É possível aprender com a história ou estamos condenados a repetir seus erros? Quando parte da esquerda idealiza ou justifica o estalinismo, ainda é possível rever e reivindicar a experiência da Revolução Russa sem considerar que seus erros eram inevitáveis ou seus dirigentes infalíveis. Como diz Michael Lowy, neste texto publicado em 1997, "a bandeira vermelha de Outubro de 1917" é uma "herança preciosa e insubstituível da tradição dos oprimidos". O século XXI pede uma esquerda ecossocialista, interseccional e internacionalista que lide com as complexidades do presente sem procurar resolvê-las eliminando a complexidade da teoria marxista.
Na foto de abertura, uma das famosas fakenews criadas pelo regime estalinista (elas não foram inventadas por Trump), reformando fotos do período revolucionário e suprimindo Leon Trotsky, então dirigente do Exército Vermelho
Michael Lowy, Em Tempo 298, novembro de 1997
Em suas Teses “Sobre o conceito de história” de 1940, Walter Benjamin insistia sobre a importância de salvar a tradição dos oprimidos das garras do conformismo que tenta se apossar dela.
Depois de 1989, o conformismo, beneficiando-se da morte do pretenso “socialismo real”, tentou se apossar de Outubro de 1917, fechar de uma vez por todas este capítulo e decretar o fim da história. A operação não foi bem sucedida, mas não foi por falta de esforços por parte dos ideólogos das classes dominantes, que decretaram, em uma bela e tocante unanimidade, a morte da revolução.
Outubro de 1917 pertence à tradição dos oprimidos e, enquanto uma voz, um punho ou um fuzil se levantarem em qualquer parte do mundo contra a ordem capitalista e a dominação desenfreada da lei do lucro, existirão bolcheviques. Outubro de 1917 mostrou que era possível a revolucionários, apoiados pelos trabalhadores das cidades e do campo derrubar os exploradores, tomar o poder e suprimir o capitalismo. O que foi uma vez quebrado não poderá jamais pretender a imortalidade, nem se apresentar como um destino eterno, uma lei da natureza, uma fatalidade inevitável. Ou melhor, o capitalismo não abandonará jamais tais pretensões, mas existirão sempre indivíduos, grupos ou classes inteiras que se inspiração no precedente de 1917. Deste ponto de vista, a época aberta pela Revolução de Outubro, longe de ter sido fechada, está apenas começando.
Afirmar assim, contra tudo e contra todos, sem concessões e sem lamúrias, a universalidade de Outubro e sua atualidade, nas vésperas do século XXI, não é de forma alguma contraditório com um ponto de vista crítico sobre a experiência histórica do bolchevismo. Três observações me parecem importantes:
1) Outubro de 1917 não é o único e exclusivo “modelo revolucionário”. Deve-se aprender com o conjunto das experiências revolucionárias do século XX, sem fetichizá-las ou mitificá-las: a Europa Central dos conselhos operários de 1919, a Espanha libertária de 1936, as revoluções sociais no Terceiro Mundo. A tradição dos oprimidos é rica e múltipla, e as lições das derrotas não são menos importantes do que as das vitórias.
2) O Estado soviético dos primeiros anos, sem ser ainda uma ditadura burocrática, estava muito longe de uma democracia dos trabalhadores. Apesar da persistência de alguns aspectos de pluralismo socialista, era em seu conjunto um poder autoritário, de inspiração “substitucionista”, como o jovem Trotsky o tinha previsto em Nossas tarefas políticas (1904). A advertência de Rosa Luxemburg em 1918 se mostrou perfeitamente justificada: sem democracia, sem eleições, sem liberdade ilimitada de expressão, os conselhos operários se esvaziam de toda substância, e dão lugar ao poder da burocracia. Antes de se tornar, a partir do Novo curso (1923), o principal representante da resistência anti-burocrática, Trotsky contribuiu não pouco para este descaminho autoritário: basta reler Terrorismo e comunismo (1920).
3) Estes erros e estes desvios sem dúvida prepararam o terreno para a usurpação burocrática. Os bolcheviques criaram um Golem, o aparelho, que terminou por escapar ao seu controle para se voltar contra eles e exterminá-los. Isso não significa, bem ao contrário, que se deva estabelecer um sinal de identidade entre o Estado revolucionário de 1917-1924 e o Estado contra-revolucionário da burocracia, entre os erros dos bolcheviques e os crimes dos estalinistas. Trotsky disse freqüentemente, e tinha razão: entre o bolchevismo e o estalinismo há uma fronteira traçada com sangue. O último não pode assegurar seu poder sem a liquidação física do primeiro.
O capítulo “estalinismo” está se fechando. Já era tempo. Isso cria a possibilidade – não para as próximas semanas, mas para o século XXI – de agrupar novamente gerações de revolucionários ao redor da bandeira vermelha de Outubro de 1917 – não como modelo único, mas como herança preciosa e insubstituível da tradição dos oprimidos. Isso não é uma certeza, mas uma possibilidade histórica, uma chance que nos é dada. A nós cabe apanhá-la.