Junho de 2023. Michael Lowÿ. Forúm 21.
Pensador vê no ecossocialismo a principal tarefa revolucionária da nossa era. Há uma dimensão democrática. Frear o “trem suicida” que conduz planeta ao colapso exigirá devolver às maiorias o poder de decisão sequestrado pelos “mercados”.
No último dia 3 de junho, o Fórum 21 e parceiros, como o Fórum Permanente da Intelectualidade Orgânica, promoveram um encontro com o intelectual marxista Michael Löwy, diretor do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS em francês) e um dos grandes estudiosos do pensamento revolucionário de esquerda, com obras sobre Karl Marx, Leon Trotski, Rosa Luxemburgo, György Lukács, Lucien Goldmann e Walter Benjamin; além de movimentos transgressores como o surrealismo e o romantismo.
Desde 2013, inicialmente ao lado do filósofo marxista Leandro Konder (falecido em 2014), Löwy passou a coordenar a coleção Marxismo e literatura da editora Boitempo, de imensurável contribuição para a formação política dos leitores brasileiros e latino-americanos. Sua militância “faz dele um elo de fundamental importância entre inúmeros grupos políticos de esquerda dos dois lados do Atlântico” e “sua personalidade aberta, tolerante e avessa às frequentes rupturas entre marxistas faz com que atue nos mais diversos fóruns de debate pela coesão e pela construção do socialismo” (p.11), aponta Ivana Jinkings e João Alexandre Peschanski em As utopias de Michael Löwy (Boitempo, 2007).
Com essa bagagem de décadas de militância e de produção teórica, Löwy vem defendendo o Ecossocialismo, “um projeto civilizatório ancorado na democracia social e econômica, e no respeito à Natureza”, que agrega o que há “de melhor no socialismo e na ecologia”, explica. Em O que é o Ecossocialismo? (Cortez Editora, 2012), ele traz os fundamentos dessa concepção de mundo, ampliando e atualizando os conceitos abordados em Ecologia e Socialismo, publicado pela mesma editora em 2004.
Nessa palestra, ele explica o ecossocialismo e aponta como as lutas ecológicas e socialistas compartilham da mesma base antissistêmica, fundamental para o enfrentamento das mudanças climáticas e, em última instância, para a sobrevivência da humanidade no planeta. Afinal, por mais que os bilionários lancem foguetes para escapar do inferno ambiental que estão produzindo, a verdade é que “não existe Planeta B”.
Partindo da célebre frase de Gramsci, de que é preciso manter “o pessimismo da razão” e “o otimismo da vontade”, Löwy dividiu sua palestra em duas partes: na primeira, ele traz um diagnóstico sintético das catástrofes ambientais e políticas em marcha; na segunda, os caminhos (ainda) possíveis.
O pessimismo da razão
A situação da humanidade é grave. A crise ecológica e a mudança climática representam uma ameaça sem precedentes na história humana e diante disso, aponta Löwy, “a questão ambiental já é e será ainda mais a principal questão política, econômica, social e ética do século XXI”.
Nunca vivemos algo parecido em termos ambientais e de ameaça civilizatória. Pela primeira vez e num futuro não muito distante, a humanidade poderá chegar ao extremo de acabar com a água potável do planeta. Ao mesmo tempo, o nível do mar, devido ao derretimento das calotas polares da Groenlândia e da Antártica, poderá se elevar mudando completamente a paisagem que hoje conhecemos. “Bastam alguns metros, para que cidades como Rio de Janeiro, Recife, Amsterdã, Veneza, Londres, Nova York, Xangai, etc. fiquem debaixo d´água”.
Ante esse cenário trágico, soam cada vez mais “absurdas as discussões dos meios bancários, do sistema econômico e financeiro sobre quantos por cento do PIB serão perdidos para evitar as catástrofes ecológicas. Como você calcula o custo dessas cidades? Das vidas humanas?”, questiona Löwy e, sobretudo, “quem é responsável por essa situação, sem precedentes?”
