No século XXI, temos um grande dilema: manter um sistema que nos acarreta um desabastecimento, que será cada vez mais profundo e gerador de desigualdades, ou transformar radicalmente a forma de nos relacionarmos com o resto da vida e entre as pessoas. Esta segunda opção exige ativar políticas de decrescimento, localização e integração do metabolismo humano no funcionamento do metabolismo da vida.
O outono de 2021 [na Europa] está atravessado por uma palavra: desabastecimento. Por exemplo, faltam chips (o que afeta indústrias como a de celulares e a automotiva) e materiais de construção (madeira, tintas, aço). Por faltar, começa a haver carência até de bebidas alcoólicas. De forma acoplada, aumenta o preço de diferentes mercadorias, como a eletricidade. Por trás dessa situação está o aumento da demanda, fruto de certa reativação econômica, mas o crucial está em analisar por que essa demanda não está podendo ser atendida.
Para buscar respostas, precisamos de uma visão não unidimensional, pois o que estamos vivendo é o resultado de múltiplos fatores entrelaçados. Um dos elementos por trás do desabastecimento é o logístico. Após a paralisação pela covid-19, as cadeias de produção e distribuição globais não são capazes de serem reativadas de forma automática. Precisam de tempo para retomarem o ritmo de transporte marítimo e o funcionamento dos portos.
Soma-se ao momento econômico. Uma produção just in time, sem estoque, e na qual a especialização produtiva territorial é muito alta (por exemplo, a maioria dos chips do mundo são fabricados em Taiwan) faz com que o sistema seja muito vulnerável. Diante da falha de um nó da produção mundial, como está acontecendo com a de chips em Taiwan, não há estoque que possa sustentar a demanda, durante algum tempo, até que a produção se recupere.
Também faz parte do modelo econômico imperante um controle oligopolístico de muitos setores, como o do transporte marítimo global ou da produção elétrica na Espanha, que permite que tais atores utilizem sua posição de força. E uma fixação de preços que depende em boa parte dos mercados financeiros, que costumam ser amplificadores dos preços altos, por exemplo, de matérias-primas, pois fomentam processos especulativos.
Ao modelo econômico, acrescenta-se a crise econômica que se arrasta desde pelo menos 2007, que estimula um desinvestimento em diversos setores. Sem expectativa clara de lucros, os capitalistas não investem na economia produtiva e desviam suas buscas de lucro para o setor financeiro.
O setor petroleiro ilustra bem este fato. Apesar de estar cada vez mais difícil extrair o petróleo, pois está localizado em lugares mais inacessíveis (em águas ultraprofundas, em regiões árticas ou envolvido em rochas duras), as empresas em vez de aumentarem o seu investimento, estão reduzindo.
A razão é simples: não é rentável, como demonstra a quebra em cadeia de corporações especializadas em fracking, a partir de 2020, ou o anúncio de petroleiras de tamanho médio, como a Repsol, de que abandonarão o setor. Isso resulta em menor disponibilidade de bens, mesmo com o aumento da demanda, pois um campo de petróleo exige anos para ser colocado em funcionamento.
As decisões políticas também desempenham um papel no processo de desabastecimento. Deste modo, o brexit, combinado com as medidas de restrição migratória, impulsiona a falta de caminhoneiros no Reino Unido, o que contribui para o desabastecimento. Outro exemplo é como a Rússia usa sua posição de força com a Europa (é um de nossos principais fornecedores de gás) para ganhar terreno na geopolítica global.
Existem políticas de longo prazo que também é necessário destacar, como as trabalhistas. Tanto as empresas como os governos precarizaram até o insuportável a vida de muitas pessoas, que simplesmente abandonam os setores onde as condições de trabalho são inadmissíveis. Novamente, o setor dos caminhoneiros é um bom exemplo. E esta precarização não é consequência da avareza de algumas pessoas (ou, pelo menos, não só isso), mas está relacionada aos processos de desinvestimento e, em definitivo, com a crise estrutural do capitalismo.
Como o nosso sistema socioeconômico não consegue recuperar altas taxas de reprodução do capital, pressiona os elos mais frágeis a tentar. Dito de outro modo, a precariedade trabalhista é uma política até certo ponto inevitável em uma conjuntura de fragilidade das forças populares, em um sistema altamente competitivo e em crise que é cego a qualquer outro imperativo que não seja reproduzir o capital.
