalismo, necessitamos de uma política diferente. Romper com esse sistema econômico perverso, como disse Francisco.
Não pode existir ‘ecoliberalismo’. Pode haver social-liberalismo, mas, caso receba o prefixo ‘eco’, precisa romper com o liberalismo.
Existe um ecoliberalismo, inclusive dos partidos verdes, em vários países da Europa. Mas não mudam as coisas fundamentais.
O ‘ecoliberalismo’ é um paradoxo? Encerra uma contradição em si mesmo?
É uma contradição porque o liberalismo, sistema capitalista, é necessariamente expansionista. É necessariamente destruidor do meio ambiente. É o que demonstra um século e meio da história do capitalismo industrial. É uma ilusão essa ecologia liberal, essa ecologia do capitalismo verde. Marina Silva foi um pouco nessa direção.
Como analisa, no caso do Brasil, o papel dos pentecostais neste avanço da ultradireita? Qual é a relação desses movimentos com as direitas, o socialismo e a ecologia?
São em sua grande maioria igrejas que funcionam como empresas capitalistas. Têm toda uma teologia da prosperidade: quem ganha muito dinheiro é porque Deus o escolheu. É uma teologia que corresponde ao neoliberalismo. Tem aspectos muito reacionários contra o feminismo e os direitos das minorais sexuais, contra o aborto. Acarreta uma forma de pensar profundamente reacionária. Durante muito tempo, estas igrejas não faziam política ou se adaptavam aos governos, inclusive ao do PT, durante anos. Não se opunham a Lula, não buscavam um papel político.
Nos últimos anos, envolveram-se na política, elegendo deputados, governadores, apoiando Jair Bolsonaro, que em minha opinião é um neofascista. É uma forma nova de fascismo, que não é o velho fascismo dos anos 1930, mas é uma forma de fascismo. É um governo nitidamente ecocida. Um governo que rejeita qualquer enfoque ambiental. Sua disposição é o agronegócio da soja, o do gado. Destruir a natureza, e em particular a Amazônia. Este governo é uma catástrofe para o povo brasileiro, para os camponeses, para os trabalhadores, para os indígenas e para toda a humanidade. Destruir a Amazônia é um crime para toda a humanidade.
O que aconteceu no Brasil? Há um ódio anti-PT? Qual é o fenômeno que faz com que surja Jair Bolsonaro?
Francamente, não tenho uma explicação satisfatória. Há algumas hipóteses, mas também é um mistério. Um papel negativo foi o das igrejas neopentecostais. Houve uma decepção com o Partido dos Trabalhadores, que ficou muito limitado em suas políticas. Soma-se a corrupção do PT. Isso facilitou uma campanha midiática de toda a televisão, como se o PT fosse o único promotor da corrupção.
Sérgio Moro fez toda a campanha contra Lula. Focou no PT de Lula a imagem da corrupção, como se os políticos da oligarquia não fossem muito mais corruptos. Houve vários fatores que levaram a essa catástrofe. Mas a análise total é um pouco inexplicável. Como explicar o êxito de Benito Mussolini, o êxito de Adolf Hitler, na Alemanha [?]. Era um país civilizado, culto, e no qual a esquerda tinha uma grande tradição. São coisas um pouco difíceis de entender.
Quanto há de política, participação, militância, e quanto há de uma postura ética individual que transcende as ideologias no cuidado com o meio ambiente? Ser vegetariano é uma posição ecológica positiva para o cuidado com o meio ambiente?
Tenho muito respeito aos vegetarianos. O consumo de carne é um dos fatores mais negativos do ponto de vista ecológico. O gado produz emissões de metano, muito perigosas em relação à mudança climática. A expansão do gado é um dos fatores que levam à destruição das matas. O consumo sistemático de carne é muito ruim para a saúde humana. Se todos nós não podemos nos tornar vegetarianos, eu pessoalmente não sou, ao menos precisamos reduzir nosso consumo de carne de maneira muito drástica. E sinto muito em dizer isso para a Argentina. O consumo de carne é uma tradição nacional, mas é um problema planetário.
Respeito as pessoas que tomam iniciativas individuais com significado ecológico, mas não resolvem o problema. Não são suficientes posições individuais. Temos que mudar as estruturas. Temos que gerar um movimento de transformação radical, social, econômica, política e ecológica das grandes massas. Precisamos de um processo de transformação radical e revolucionário. É a única forma de romper uma lógica.
Marx foi um visionário em relação ao problema ecológico?
Há em Karl Marx elementos que apontam nessa direção. Em sua obra O Capital há uma crítica à agricultura capitalista, que destruía o meio ambiente, a natureza e a fertilidade da terra. Tanto Karl Marx como Friedrich Engels tinham intuições ecológicas importantes. Mas era um tema marginal em sua obra.
