Luis Leiria, Esquerda.net, 7 de julho de 2020
Segunda parte de um artigo de fundo sobre o Brasil. A primeira parte é: Brasil 1: o golpe não passava de um blefe.
O presidente Jair Bolsonaro já deve sofrer de crise de abstinência por privação de ameaças golpistas. Desde há cerca de três semanas que não se realizam as manifestações bolsonaristas de extrema-direita que serviam de palco para o presidente fazer as suas declarações bombásticas ou exibir as suas poses de chefe autoritário.
Os militares do seu governo continuam eloquentemente mudos. Mas a crise não desapareceu. Antes pelo contrário. O governo continua tão ou mais à deriva que antes.
A pandemia de Covid-19, que parecia ter entrado numa fase de achatamento, ganhou novo ímpeto devido às medidas descontroladas de desconfinamento aplicadas em muitas cidades.
Em pelo menos 12 capitais brasileiras que reabriram bares e comércio, o número de casos da doença subiu e levou algumas delas a recuar e a adotar medidas mais restritivas nos últimos dias. Um exemplo disto é Belo Horizonte, cuja prefeitura já avisou que a cidade terá de conviver com o abre-e-fecha. O exemplo de grande crescimento da pandemia é Brasília, onde o comércio foi aberto no fim de maio e o número de casos quintuplicou.
No dia em que é escrito este artigo, o Brasil tinha ultrapassado os 1.613.351 infectados pela Covid-19 e contavam-se 65.120 mortes.
Mas o Ministério da Saúde continuava a ter à frente, interinamente, um general especialista em logística, não um profissional de saúde. Depois de ter demitido dois ministros seguidos, Bolsonaro não encontra mais ninguém disposto a aceitar ficar à frente do Ministério da Saúde.
Educação: o ministro que não chegou a ser
A mesma situação começa a desenhar-se na Educação. Depois de Weintraub, demitido por Bolsonaro por se ter tornado um empecilho à tentativa de reconciliação com o Supremo Tribunal Federal (STF), o presidente optou, no dia 25 de junho, por nomear mais um militar para o cargo, o oficial da reserva da Marinha Carlos Alberto Decotelli da Silva. Só que este nem chegou a tomar posse.
Ao anunciar o novo ministro, que seria o primeiro negro do seu governo, Bolsonaro destacou o currículo, onde figuravam um mestrado na Fundação Getúlio Vargas, um doutoramento na Universidade de Rosário, Argentina e um pós-doutoramento na Universidade de Wuppertal, na Alemanha.
Só que era tudo, ou quase tudo, falso.
O doutoramento foi desmentido pelo reitor da Universidade de Rosário. Decotelli de facto frequentou o doutoramento, mas teve a sua tese rejeitada na qualificação e nunca chegou a defendê-la. “A tese dele não foi aprovada e não recebeu um parecer favorável da banca. Portanto, ele não pôde concluir o doutoramento que estava realizando na Universidade Nacional de Rosário. E, como consequência, não obteve o título de doutor”, disse o reitor. O pós-doutoramento foi igualmente desmentido: na Universidade de Wuppertal, Decotelli participara apenas de uma pesquisa de três meses em 2016. Apenas isso: “Ele não adquiriu nenhum título na nossa universidade”, esclareceu a instituição.
Sobre o mestrado, pairam dúvidas de que tenha havido plágio. E quando o país já se perguntava de onde tinha saído tanta mentira, ainda se descobriu que até o título de “oficial da reserva da Marinha” não era correto(link is external): Decotelli teria entrado sem concurso na força militar para prestar um serviço militar temporário, e pertencia a uma espécie de “segunda classe” da Marinha. A sua apresentação como oficial teria irritado militares de carreira que viram a menção como “exibicionismo indevido”.
Era demais: no dia 30, cinco dias após a nomeação, Decotelli demitiu-se. O “ministro-relâmpago” nunca chegou a tomar posse.
Foi seguido pelo secretário de Educação do Paraná, Renato Feder, que no dia 3 de julho indicou ter sido convidado para o cargo, dizendo-se muito honrado pelo convite. Mas no domingo, dia 5, recuou e anunciou que o tinha recusado. Feder compreendeu rapidamente que seria sabotado no cargo pela ala olavista, que não o queria, e por ser considerado pouco alinhado a grupos evangélicos.