Mas tudo isso é insuficiente para compreender o que acontece, caso não somemos a visão ambiental. Vivemos em um planeta de recursos finitos e estamos alcançando os limites de disponibilidade de diferentes materiais. Por exemplo, a extração de prata, necessária junto com outros 40 elementos para a produção de celulares, pois é um dos que integram os chips, há anos está estagnada em consequência dos limites de disponibilidade geológica.
O problema não se restringe à prata, mas abrange cádmio, cobalto, cromo, cobre, índio, lítio, magnésio, níquel, chumbo, platina, o telúrio e zinco. Os impactos se estendem pelo conjunto da economia, pois sem uma disponibilidade crescente desses elementos não é possível fabricar cada vez mais aerogeradores, computadores, aço e automóveis.
Não faltam apenas materiais, mas também energia. O aumento do preço do gás é o principal vetor que está fazendo aumentar o custo da eletricidade na Espanha e em outros lugares da Europa. Os principais fornecedores de gás da União Europeia são a Rússia e a Argélia, países que estão atravessando uma situação similar: sua capacidade extrativa desse combustível fóssil, há anos, está estagnada.
E mais, seu consumo interno aumenta, o que faz com que a sua possibilidade exportadora sofra ainda mais, o que eleva os preços. E sem mudar de modelo, há poucas opções, pois o gás não pode ser bem transportado pelo mar (é caro e podemos transportar em pequenas quantidades, se comparamos com o consumo), o que exclui o gás estadunidense ou catariano como alternativa.
A situação do gás não é única dentro do panorama energético. A extração de petróleo parece que chegou a seu máximo em 2018 e isto é fundamental na articulação da economia global, pois cerca de 95% do transporte queima derivados de petróleo. E mais, esse transporte depende sobretudo do diesel, que está em queda ao menos desde 2018. E podemos acrescentar o carvão, pois por trás dos apagões na rede elétrica chinesa está a sua dificuldade em encontrar este combustível em quantidades suficientes em suas próprias minas e nas internacionais. Por exemplo, retirou o veto à importação de carvão australiano, mas nem com isso consegue garantir uma produção elétrica que evite cortes recorrentes.
A mudança climática também está contribuindo com a situação. Voltando a Taiwan, principal produtor mundial de chips, a mudança climática está sendo um fator determinante na seca sofrida pelo país. Isso está afetando a produção de chips, pois Taiwan Semiconductor Manufacturing Company (TSMC), líder mundial no setor, utiliza 156.000 toneladas de água por dia na produção de seus chips. E se não há água...
Inclusive a crise ecossistêmica levou ao desabastecimento. Os problemas logísticos, em consequência da pandemia de covid-19, estão relacionados à perda de biodiversidade, pois há uma ampla bibliografia científica que destaca que a ruptura dos equilíbrios ecossistêmicos é determinante na expansão de doenças zoonóticas (que provêm de outros animais) que vivemos nos últimos anos. Uma destas doenças, como sabemos, é a covid-19 que, combinada com insuficientes serviços sanitários e uma forte interconexão global, provocou uma pandemia que forçou a desacelerar a economia entre o inverno de 2019 e o verão de 2021.
Várias das causas do desabastecimento são conjunturais, mas outras, como as ambientais, são estruturais e insolúveis. Por mais dinheiro que se invista, não conseguiremos criar prata ou gás novo na Terra. A essência do desabastecimento é o choque de um sistema que precisa se expandir constantemente com a impossibilidade física e ecossistêmica de sustentar tal expansão.
Por isso, no século XXI, temos um grande dilema: manter um sistema que nos acarreta um desabastecimento, que será cada vez mais profundo e gerador de desigualdades, ou transformar radicalmente a forma de nos relacionarmos com o resto da vida e entre as pessoas. Esta segunda opção exige ativar políticas de decrescimento, localização e integração do metabolismo humano no funcionamento do metabolismo da vida (ou, dito de outro modo, economias baseadas na agroecologia e não na indústria ou nos serviços). Também a transcender o capitalismo através de uma desmercantilização e dessassalariação de nossas vidas.
E tudo isso deve ser realizado com fortes medidas de redistribuição da riqueza, que permitam que toda a população mundial viva dignamente de forma austera. Em definitivo, ter vidas plenas em harmonia com o conjunto da vida, sem tentar, de forma doentia e contínua, ultrapassar os limites de nosso belo planeta. Em Escenarios de trabajo en la transición ecosocial 2020-2030, propomos ideias mais concretas sobre como realizar essa grande transição para o nosso território.
