Luciana Araújo*. Junho de 2023, em Fundação Lauro Campos e Marielle Franco.
Romper com a compreensão cartesiana do marxismo é uma urgência para enfrentar a reorganização ultraliberal do capital e recuperar a possibilidade de emancipar o conjunto da classe, aprisionada à superexploração e opressão de mulheres e homens negros como fundamentos da hierarquização de vidas e da produção de mais-valor.
O interior dos marxismos muito se tem debatido sobre o caráter estrutural do racismo para o capital ou sobre a supremacia da condição de classe em relação às condições de gênero e raça, criando polêmicas que se afastam do que afirmou o próprio Marx. Superar uma visão compartimentada da classe trabalhadora e do processo da luta de classes é urgente, não só porque tal concepção é reflexo de influências pós-modernas que desprezam o caráter sistêmico do modo de produção, mas porque apartar a classe de sua condição de gênero e raça é uma ideologia produzida pelo racismo patriarcal para dividir os trabalhadores e derrotá-los. Como lembrou o velho Marx, “o trabalhador branco não pode emancipar-se onde se ferreteia o trabalhador negro” (1971, p. 343).
O fundador da teoria da luta de classes como motor da sociedade explica de forma nítida a acumulação capitalista sobre a base do extermínio de forças produtivas e do racismo. “As descobertas de ouro e prata na América, o extermínio, a escravização das populações indígenas, forçadas a trabalhar no interior das minas, o início da conquista e pilhagem das Índias Orientais e a transformação da África num vasto campo de caçada lucrativa são os acontecimentos que marcam os albores da era de produção capitalista. Esses processos idílicos são fatores fundamentais da acumulação primitiva”, sintetizou Marx (idem, p. 868).
A compreensão dessas relações e do acionamento das condições de gênero e raça como instrumento de ampliação da mais-valia é o objetivo deste artigo. Porque é essa compreensão que pode fortalecer a luta antirracista por emprego e trabalho decentes, condição sine qua non para a emancipação do conjunto da classe trabalhadora, e aprimorar nosso debate político sobre os desafios postos no campo da reversão dos ataques aos direitos do trabalho para o governo Lula 3 – que ajudamos a eleger com a tarefa de reconstruir o país. Embora, Como disse ainda durante a campanha o atual ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, professor Silvio Almeida, a verdadeira necessidade é “construir um Brasil que nunca existiu”, especialmente para a população negra.
Absorver os conhecimentos e tecnologias de sobrevivência dos povos originários e também aqueles saberes herdados pela população negra oriundos da cosmovisão africana pré-colonial pode nos dar chaves importantes para abrir esses caminhos.
A racialização do trabalho e do desemprego
Passados 135 anos da chamada abolição da escravatura, a população negra permanece concentrada nos postos de trabalho considerados de menor qualificação (o que implica os menores salários e condições mais precárias de contratação), e isso não é uma falha do capitalismo brasileiro, mas sim um produto de seu funcionamento perfeito.
Nos serviços domésticos, as mulheres negras são maioria absoluta. Em números absolutos, 65% da categoria, e na estratificação das ocupações elas representam 16,4% contra 8,8% de mulheres não negras, 1% de homens negros e 0,7% de homens não negros. Na época do estudo, entre as mulheres negras ocupadas, 12,6% eram trabalhadoras domésticas sem carteira assinada. Embora o direito ao registro profissional esteja assegurado em lei desde 2015, apenas 3,7% da parcela feminina da categoria estava registrada.
Nas áreas de transporte, armazenagem e correio, a participação de mulheres negras e não negras, assim como a de homens negros e homens não negros estava mais equilibrada no período analisado (1,3% e 1,4% para mulheres; 8% e 8,2% para homens, respectivamente).
Somente nas atividades de comércio e reparação de veículos automotores e motocicletas as estimativas de ocupados por grupamento de atividade se aproximavam no período avaliado (19,2% de mulheres negras; 18,2% de mulheres brancas; 19,5% de homens negros e 19,7% de homens não negros). A leve maioria de mulheres negras foi puxada pela ocupação de postos no comércio, que não é considerada uma área de trabalho qualificado tecnicamente.