Os cientistas usam o termo antropoceno para descrever atual era geológica, iniciada a partir dos anos 1940. “Uma era geológica em que o antropos (o ser humano) está mudando alguns dos parâmetros fundamentais do planeta, como o clima”. Embora “cientificamente correto” – realmente é a ação humana (antropos) que está provocando a crise – Löwy destaca que antropoceno é um termo “um pouco curto” porque a humanidade existe “há centenas de milhares de anos” sem crise ecológica.
A crise começa com a Revolução Industrial no século XVIII, agravando-se “muitíssimo depois da II Guerra Mundial, a partir de 1945”. A responsabilidade não é “da ação humana, em geral”, mas de “um modo particular de produção e de ação humana: o modo de produção capitalista industrial moderno”. Em sua avaliação a compreensão “de que o responsável pela crise ecológica e pelas mudanças climáticas é a civilização capitalista moderna, o sistema capitalista, vem sendo bastante aceita, e para além dos circuitos marxista e ecossocialista”.
Löwy cita os exemplos da encíclica Laudato Si´ do Papa Francisco, Sobre o Cuidado da Casa Comum, de 2015, que responsabiliza “o atual sistema [capitalista] globalizado, baseado em formas perversas de propriedade com o único critério de maximização do lucro” pela crise ecológica e pela desigualdade social. Destaca também a mobilização das juventudes pelo mundo afora e o impacto da ativista ambiental sueca Greta Thunberg, que afirma ser “matematicamente impossível resolver a crise ecológica nos quadros do atual sistema econômico”.
Posturas antissistêmicas que se confrontam com a “atitude totalmente ecocida” de figuras como Donald Trump e Jair Bolsonaro, que negam as mudanças climáticas, defendendo os interesses do que Lowy denomina de “oligarquia fóssil”, uma poderosa parcela da classe dominante ligada aos interesses do carvão, do petróleo e o do gás. “Um enorme conglomerado, poderosíssimo, o coração das classes dominantes no capitalismo. Essa oligarquia fóssil não quer ouvir falar em abandonar as energias fosseis obviamente porque seu poder econômico depende dessas fontes”, afirma.
Felizmente, “a maior parte dos governos e países reconhece que o problema existe e que ele é sério”. No entanto, combatê-lo demanda ações antissistêmicas porque “o sistema capitalista não pode existir sem acumulação do capital, do lucro, da mercadoria, do mercado. Não pode existir sem expansão e sem crescimento. Isso faz parte de sua natureza e desde o século XVIII, essa expansão e acumulação é baseada nas energias fósseis”, detalha.
Daí a dificuldade de conter a emissões de gases estufa, de combater o horizonte de catástrofes e de superar a fase retórica. Basta observar a sucessão de COPs (Conferências das Partes) das Nações Unidas, e a imensa dificuldade de se emplacar medidas que “limitem drasticamente, nos próximos anos e não daqui a 50 anos, a utilização e extração das energias fósseis. Esse fracasso dramático e preocupante das reuniões internacionais é o sinal de que o sistema não está disposto a enfrentar seriamente o problema”, avalia.
Otimismo da Vontade
Frente o trágico diagnóstico, Löwy apresenta, na segunda parte de sua exposição, o ecossocialismo,“uma síntese dialética entre o melhor do socialismo e o melhor da ecologia”, como a mais consequente das alternativas antissistêmicas e anticapitalistas. Em sua avaliação, “um socialismo que não seja ecológico, ou uma ecologia que não seja socialista, não terão condições de enfrentar o desafio da crise ambiental”. Neste sentido, o ecossocialismo é também “uma crítica ao socialismo produtivista que predominou no século passado e à ecologia de mercado”.
Por outro lado, a questão ambiental é marginal na obra de Marx e Engels, afinal, “no século XIX, a destruição não tinha esse caráter dramático que tem no século XX”. Mesmo assim, aponta, ela aparece na “correta intuição” de ambos sobre a destruição dos equilíbrios ecológicos pelo capitalismo. Apoiado, portanto, na crítica marxista do capitalismo, do fetiche da mercadoria, etc., o ecossocialismo confere centralidade à questão ecológica.
A questão ambiental não é “mais um capítulo do programa”. Ela passa a ser compreendida como “um fio condutor de toda concepção do socialismo do século XXI, que precisa ter como um de seus vetores principais o reestabelecimento da harmonia entre a sociedade humana e a natureza ou Mãe Terra’.