Os fantasmas de Bolsonaro
Se um governo tem grande dificuldade para preencher ministérios tão importantes como o da Saúde e o da Educação, isso significa que as coisas não estão a correr muito bem a quem comanda esse governo. Se tudo estivesse bem, haveria um grande leque de propostas e a dificuldade estaria na escolha.
O que acontece com o governo Bolsonaro é o oposto. Cientes do risco que correm, os possíveis ministeriáveis afastam-se e torcem até para não receberem qualquer convite.
Não, o governo não está bem, mas muito enfraquecido. Enquanto Bolsonaro procura equilibrar-se no poder e driblar o impeachment, é assolado pelo medo de possíveis eventos ou ocorrências que o ponham em xeque. São os seus fantasmas particulares. Vejamos alguns.
Queiroz fará um acordo de delação?
O maior fantasma neste momento é o avanço da investigação do caso Queiroz e a possibilidade de que ele chegue a um acordo com o Ministério Público para fazer uma delação premiada. O ex-polícia Fabrício Queiroz é amigo e homem-chave das campanhas políticas de Jair Bolsonaro desde os anos 80. Foi Jair que o pôs no gabinete do filho Flávio. Queiroz era o operador do esquema da “rachadinha” instalado no gabinete daquele então deputado estadual. Queiroz foi também o elo de ligação da família Bolsonaro com as milícias. Foi ele que apresentou o matador Adriano da Nóbrega, do “Escritório do Crime”, agraciado com a medalha Tiradentes por Flávio Bolsonaro quando estava preso por homicídio. Em resumo: Queiroz sabe muito. E sabe também que a sua vida está em risco. Assim como a vida da sua mulher, Márcia Aguiar de Oliveira, que tem prisão decretada e está a monte.
Na sexta-feira, 26 de junho, um canal de TV informou que a negociação para a delação já estava em curso, e que Queiroz a faria em troca da segurança para a sua família – a mulher e duas filhas. Bolsonaro deve ter tremido. Mas, dias depois, o próprio Queiroz terá dito ao seu advogado que não pretende delatar. A ver vamos.
O deputado federal Marcelo Freixo, do PSOL, constata que a prisão de Queiroz deixou Jair Bolsonaro mais abatido do que as crises provocadas pelas demissões de ministros do seu governo. “O que explica esse silêncio inédito? O medo diante da constatação de que a prisão de Queiroz provocará o desmoronamento da ideia de que ele representa uma nova política.” E acrescenta: “o ex-policial militar é a tampa do bueiro e Bolsonaro sabe que, agora, o esgoto está correndo a céu aberto, expondo ao país a podridão do sistema político carioca, uma mistura de crime organizado, polícia e política”. E no seu Facebook escreveu: “Bolsonaro não está manso. Está com medo.”
Frederik Wassef, a bomba explodirá?
Outro fantasma que tira o sono de Bolsonaro é o advogado Frederik Wassef, proprietário da casa onde foi preso Fabrício Queiroz, considerado pelo (link is external)El Pais (link is external)como “uma bomba prestes a explodir”(link is external). Wassef representou Flávio Bolsonaro em alguns dos processos em que este conseguiu entravar as investigações da “rachadinha”, e representou Jair no processo do atentado à faca durante a campanha eleitoral. Ficou conhecido como “o Anjo”, alcunha dada pelos Bolsonaro. Foi ele que apresentou ao presidente o empresário Fábio Wajngarten, hoje secretário executivo do novo Ministério das Comunicações.
Habitualmente discreto, ao ver-se diante das câmaras e centro das atenções, mostrou uma faceta histriónica. Pressionado a explicar porque abrigara Queiroz, multiplicou as explicações contraditórias. Nunca falara com Queiroz e não sabia que ele estava na sua casa; sabia sim, mas abrigara o ex-polícia por razões “humanitárias”, para que ele pudesse realizar um tratamento de saúde na região; abrigara Queiroz porque este podia ser morto por alguém que iria depois pôr a culpa em Bolsonaro.
As suas declarações mais recentes confirmam a definição como “bomba prestes a explodir”. Segundo O Globo, Wassef afirmou que pretende conceder em breve uma entrevista à TV sobre a morte do miliciano Adriano da Nóbrega: "Vou explodir todo mundo em rede nacional ao vivo. Poderosos políticos do Rio mandaram assassinar o Adriano. Tenho provas. Os mesmos caras que executaram o Adriano iriam executar o Fabrício Queiroz".