Na grande área da educação, saúde humana e serviços sociais (tarefas de cuidados), apesar da forte participação na Enfermagem, por exemplo, e no sistema educacional de nível básico e fundamental, a participação de mulheres negras ainda era inferior à de mulheres não negras (19,7% contra 22,6%). Diferença similar era verificada entre os percentuais de ocupação de homens negros e não negros (4,8% e 6,4%, respectivamente) no período avaliado.
Já no trabalho análogo à escravidão, 92%1 das pessoas libertadas em 2022 eram negras, informou o Ministério do Trabalho e Emprego. Enquanto na outra ponta da escala trabalhista, nos cargos públicos de juiz de Direito ou juiz federal, por exemplo, em 2018 somente 18,1% se autodeclararam pretos ou pardos, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Na Suprema Corte não há nenhum negro, e a demanda por enegrecimento do STF não se confunde com aspiração de ascensão social, mas com a exigência de que o judiciário não continue sendo o principal agente produtor do Estado penal que alçou o Brasil a terceira população carcerária do planeta (67,2% negra, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020).
A estratificação das grandes áreas ocupacionais analisada historicamente evidencia que a mobilidade socioeconômica negra é uma ilusão no capitalismo, visto que a realidade discriminatória se mantém desde os tempos do expansionismo colonialista imperialista escravocrata.
Em 1982, Angela Davis destacava no clássico Mulheres, Raça e Classe (traduzido e comercializado no Brasil pela Boitempo Editorial somente a partir de 2016) que “proporcionalmente, as mulheres negras sempre trabalharam mais fora de casa do que as irmãs brancas. O enorme espaço que o trabalho ocupa hoje na vida das mulheres negras reproduz um padrão estabelecido durante os primeiros anos da escravidão” (p. 17).
Mas já em 1949, a ativista feminista marxista Claudia Jones debatia com o Partido Comunista estadunidense que “uma campanha para conseguir empregos para mulheres negras aqui seria, portanto, um grande avanço para a luta global por empregos para homens e mulheres negros. Além disso, teria um efeito eficaz em expor a hipocrisia do programa de “Direitos Civis” da administração Truman. Uma luta intensa também terá que ser feita contra a prática crescente do Serviço de Emprego dos Estados Unidos de encaminhar mulheres negras apenas para o serviço doméstico ou de cuidados pessoais, a despeito de suas qualificações para outros trabalhos”(Jones, 2017).
Os excertos permanecem atuais e aplicáveis ao Brasil de 2023. E o racismo brasileiro é tão sofisticado em seu projeto de genocídio da população negra que não “precisou” de leis que tipificassem juridicamente a segregação racial no pós-abolição para mantê-la. Toda a estrutura jurídico-política do capitalismo no país está organizada para tornar permanente o apartheid não formalizado. Por isso a população negra segue sobrerrepresentada em todos os índices de violações de direito e alijada do acesso ao exercício pleno dos direitos de cidadania (do que decorre a noção de “privilégio branco” pautada pelo movimento negro e a responsabilidade da parcela branca da classe trabalhadora antirracista em ser aliada efetiva da luta pela transformação dessa realidade).
A condição racial como fonte de mais mais-valor
O mesmo estudo do Dieese citado anteriormente aponta que a trabalhadora negra recebeu no segundo trimestre de 2022 em média 1.715 reais (46,3% do homem não negro, que ganhou em média 3.708 reais). E o homem negro conseguiu receber apenas 58,8% do que o trabalhador não negro (2.142 reais).
A desigualdade salarial racial é outra perenidade do mercado de trabalho no país, e mesmo nos casos em que mulheres negras têm mais anos de escolaridade, esse cenário não muda e pressiona as condições de vida do conjunto da classe, evidenciando o manejo da condição racial como instrumento de extração de maior massa de mais-valia absoluta e relativa.