Luis González Reyes, doutor em Ciências Químicas, pesquisador e ativista de Ecologistas en Acción,
“Estamos claramente vivendo as primeiras etapas do colapso”. Entrevista com Luis González Reyes
A falta de matérias-primas e componentes básicos se estende para todos os setores e vai muito além dos chips semicondutores, cuja escassez gerou alarmes no início deste ano. Em apenas alguns meses, o preço do magnésio, crucial para a produção de carros, bicicletas e aviões, multiplicou por quatro. Sem esse elemento não há alumínio, nem titânio, e sua produção está concentrada em 87% na China. Os apagões e as restrições ao consumo de energia sofridos por esse país aumentaram o preço internacional desse material. Mas não é um problema apenas da China.
As grandes empresas começam a prever problemas de abastecimento para o Black Friday e a campanha natalina. Nos Estados Unidos, a produção de casas caiu para mínimos, não só pelo aumento dos preços dos materiais e os atrasos na entrega, mas pela falta de mão de obra. No Reino Unido, as vagas de emprego não preenchidas no segundo trimestre do ano tinham aumentado para 953.000, segundo o Escritório Nacional de Estatísticas. A escassez de mão de obra se tornou um problema de segurança nacional na área do transporte por rodovia, o que está provocando desabastecimento e uma crise sem precedentes no fornecimento de combustíveis e nos estoques de alimentos. Na Espanha, apesar de 14% de desemprego, existem 120.000 vagas de emprego não preenchidas. The Financial Times alertava que em toda a Europa faltavam 400.000 caminhoneiros.
E se o transporte por terra oferece perspectivas preocupantes, piores são para aquelas empresas que optam pelo comércio via mar. Centenas de barcos – 584, concretamente – estão bloqueados nos principais portos e, atualmente, enviar um contêiner em um navio é dez vezes mais caro do que antes da pandemia. A cena apocalíptica do gigante mercantil Evergreen encalhado no Canal de Suez foi apenas uma anedota que escondia uma crise no comércio global sem precedentes.
Apesar da gravidade por trás dessas anomalias, é a crise energética que se apresenta como o maior perigo para a economia e a estabilidade do mundo pós-covid. Em um ano, o preço do gás multiplicou por cinco, o do petróleo duplicou e o preço do carvão alcançou o nível mais alto dos últimos 13 anos.
A Europa enfrenta o inverno com a menor reserva de gás, em dez anos, e já são muitas as grandes indústrias que anunciam ou fazem paralisações nas atividades por causa do preço da energia. Na Espanha, os cortes na produção devido à alta no preço da luz já atingem 22.000 empregos. E a China vive uma onda de apagões. Até 21 províncias – das 31 do gigante asiático – adotaram algum tipo de racionamento energético.
Para Luis González Reyes, autor de La espiral de la energía (Libros en Acción, 2014), não se trata de fatos isolados, mas sintomas de um sistema econômico que entrou em “curto-circuito”. Nesse livro, elaborado conjuntamente com Ramón Fernández Durán, já se falava do papel que doenças como o coronavírus poderiam ter em um potencial colapso da civilização, tal como a conhecemos: “As pandemias voltarão ao Centro e provocarão mais mortes do que as doenças crônicas. Elas incidirão na paralisação do sistema econômico e na crise estatal, como ocorreu no passado, por exemplo, com a queda do Império Romano e do Inca ou durante a Idade Média, na Europa”.
Os sintomas que estamos experimentando não são indicadores de um colapso em marcha, disse González Reyes, mas incidem nos principais fatores que nos levam a ele. “Estamos claramente vivendo essas primeiras etapas do colapso”, alerta.
Independente que alguns desses acontecimentos imprevisíveis e “que antes pareciam impossíveis” sejam mais ou menos conjunturais, existe algo que veio para ficar. Segundo esse ativista e pensador, membro de Ecologistas em Ação, “a estabilidade e tranquilidade do século XX não voltarão mais”. Para González Reyes, isso é apenas o começo.
Martín Cúneo entrevista Luis Gonzales Reyes, El Salto, 26 de outubro de 2021. A tradução é do Cepat.
É possível dar uma explicação global a todos esses fenômenos econômicos e sociais que estão ocorrendo de forma paralela?
Eu diria que todos os processos estão conectados dentro de uma estrutura muito complexa, com múltiplas variáveis. Os processos de encarecimento de diferentes matérias-primas e os processos de desabastecimento, na verdade, estão muito relacionados.