Troncos de árvores e água do mar barrenta na praia de Boiçucanga, em São Sebastião (SP) após enchentes e deslizamentos no litoral norte de São Paulo, em fevereiro de 20023. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
Segundo Löwy, o ecossocialismo rompe com a concepção que muitos marxistas tem do socialismo como “uma transformação das relações de produção”, que passariam da propriedade privada à propriedade coletiva, visando o livre desenvolvimento das forças produtivas. “Essa ideia de socialismo nós temos que abandonar, porque os problemas não são apenas as relações capitalistas de produção, mas o aparato produtivo capitalista, responsável pela crise ecológica e pelas mudanças climáticas”, alerta.
Após a Comuna de Paris (8 de março a 28 de maio de 1871), lembra Löwy, Marx escreveu sobre a breve tomada de poder pela população, apontando que “os trabalhadores não podem se apropriar do aparelho de Estado capitalista burguês, eles precisam quebrá-lo e criar outra forma de poder político, democrática e revolucionária”. O mesmo se aplica hoje para os ecossocialistas. É preciso “transformar radicalmente o aparelho produtivo do Estado, a começar pela transformação de suas fontes de energia”, e repensar o que vem sendo produzido por esse sistema, em busca de uma “profunda ruptura com o consumismo e o produtivismo”, salienta.
O ecossocialismo é “uma proposta muito ambiciosa de mudança de paradigma dos fundamentos da civilização capitalista industrial moderna”. Ele propõe “uma nova civilização, orientada por novos valores e critérios sociais, éticos, políticos, econômicos, ecológicos”. Um “projeto de transformação das estruturas do poder político, do poder econômico, do modo de produção e de suas relações”. É, portanto, uma proposta revolucionária e como tal implica o enfrentamento dos interesses das classes dominantes. Afinal, como afirmava Benjamin, “o capitalismo nunca vai morrer de morte natural”. Não irá desmoronar vítima de suas “contradições internas” como esperavam os socialistas, anarquistas e comunistas de outrora.
“O capitalismo só irá desaparecer se houver vontade política e social da grande maioria da população”. Se para Marx as revoluções são a locomotiva da história; para Benjamin elas são o puxar do freio de emergência pela população. “Nós somos passageiros de um trem suicida. Esse trem se chama civilização capitalista moderna. Ele está indo numa velocidade crescente em direção ao abismo que se chama catástrofe ecológica, catástrofe climática. A nossa tarefa revolucionária é parar esse trem suicida e louco. E mudar a sua direção”, aponta Löwy.
Desmatamento devido ao garimpo ilegal na Terra Indígena Munduruku, no Pará. A região está entre as dez mais desmatadas segundo o Imazon. Foto: Vinícius Mendonça/Ibama.
Para Löwy, é imprescindível “obliterar o avanço de iniciativas desastrosas” como a recente proposta de perfuração de petróleo na foz do Rio Amazonas. Temos de apresentar “ações concretas” voltadas ao “bloqueio das iniciativas mais destruidoras do sistema”.
“O ecossocialismo nunca acontecerá se não nos debruçarmos sobre coisas muito concretas. É no processo de luta social e ecológica que as pessoas vão tomando consciência dos problemas e das soluções possíveis”, salienta. Daí a aposta ecossocialista “na luta como pedagogia conscientizadora”, seguindo a trilha apontada por Rosa Luxemburgo para quem a “consciência crítica e revolucionária nasce da luta, da greve, do enfrentamento às elites”.
“A pedagogia mais eficaz é a pedagogia da luta. É através dela que as pessoas tomam consciência da necessidade de se organizar, de se auto-organizar, de quem é o adversário. Eu acredito muito na pedagogia das lutas. A gente nem sempre pode ganhar, mas pode… E tivemos vitórias importantes”, avalia Löwy ao finalizar sua apresentação com a máxima de outro revolucionário, Bertolt Brecht: “Quem luta pode perder, mas quem não luta já perdeu”.
Confira a íntegra do encontro com Michael Löwy