No governo Bolsonaro e com a pandemia, o padrão salarial racista piorou, com as mulheres negras chegando a receber em média apenas 44,62% dos rendimentos de um homem não negro em 2020. E pesou mais nas costas da classe trabalhadora negra o aumento da informalidade e da subocupação; associado à compressão dos rendimentos do trabalho, que no segundo trimestre de 2022 estavam em patamares inferiores ao mesmo período de 2019 – como produto da efetivação do emprego intermitente aprovado na reforma trabalhista do governo Michel Temer (Lei 13.467/2017) e do aumento do confisco salarial com a reforma previdenciária de Bolsonaro (Emenda Constitucional 103).
O Dieese apontava ainda que, naquele segundo trimestre de 2022, a proporção de subocupados (pessoas que gostariam de ter jornada maior e com disponibilidade para trabalhar mais se tiverem oportunidade) também foi maior entre afrodescendentes: 10% entre as negras ocupadas contra 6,7% das não negras, e 6,5% entre os negros ocupados contra 4% dos não negros.
Somados os desalentados ou que não procuraram trabalho no ano anterior à pesquisa por descrédito na possibilidade de conseguir um posto formal, mais os desocupados que ainda buscam emprego, tem-se a subutilização da força de trabalho, que, no segundo semestre de 2002, foi de 31,5% para mulheres negras contra 20,6% de não negras e 19,7% para homens negros contra 13% não negros.
Os dados corroboram o aforismo de Angela Davis de que gênero e raça informam classe, assim como a classe informa gênero e raça.
As muitas faces da necropolítica
O teórico camaronês Achille Mbembe cunhou o conceito de necropolítica para explicar a forma como o capitalismo gerencia a extração de valor e a busca pela contenção da queda tendencial das taxas de lucro por meio da política de morte, da definição pelo Estado de quem deve morrer e quem pode viver.
Durante a pandemia do novo coronavírus, sob um governo genocida de traços fascistas, se por um lado a crise sanitária chegou para todo mundo, a classe trabalhadora negra foi o alvo direto. Outro estudo do Dieese (2021), destacou que 71% dos desempregados ou desalentados eram negros e negras entre o primeiro e o segundo trimestre de 2020 (6,4 de 8,9 milhões de homens e mulheres).
Mesmo com a economia saindo da lona após o advento das vacinas que Bolsonaro tentou evitar, os trabalhadores negros e negras mais uma vez foram deixados para trás. Ainda de acordo com o Dieese, ao menos 1,1 milhão de mulheres negras e 1,5 milhão de homens negros não conseguiram voltar à força de trabalho no pós pandemia. No segundo trimestre de 2021, enquanto a força de trabalho não negra já equivalia a 92% do total registrado no primeiro trimestre de 2020, entre os negros esse percentual foi de pouco menos de 59%.
Mas é preciso lembrar que o golpe que derrubou a presidenta Dilma Rousseff, a pandemia e a política genocida do governo Bolsonaro evidenciaram também a fragilidade dos programas de combate às desigualdades de gênero e raça dos governos Lula 1 e 2 e Dilma. A velocidade e impacto do desmonte dos direitos sociais no pós golpe jogou luz sobre a necessidade de políticas robustas de combate ao racismo estrutural e institucional brasileiro que viabilizem efetivamente aos trabalhadores negros e negras o acesso aos direitos conquistados pela classe. São necessárias políticas que rompam com a lógica histórica de hierarquização de vidas a partir do critério racial que marca o desenvolvimento do país que sequestrou o maior contingente de população no continente africano não só para explorar a força física, mas para expropriar conhecimentos, técnicas e expertises nas áreas de mineração, agricultura, construção e comércio que foram determinantes para as fases de acumulação e desenvolvimento do capitalismo em território nacional.
Por Luciana Araújo, Jornalista. Integrante do conselho da FLCMF, fundadora
do PSOL e ativista do movimento feminista negro e militante da Insurgência.