Os Bolsonaros tinham-lhe pedido que discretamente sumisse do mapa, mas o “Anjo” não ligou nenhuma ao pedido.
Entretanto, Flávio Bolsonaro fez uma décima tentativa de entravar a investigação do processo e obteve sucesso: a Justiça do Rio aceitou um habeas corpus para que Flávio Bolsonaro seja julgado pela segunda instância no Caso Queiroz, por ter direito a foro especial, já que na altura era deputado estadual. O Ministério Público do Rio apelou ao Supremo da decisão, argumentando que ela descumpre orientações anteriores do próprio STF. Mas entretanto, mais uma vez, as investigações ficam paradas.
A pandemia descontrolada explodirá no colo de Bolsonaro?
Bolsonaro continua a insistir na minimização da pandemia, a mostrar-se insensível aos mortos que se empilham. O máximo de reverência aos mortos da pandemia foi mandar tocar a Ave Maria em sanfona numa das suas sessões live. Um espetáculo patético.
O problema é que todas as ilusões têm um limite. Aqueles que concordavam com Bolsonaro por este ser contra as políticas de confinamento e de distanciamento social que impediam o funcionamento da economia, verificam agora que não há como haver um funcionamento normal da economia com mais de mil mortes por dia provocadas pela Covid-19.
E o que está a acontecer desde que o confinamento terminou, abriu o comércio e voltou a dita “normalidade”, é que a pandemia voltou a subir em flecha. Só que agora, além da retomada em força em cidades como S.Paulo e Rio, está a crescer mais no Sul e Centro-Oeste do país, regiões onde Bolsonaro foi mais votado. Segundo a Universidade Federal do Paraná, a taxa de transmissibilidade da doença está em ascensão nas duas regiões há cerca de três semanas. Não é uma segunda onda, é apenas o desenvolvimento da primeira.
Bolsonaro não se preocupa com isto. A sua obsessão continua a ser boicotar qualquer medida de controlo à pandemia. As últimas medidas foram vetar o uso obrigatório de máscaras em comércios, escolas, igrejas e presídios.
Pelos vistos, este fantasma da pandemia que tantos pesadelos dará ao presidente, usa máscara.
O ex-herói, atual inimigo, Sergio Moro provará a manipulação da Polícia Federal?
O inquérito sobre tentativa de interferência política do presidente na Polícia Federal, resultado das acusações formuladas por Sergio Moro quando se demitiu do Ministério da Justiça, tem mais 30 dias para conclusão e Bolsonaro ainda deverá depor. Apesar de o famoso vídeo da reunião ministerial de 22 de abril não ter sido a prova inegável que se esperava, o que aconteceu depois comprova as acusações. Bolsonaro conseguiu o que queria: mudou o superintendente da PF do Rio. O juiz Celso de Mello considerará que isso ficou provado? Incógnita. Celso de Mello está à beira da reforma. Quererá sair pela porta grande? Ah, os fantasmas…
O TSE poderá aceitar a impugnação da candidatura de Bolsonaro-Mourão?
Há oito ações de impugnação da lista eleitoral Bolsonaro-Mourão eleita em 2018. Pode parecer incrível que, dois anos depois, possa vir a acontecer uma anulação das eleições, mas em teoria isso é realmente possível e cabe ao Tribunal Superior Eleitoral julgar. No dia 30 de junho, o Tribunal reabriu a investigação e produção de provas no inquérito que envolve a invasão e mudança de conteúdo da página “Mulheres Unidas contra Bolsonaro” durante a campanha eleitoral de 2018.
Após o ataque dos bolsonaristas, o grupo mudou o nome para "Mulheres COM Bolsonaro #17" e passou a compartilhar mensagens de apoio ao então candidato, que fez posts a dizer: “Obrigado pela consideração, Mulheres de todo o Brasil!”, dando assim fortes indícios de que teria participado ou teria ciência do ataque.
Outra acusação, que consta de três inquéritos, é a de que Bolsonaro e Mourão se beneficiaram do envio em massa ilegal de mensagens falsas, através do WhatsApp, contra o adversário no segundo turno, Fernando Haddad (PT). Estes inquéritos, sem provas robustas, caminhavam para o arquivamento quando surgiu o inquérito movido pelo próprio STF sobre as fake news disseminadas para atacar o Tribunal. O TSE avalia se pode pode usar os documentos colhidos por este inquérito.