Em O Capital não há um capítulo sobre ecologia porque em sua época a crise ecológica estava recém-começando. Não como agora, que é uma ameaça vital para a própria existência da humanidade. Os ecossocialistas não se limitam a reinterpretar Marx, fazem novas abordagens partindo do marxismo, do socialismo, mas em função da realidade do século XXI. É um tema central para a humanidade.
Em seu livro ‘O ethos barroco’, escreveu: “A tradição católica, se preferir, mantém uma contradição permanente como a civilização capitalista moderna”. Isto já foi intuído por Max Weber, ainda que não ampliou a questão com aquela ideia de que os países católicos seriam os últimos a se desenvolver: primeiro os protestantes e depois os confucionistas. Há no medieval uma espécie de aversão ou antipatia entre a ética católica e o espírito capitalista. Aquela ideia, por exemplo, de não poder cobrar juros... Como enxerga a evolução da Igreja Católica? Os Estados Unidos têm um presidente católico.
Max Weber tem uma hipótese que é muito interessante, a da hostilidade entre a ética católica e o espírito do capitalismo, diferente do caso da ética protestante. Durante séculos, isso assumiu um ponto de vista reacionário. A Igreja Católica criticava a modernidade liberal ou capitalista de um ponto de vista regressivo, defendendo a aristocracia, os dogmas clericais, a monarquia absoluta.
A partir de fins do século XIX, inícios do século XX, começa a surgir uma vertente de esquerda nessa crítica católica ao capitalismo, que se desenvolverá primeiro em alguns países da Europa, em particular na França, nos anos 1930, 1940 e 1950, e chega na América Latina a partir dos anos 1960, onde nasce o cristianismo da libertação e depois a teologia da libertação, uma convergência com o marxismo.
Com isto, sim, será desenvolvido um anticapitalismo de origem católica, com uma característica socialista. Durante anos, esse acúmulo de ideias foi hostilizado pelo Vaticano, em particular com João Paulo II e Bento XVI. Wojtyla e Ratzinger eram totalmente hostis à teologia da libertação.
Com o Papa Francisco, abre-se um novo capítulo. O Papa Francisco não é formado no marco da teologia da libertação, mas não é hostil. Convidou Gustavo Gutiérrez, fundador da teologia da libertação, a Roma, teve uma interação com ele. Na Laudato Si’, a crítica ao sistema econômico perverso dominante, baseado na maximização do lucro, é bastante radical.
Na Argentina, costuma-se diferenciar os ‘Padres em Opção pelos Pobres’, que estão mais ligados ao peronismo, da teologia da libertação, próxima à Igreja tradicional. No Brasil, existe algum movimento análogo?
O que houve no Brasil foi o desenvolvimento das comunidades eclesiais de base, apoiadas por setores importantes da Igreja. Iam viver em bairros populares, operários. Eram membros das ordens religiosas: dominicanos, jesuítas, franciscanos, etc., e também mulheres das ordens religiosas femininas. Muitas freiras fizeram esse trabalho de ir viver nos bairros dos pobres, nas favelas, buscando organizar as pessoas em comunidades de paz.
Na Argentina, um pouco em tom de brincadeira, fala-se de um Papa peronista. O peronismo estaria no que você chama de social-liberalismo? Na Argentina, a ideia de liberalismo e a de peronismo parecem opostas, parecem outro paradoxo.
Não explicarei o que é o peronismo na Argentina. Perdão. Pelo contrário, vou aprender com vocês. Que vocês me expliquem o que é.
Nem nós sabemos.
Há uma diferença muito grande entre o peronismo clássico do próprio Peron, sem falar de Isabel, e o dos Kirchner. É uma variante muito mais de esquerda, mais democrática. O Papa, sim, pode dizer que entre a teologia do povo e o peronismo há muitas afinidades. A cultura política de Bergoglio, em certa medida, tem a ver com o peronismo. Mas Bergoglio, quando se torna Papa, já pensa em outros termos.
Torna-se kirchnerista?
Deixa de agir em termos peronistas da Argentina. Pensa de maneira global. Seu pensamento toma outra direção, outro enfoque, para além do que também poderia ser sua tradição política na Argentina.
Enxerga algum paralelo entre a evolução dentro do peronismo do kirchnerismo e a evolução no Papa Francisco, quando passa de Bergoglio a Francisco, entre a teologia do povo e a Laudato Si’? Há uma guinada esquerdista?