Por trás disso, existem múltiplos fatores, o primeiro, uma certa reativação da demanda depois da pandemia. E isso ocorre em uma situação de desordem das cadeias globais de produção, que precisam de tempo para voltar a funcionar como antes.
Há um segundo elemento que é o fato de que nossas cadeias globais de produção e consumo foram se articulando por meio de um funcionamento just in time, quase não há estoques. Não existem mais estoques, tudo precisa ser fabricado e tudo isso não é possível acontecer da noite para o dia.
Um terceiro fator é que existe uma grande especialização territorial, em diferentes produções, e quando sobre esses territórios ocorrem situações específicas de impossibilidade de aumento da oferta, isso arrasta todo o resto.
E há um quarto fator: estamos chegando aos limites da disponibilidade tanto de diferentes materiais, como de diversas fontes energéticas, e isso também gera um curto-circuito dentro das cadeias globais de produção.
E se poderia falar de um quinto fator, que são fatores econômicos que tem a ver com políticas específicas que foram sendo tomadas em diferentes territórios, na Rússia, na China e no Reino Unido, para explicar todo esse curto-circuito.
Essa interconexão máxima do mundo parecia que nos dava muita resiliência e muita capacidade de adaptação, mas o que estamos vivendo agora demonstra totalmente o contrário. Diante de situações de estresse como as que estamos vendo, em vez de se ter maior capacidade de resposta, parece que temos menos e, de alguma forma, os problemas se ampliam.
É como se ao ‘resetar’ a economia, depois da pandemia, algo tivesse parado de funcionar.
A pandemia, com o que significou a paralisação econômica, é um fator, mas não é o único. Para entender tudo o que está acontecendo precisamos ver que não existe apenas uma situação de crise sanitária que desbarata, mas também uma situação de crise climática, que contribui para esse caos. Existem diferentes elementos que vão se somando e quando temos um sistema frágil, submetido a muitas situações de estresse, a probabilidade de que isso desmorone é ainda maior.
Para entender por que existe falta de fornecimento de chips, temos que saber que a produção está concentrada em Taiwan e que este país não sofreu somente a pandemia, mas também está tendo problemas de acesso às matérias-primas e água, em consequência das mudanças climáticas.
Os meios de comunicação e os especialistas estão acertando? Percebe desorientação ou ansiedade em suas análises?
O próprio Governo espanhol deixou de dizer que não haveria qualquer problema de fornecimento de gás, durante o inverno, para admitir que pode ocorrer. Começa a se enxergar que existe uma problemática que pode durar um tempo, mas não são colocados sobre a mesa todos os fatores que estão por trás disso. E os fatores ambientais, como os limites de disponibilidade de recursos, permanecem ausentes das análises mainstream.
Especulou-se muito sobre o quanto durará essa nova crise.
Falou-se muito da recuperação da normalidade e da volta a um mundo parecido ao que tínhamos durante o século XX e inícios do século XXI, quando não havia grandes sobressaltos no funcionamento social, político, cultural. Eu acredito que isso não voltará a acontecer, viveremos um contínuo de excepcionalidades, embora não saibamos quais serão, nem quando vão ocorrer, nem com qual frequência, nem qual profundidade cada uma delas terá.
Agora, uma pandemia, depois de amanhã, cortes na disponibilidade de energia, depois, um problema de abastecimento por um curto-circuito nas cadeias de fornecimento e, em outro, outra coisa diferente...
É um pouco o que está acontecendo agora...
Sim, um pouco o que está acontecendo agora, mas contínuo no tempo. Eu não acredito que os governos por vontade própria abandonarão esses planos de estímulos excepcionais, essa criação gigantesca de dinheiro do Federal Reserve, nos Estados Unidos, e o Banco Central Europeu.
O que não está claro é quanto tempo conseguirão manter esses planos de estímulo, com a coisa ficando cada vez pior. Você pode criar muito dinheiro, mas precisa ter uma correlação com a atividade econômica, caso contrário, vai criando bolhas de dívida cada vez maiores que, cedo ou tarde, acabam explodindo.
O esvoaçar de um morcego na China pode acabar com o capitalismo...
Eu não diria que acabará com o capitalismo, mas possivelmente, sim, com o capitalismo global. O capitalismo em sua versão globalizada, com altos níveis de interconexão, está ferido de morte e não tem salvação, outra coisa é como morrerá e em que momento será. Mas isso não quer dizer o fim do capitalismo, que pode continuar se articulando em níveis mais locais, além disso, com visões muito aterrorizantes.