Parece muito difícil que qualquer destas investigações leve à anulação das eleições. Por outro lado, seria a única forma de afastar Bolsonaro sem que Mourão tomasse posse, porque a consequência da impugnação seria a convocatória de novas eleições presidenciais.
O processo das notícias falsas poderá fornecer provas que sustentem um pedido de impeachment?
O inquérito das notícias falsas (Fake news) foi iniciado a pedido do próprio Supremo, motivado pela torrente de notícias falsas difamando os seus juízes. Segundo o juiz Alexandre Moraes, que preside ao inquérito, há provas que apontam para a “real possibilidade” de uma associação criminosa ter sido formada para a disseminação das notícias falsas. Segundo o juiz Celso Mello, “há um núcleo decisório, um núcleo político, um núcleo financeiro e um núcleo técnico operacional, à semelhança das organizações criminosas, objetivando promover ataques sistemáticos e coordenados à dignidade institucional do STF e à honorabilidade dos seus juízes”.
O inquérito já levou a uma operação de buscas e apreensões contra empresários e bloggers ligados ao presidente e ao seu filho Carlos. Há ainda outro inquérito que investiga quem financiou as manifestações contra a democracia, pedindo a “intervenção militar com Bolsonaro”, o encerramento do Congresso Nacional e do STF. São inquéritos que poderiam motivar pedidos de impeachment.
Aprovação de Bolsonaro desmoronará com alta do desemprego e crise económica?
A crise económica mundial que veio no rasto da pandemia atingiu de forma particularmente dura o Brasil. Os dados de maio indicam um desemprego de 11,4% da população, ou seja, 10,9 milhões de pessoas estavam sem emprego, ainda antes de a pandemia fazer os seus efeitos. Porém, se ampliarmos estes dados às pessoas desocupadas que gostariam de ter um emprego, chegamos ao espantoso número de 36,6 milhões de pessoas desocupadas, das quais só dez milhões são oficialmente desempregadas.
O PIB do Brasil já teve retração de 1,5% no primeiro trimestre de 2020, antes ainda dos efeitos da pandemia. A expectativa é de que os dados do 2º trimestre sejam bem piores. Um estudo da Universidade Federal do Rio de Janeiro prevê que no pior cenário o PIB do ano poderá ter uma retração de 11%.
Até agora, Bolsonaro, segundo o DataFolha, tem conseguido equilibrar-se com uma aprovação de 33%, minoritária (a reprovação é de 44%), mas ainda uma base de apoio importante, dadas as circunstâncias. A sondagem mostra que a reprovação aumenta entre os mais escolarizados e de maiores rendimentos, enquanto que nas faixas de mais baixo rendimento há um aumento da aprovação. Esse aumento é maior entre os que receberam o auxílio de emergência de 600 reais.
O auxílio, recordemos, foi proposto inicialmente por Paulo Guedes no valor de 200 reais; o debate na Câmara dos Deputados elevou-o para 600(link is external), pagos durante três meses.
O governo já admite prorrogar o auxílio por mais dois meses, mas Guedes bate o pé em baixar o valor. Tudo se encaminha, assim, para uma confluência de fatores que pode explodir nos próximos meses, combinando os horrores da pandemia a que o governo não soube fazer frente com o elevadíssimo desemprego e a redução do auxílio emergencial. Conseguirá Bolsonaro manter a sua aprovação nos mesmos 30%, agora que resolveu mostrar face moderada e sem promover campanhas de ódio? Ou será assolado pelo fantasma Temer?
As ruas se encherão de novo, desta vez a gritar “Fora Bolsonaro”?
A pandemia segue o seu curso de descontrolo, mas em algum momento vai regredir, como já acontece nalguns estados muito fortemente atingidos, como o Amazonas.
E nesse momento, a política voltará a ter o seu componente decisivo: a voz das ruas. Bolsonaro já sentiu o que isso pode significar nos “panelaços” e nas manifestações de vanguarda contra ele promovidas pelas torcidas antifascistas de futebol e setores da esquerda. Viu também as manifestações pró-intervenção militar definharem à medida em que os seus financiadores eram investigados.
O dia em que a política voltar às ruas será o dia em que o maior fantasma que assola Bolsonaro deixará de ser fantasmagórico e tomará forma numa enorme festa popular. A gritar a uma só voz: “Fora!”.