Não se pode comparar um político argentino com o que acontece com o pontifex maximus da Igreja. É outro universo. A partir do momento em que assume o pontificado, passa a pensar de uma maneira que ultrapassa os limites de sua prática e de sua formação na Argentina. Não tenho a explicação do porquê. Meus amigos católicos dizem que explicam isso pela intervenção do Espírito Santo. Como sociólogo marxista, tenho que buscar alguma outra explicação.
Poderíamos dizer que no kirchnerismo, como em outra dimensão totalmente incomparável com Bergoglio, a direção, no momento em que tem a responsabilidade, em vez de ser para o conservador é para o oposto?
Não posso fazer uma análise do kirchnerismo. Falta-me competência para isso. O que você diz me parece razoável. No caso do Papa é outro assunto. Não se pode analisar o discurso do Papa em termos de política, seja argentina ou outra. É outro universo em que entra o fator religioso, o caráter universal da Igreja Católica. O Papa João XXIII, eleito como um papa de transição para não mudar nada e garantir a tradição, foi quem iniciou a transformação da Igreja com o Concílio Vaticano II. Tomou uma série de iniciativas. Não se esperava isso. Não foi eleito para isso. A imagem que se tinha dele como cardeal não era essa.
É possível ser de esquerda, representar a esquerda cristã, e não acreditar em Deus?
As pessoas que participam dos coletivos cristãos, as comunidades de base, os grupos de teólogos, são crentes. Eles acreditam em Deus, em Jesus Cristo, etc., etc. E eu respeito sua crença. Não a compartilho. Não sou cristão, sou judeu de origem, sou marxista e não sou crente, mas tenho o maior respeito por suas abordagens sociais, éticas, sua espiritualidade. Então, partilho muito com eles, tenho inclusive amigos muito íntimos que são teólogos da libertação. Compartilhamos muitas coisas, inclusive a preocupação ecológica, aprendi muito com eles, mas não sou crente. Não sou um cristão de esquerda. Sou alguém que tem muita simpatia e muita afinidade com os cristãos.
Você escreveu e resgatou a figura de Walter Benjamin e José Carlos Mariátegui como dois pensadores que transcenderam a visão progressista dentro da esquerda, e minha pergunta é como seria uma esquerda não progressista. Seria uma esquerda anti-hegeliana, nesse sentido?
Benjamin e Mariátegui não abordaram exatamente o mesmo, mas coincidem com uma ruptura com as ilusões burguesas do progresso. A ideia de que a história é um processo irreversível de progresso técnico, científico, econômico, humano, e que o desenvolvimento econômico, social e técnico nos levará ao mundo da felicidade ou da liberdade ou da emancipação humana ou o que quer que seja... Essa ideologia do progresso inevitável, linear, é de origem burguesa, mas foi assumida por boa parte da esquerda.
Benjamin e Mariátegui buscaram romper com isso. Para eles, a condição para que a humanidade se emancipe não é um progresso, não é uma acumulação linear, nem algo inevitável, mas uma revolução que pode acontecer ou não. Rosa Luxemburgo já havia tido essa intuição quando dizia socialismo ou barbárie. O socialismo não é inevitável, não é o resultado inevitável do progresso humano. Existe um marxismo que rompe com essa ideia linear.
O fato de que Joe Biden seja católico pode mudar a ordem do neoliberalismo, em nível global?
A política americana não está determinada pelas encíclicas do Vaticano, infelizmente. São os interesses do capitalismo norte-americano, que tem em Joe Biden uma variante mais democrática, mais liberal, muito menos conservadora e reacionária, para não dizer fascista, que a de Donald Trump. A influência do Papa, da encíclica do Papa, pode existir em alguns aspectos. Talvez por exemplo na abolição da pena de morte. Parece que Joe Biden se comprometeu a propor a abolição da pena de morte nos Estados Unidos. Seria muito importante. São elementos parciais, mais de corte humanista.
Qual é a sua visão dos movimentos juvenis conduzidos por Greta Thunberg?
Tenho uma enorme admiração por Greta Thunberg. É uma pessoa extraordinária, uma figura que encarna toda a radicalidade espontânea da juventude. Percebe que os dominantes, homens maduros ou de idade avançada, estão conduzindo o planeta a uma catástrofe que é a mudança climática, da qual os próprios jovens serão as vítimas. Sua geração sofrerá as consequências dramáticas dessa política conduzida por esses governos a serviço do capitalismo.
Sua crítica é muito justificada, muito radical. É também uma crítica antissistema, me parece. Seus seguidores são a juventude de todas as classes sociais. O movimento não se desenvolveu em todos os países, mas, sim, em muitos. Essa juventude para mim é a grande esperança de que possamos mudar as coisas do futuro. São a vanguarda dessa exigência de uma mudança social e ecológica radical. Tenho muita esperança no que representa essa juventude, cuja porta-voz é Greta Thunberg.