Em ‘La espiral de la energía’, falava-se de uma crise global desencadeada por uma crise energética, mas no caso atual foi uma pandemia.
O crucial não é qual é o elemento concreto, mas que existem muitos elementos que fazem com que a vulnerabilidade apareça. Em 2020, a pandemia cumpriu um papel muito importante, mas em 2007, nessa crise econômica que de alguma maneira ainda arrastamos, um dos gatilhos foi o preço do petróleo.
Em 2021, se a China está tendo problemas para manter sua atividade econômica, em grande parte se deve ao seu desabastecimento de energia. Sendo assim, na verdade, é como uma espécie de espiral em que uma coisa vai se sobrepondo à outra. Por isso, amanhã pode ser uma grande seca que trará outros problemas, de diferentes tipos.
Quando você escreveu e publicou o livro, o mundo parecia muito mais estável do que agora. O que está acontecendo agora se parece um pouco com o início do colapso que você descreveu?
A grande pergunta é se já estamos vivendo o colapso. No livro, definimos o colapso como uma rápida perda de complexidade em termos históricos, um processo que durará décadas. E podemos medir a perda de complexidade com quatro indicadores: perda de população, perda de interconexão, perda de especialização e perda de informação.
Se olharmos para esses quatro indicadores, não é possível dizer que agora ocorre uma grande perda de população, nem de interconexão, embora também não muito grande. Poderíamos concluir, então, que não estamos em colapso.
No entanto, acredito que precisamos observar com um pouco mais de perspectiva temporal, tanto para trás quanto para a frente, porque os sistemas possuem inércias e é preciso saber lê-las. Há coisas que estão acontecendo que claramente incidem nos quatro indicadores.
A pandemia incide sobre a população, também incide sobre a interconexão, pois houve uma disrupção das cadeias globais de produção. Do mesmo modo, incidiu em parte sobre a especialização, pois coisas que não eram fabricadas na Espanha, começaram a ser fabricadas aqui, como as máscaras.
Quando falamos de emergência climática, esses processos meteorológicos extremos que destroem infraestruturas, a tempestade Gloria ou essas ondas de calor brutais no hemisfério norte vão contra uma interconexão maior. E quando falamos em crise energética, não há possibilidade de um comércio global sem uma disponibilidade em massa de petróleo, e esse petróleo está dando sinais de esgotamento, então novamente esse indicador, o da interconexão, se vê atingido.
Penso que estamos vivendo claramente essas primeiras etapas do colapso, embora não estejamos vivendo algumas situações profundas de colapso, estamos nessa dinâmica. E como será o processo? Tremendamente aberto. É difícil estabelecer uma sequência, pois o que irá acontecer são processos inesperados. No entanto, o mais provável pela situação que estamos vivendo é que seja um choque com os limites ambientais.
Dentro dessa lógica, provavelmente, primeiro serão afetados os processos econômico-financeiros e depois os econômico-produtivos, entendendo que as duas coisas estão relacionadas, e teremos outros acontecimentos que ocorrerão com mais tempo, como crises urbanas ou outros processos. O crucial é que aquilo que antes parecia improvável se torna o possível.
Até agora, os bancos centrais haviam administrado as duas últimas crises com uma política de expansão monetária e juros baixos. Será possível manter esse caminho com a situação atual de inflação?
A estratégia fundamental, quase única, seguida pelos poderes econômicos e políticos para responder à crise que se inicia em 2007-2008 e que, na verdade, arrastamos e que recrudesce em 2020, foi colocar uma enorme quantidade de dinheiro sobre a mesa, por meio da criação direta de dinheiro e de emprestá-lo muito barato, com taxas de juros muito baixas.
Enquanto a economia esteve mancando como até agora, meio em coma, essa política permitiu que funcione mais ou menos, permitiu manter um montão de empresas zumbis que, na verdade, arrastam resultados econômicos com perdas subsequentes, ainda que com a geração de um processo de dívida gigantesco.
O que acontece agora? Conforme ocorre uma tímida reativação econômica, mas, além disso, uma escassez de recursos cada vez mais evidente que joga para o alto os preços, os bancos centrais não podem recorrer à sua capacidade histórica de controlar os preços através do aumento das taxas de juros. Não podem aumentar as taxas de juros porque, caso atuem assim, toda essa economia dopada que existe graças a essa política econômica possivelmente desmorone.
Qual é o problema de fundo de tudo isso? A economia produtiva não consegue oferecer lucros, os capitalistas não investem na economia produtiva, apenas na economia financeira, mantém-se essas empresas zumbis graças a essa visão financeira e o que temos é uma situação tremendamente complexa: permitimos que aumente a inflação e, portanto, o empobrecimento da população, mas também a degradação dos lucros do grande capital, ou permitimos que ocorra uma crise importante que saneie a economia fazendo com que quebrem um montão de empresas, sendo que isso acarreta não só perda econômica, mas também desestabilização social?
Os governos querem evitar que sejam repetidas situações como as vividas na Espanha e na Grécia, há alguns anos, e manter um mundo parecido ao do século XX, com certa estabilidade, e isso tem cada vez menos margem de manobra.
Então, esse mundo de estabilidade do século XX não voltará?
Acredito que o mundo de altas gerações de capital acabará explodindo para gerar uma crise financeira potente e teremos que lidar com o que tem sido evitado, desde a crise de 2007-2008, que é uma depressão só comparável a que houve nos anos 1930, que não era só uma crise no financeiro com alguma repercussão no produtivo, mas era uma crise profunda do modelo.
Até que ponto a crise energética que temos diante de nós é estrutural?
Desde 2005, a extração de petróleo convencional – que é petróleo bom, fácil de extrair, com bom desempenho energético – se mantém mais ou menos estável. De 2005 até 2021, houve momentos de forte crescimento e se houvesse capacidade de continuar extraindo esse petróleo de forma crescente, seria extraído, pois o outro, que tem sido extraído de forma crescente, obstaculizado por rochas duras, nas zonas árticas, imersas em grandes profundidades, é um petróleo mais caro para extrair e que dá menos retorno econômico e energético.
Temos evidências de que estamos chegando a um limite de disponibilidade no petróleo convencional. Mas acontece que com os outros petróleos também está acontecendo algo parecido. Desde 2018, temos uma taxa de extração decrescente desses petróleos. E algo parecido pode acontecer com o carvão e com o gás, se não agora, em breve.
Antes da pandemia já se falava em desinvestimentos no comércio do petróleo pela baixa rentabilidade.
Nos últimos anos, está ocorrendo um decrescimento importante nos investimentos de petroleiras públicas e privadas. As contas não fecham e preferem reinvestir em outras coisas. Quando a Repsol diz que vai parar de investir em petróleo não é porque de supetão tenha se tornado ecologista, mas porque não é rentável para ela.
Em geral, as empresas maiores ainda possuem certa capacidade de investimento e de aguentar o rojão. As médias e pequenas estão agindo como a Repsol ou, diretamente, estão quebrando.
Antes era o negócio de excelência.
No século XX, quando olhávamos quais eram as principais empresas do mundo, sempre encontrávamos as petroleiras. Provavelmente, o personagem por excelência do século XX foi Rockefeller, um petroleiro que extraiu desse negócio toda a sua fortuna e sua capacidade de influência.
Então, era barato extrair o petróleo, estava perto do subsolo, era preciso fazer investimentos pequenos e podia ser vendido não muito caro e se obter lucros. Além de barato, era possível aumentar a extração, ano após ano. Sendo assim, algo que não era difícil de extrair e que, além disso, era possível vender em quantidades cada vez maiores trazia lucros gigantescos. No século XXI, não é mais assim.
O que está acontecendo com o gás? A crise também é estrutural?
Com o gás a situação é diferente, ainda há um aumento na capacidade de extração, mas a curva em vez de ter um crescimento exponencial rápido, vai se torcendo e estabilizando e está se aproximando desse pico de disponibilidade máxima.
Um segundo elemento é que, diferente do petróleo, que é um mercado globalizado, o mercado de gás é muito mais territorializado, porque os gasodutos chegam onde chegam, possuem uma capacidade de expansão de alguns milhares de quilômetros. O transporte por navios também pode ser feito, mas é muito caro.
Isso faz com que o mercado do gás seja muito mais localizado que o do petróleo e esse fator é determinante, no caso da Europa, porque depende de seus dois principais provedores, Argélia e Rússia. E nos dois casos, parece que a extração de gás chegou ao teto ou está muito perto disso. Além do mais, há um aumento da demanda interna, o que tensiona sua capacidade exportadora de forma importante.
A isso se acrescentam os condicionantes geoestratégicos que também cumprem um papel. No caso da Argélia, em sua disputa com Marrocos e sua tentativa de que a União Europeia se coloque ao seu lado utilizando os mecanismos de pressão que tem na mão. No caso da Rússia, no jogo geopolítico de tentar mais uma vez ser uma potência relevante, exercitado de diferentes formas, entre elas, pressionando a Europa com a disponibilidade de gás, através da Alemanha.
Entre os efeitos dessa crise, após tanto barulho com a luta climática, há um retorno ao carvão.
O que precisamos entender é que a luta contra as mudanças climáticas não é verdade. Não existe luta contra as mudanças climáticas, apenas um discurso geral contra as mudanças climáticas. E para mostrar que não existe luta contra as mudanças climáticas, temos o exemplo do retorno ao carvão, que no caso da China está muito claro, mas também na Alemanha, inclusive com uma força muito importante dos partidos verdes.
Mas também podemos ver isso nos acordos internacionais. Em breve acontecerá a cúpula de Glasgow, que precisa dar continuidade ao Acordo de Paris. Mas o Acordo de Paris não é nada, não merece ser chamado de acordo. Um acordo em que cada país determina qual redução de emissões fará e que se não as cumpre não acontece nada, sem nenhum tipo de sanção, não pode ser chamado acordo, eu o chamo de faça o que cada um quiser. Entrar em situações de crise nos demonstra que a prioridade volta a ser, mais uma vez, o crescimento econômico e não atender à emergência climática.
Em nível governamental, não espero nada da cúpula de Glasgow, apesar dos impactos das mudanças climáticas na economia. Vimos há um ano como metade da península ibérica ficou paralisada por uma nevasca, que tem uma relação direta com as mudanças climáticas, como durante esse verão literalmente parte das infraestruturas na América do Norte derrreteram, em consequência da onda de calor brutal e como houve incêndios devastadores na Califórnia, Sibéria e Austrália, que também geram impactos diretos na economia.
Apesar de tudo, a incapacidade de planejamento de nossos sistemas econômicos e nossos entes políticos é grande e acredito que seguirão com não-acordos, sem caráter vinculante e sem caráter ambicioso.
Uma das coisas estranhas que está acontecendo é a falta de mão de obra.
Novamente, há um amálgama de coisas. Um elemento muito determinante em tudo isso é que houve um processo de desinvestimento na economia produtiva. E isso não se resolve com um estalar de dedos. Isso se deve a que estamos em uma situação de crise estrutural do capitalismo, de incapacidade de geração de lucros e, de alguma forma, tenta-se atenuar com outros setores, como o financeiro, que não deixa de ser fictício.
Falta mão de obra porque não se fez investimento para isso e quando necessário não é gerada de forma espontânea. Também falta mão de obra porque fomos para um modelo de empobrecimento da população e em determinados setores, com fortes ajustes nas condições de trabalho, isso fez com que as pessoas que trabalhavam diretamente nesses setores saíssem, algo que aconteceu com os caminhoneiros no Reino Unido.
As políticas migratórias – e aqui novamente o exemplo do Reino Unido e o Brexit – e a demografia desempenham um papel importante em toda a crise de mão de obra. A China está enfrentando um problema de mão de obra para sustentar seu modelo de hiperexploração das pessoas que faz com que os movimentos sociais sejam mais fortes e isso coloca em xeque uma parte da produção barata, que era um dos segredos de seu sucesso.
Não deixa de ser um paradoxo que os capitais que dependem dessa mão de obra barata e que estimulam essas políticas de direita ou de extrema direita de fechamento de fronteiras, agora estejam vendo como a sua atividade precisa parar pela falta de trabalhadores e trabalhadoras. Há uma parte da direita que está sendo prisioneira de suas próprias políticas identitárias e que está tendo problemas para manter seus privilégios baseados em sua atividade econômica, fruto de coisas que eles próprios estimularam.
Não faz muito tempo, Donald Trump presidia os Estados Unidos e parece que Jair Bolsonaro, no Brasil, e Johnson, no Reino Unido, também podem cair. Chegamos ao pico do fascismo?
O fascismo pode continuar subindo, embora não necessariamente. O que antes era considerado normal desaparece, e o que é excepcional tem muito mais campo de ação política. O fascismo tem uma vida longa e um longo percurso porque há elementos que ocorrem conosco que o estimulam.
Situações de desorientação social como a que estamos vivendo são propícias a discursos simplistas que procuram bodes expiatórios, principalmente se há insatisfação de necessidades por parte das pessoas. Claramente, isto é um terreno fértil para o fascismo.
Populações como as classes médias espanholas, que se acostumaram a viver com altos níveis de consumo, com uma alta colonialidade, aproveitando-se de recursos do resto do planeta, não vão querer renunciar a esses privilégios, e isso em situações de escassez é a porta de entrada para esses fascismos.
Sociedades multiculturais nas quais a integração não ocorreu são também lugares fáceis para buscar esses bodes expiatórios na população cigana, na população migrante... Temos um terreno fértil para que os fascismos possam crescer e chegar a situações de tomada do poder dentro da União Europeia.
Mas não é a única coisa que pode crescer de forma rápida neste contexto. Ao mesmo tempo, os níveis de insatisfação social que estão se articulando são também elementos que podem gerar a explosão de movimentos de caráter mais emancipador.
A pandemia também abalou a base fundamental da socialização, reunir-se, conversar...
É verdade, mas ao mesmo tempo a pandemia também demonstrou outras coisas. Demonstrou como era possível parar a economia e colocar a saúde à frente, demonstrou como as sociedades precisam dos serviços essenciais que foram definidos durante o período de confinamento, algo que se assemelha muito ao que está sendo proposto a partir de posições decrescentistas.
Também demonstrou que o que mais precisamos, o que mais ansiamos como sociedades, são esses fortes graus de inter-relação social, esses vínculos pessoais com as pessoas que amamos, não o consumismo.
A pandemia rompeu a normalidade, em alguns casos, abrindo a porta para esses novos mecanismos de controle social, para essa nova desarticulação social e os neofascismos cresceram. Mas também tem o outro lado, agora talvez sem a visibilidade tão grande de abril de 2020, mas existem elementos de fundo, em nível social, que podem emergir como forças políticas, não necessariamente partidaristas, que impulsionem mudanças em sentidos diametralmente opostos às posições fascistas, que também leiam os momentos que estamos vivendo.
Com a chegada do frio ao hemisfério norte, vão se desenhando alguns meses complicados, com os preços da luz nas nuvens e preços recordes dos alimentos.
Quando em 2011 ocorrem todas as revoluções árabes, claramente, por trás existe um anseio de maior democracia, mas também os problemas de acesso aos alimentos. Um cenário de alimentos caros, de energia cara, inclusive de desabastecimentos energéticos, cortes ou problemas de acessos a alguns alimentos, algo que não é em absoluto improvável nesse inverno, pode trazer algo parecido ao que foram as revoluções árabes. Ou, muito pelo contrário, pode alimentar posições neofascistas ou, o mais provável, as duas coisas ao mesmo tempo e termos um cenário de polarização e confronto social crescente em nossas sociedades.
E disso a Quarta Revolução Industrial não nos salva?
A Quarta Revolução Industrial requer ao menos duas coisas, que não existem, nem creio que sejam esperadas. Uma, investimentos fortes do capital produtivo em tudo o que tem a ver com o desenvolvimento das tecnologias, algo que não está sendo feito porque não há uma expectativa de crescimento, porque o sistema tem uma crise profunda. E, dois, muita matéria-prima e energia, que não está disponível em nível planetário.
Ocorrerá alguns desenvolvimentos industriais em alguns setores, isto virá para os bairros, mas não há base material e econômica que mantenha um desenvolvimento em massa que permita superar a crise com base em uma Quarta Revolução Industrial.
Parte dos problemas podem ser conjunturais, mas há o perigo de que quando forem solucionados, tenham surgido outros talvez mais graves.
A crise do petróleo dos anos 1970 era conjuntural. Os países exportadores tinham fechado a torneira, conforme a abriram, essa escassez acabou. Agora não estamos apenas em uma crise conjuntural provocada pela pandemia, temos um elemento de fundo, estrutural, que é essa impossibilidade de manter alguns fluxos crescentes de disponibilidade energética, ou a impossibilidade de que os impactos da emergência climática não recaiam diretamente sobre a economia.
Penso que temos que ser capazes de ler as conjunturas, que se recuperarão, como o desabastecimento de bicicletas que acontece nesse momento, mas se olhamos toda a articulação das cadeias globais de produção, acredito que não estamos somente diante de um tema conjuntural, mas de um processo sustentado e que tem um mar de fundo, que é uma deriva para o colapso da civilização industrial.