Salvo engano meu (e gostaria muito de estar enganado), a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança Climática, nascida no RJ em 1992 está morta. Morreu em Madri em 2019 e o enterro foi em Glasgow. A Missa de Sétimo dia será no Egito em 2022 (COP27) e a missa de um ano será oficiada nos Emirados Árabes Unidos em 2023 (COP28), uma das capitais do petróleo
Luiz Marques, EcoDebate, 28 de novembro de 2021.
Um bom resumo sobre os “resultados” da COP26 encontra-se em Dave Borlace, em seu ótimo programa Just Have a Think, que agora virou Just Have Another Think (18 minutos).
Ele resume esses “resultados” em 8 pontos.
1. A promessa da Índia de ter 50% de sua geração de eletricidade a partir de energias renováveis até 2030 (isso não implica diminuir as emissões de GEE) e neutralidade carbono em 2070 (sim, isso mesmo, 2070).
2. The Glasgow Declaration on Forests: reduzir a zero ou diminuir significativamente o desmatamento até 2030. Assinada pelo Brasil, Indonésia e pela Rússia, entre outros. Trata-se de uma repetição da Declaração de New York de 2014: redução de 50% até 2020 e 100% em 2030. Não assinada, de resto, em 2014 pelo Brasil. Zero resultado, evidentemente. A meta agora é apoiada em US$ 19 bilhões. Mas o Dave Borlace teme que boa parte desses recursos sejam sequestrados pelo agronegócio. Além disso, a declaração de Glasgow refere-se apenas a desmatamento por corte raso. Nenhuma palavra sobre extração seletiva de madeira e degradação das florestas.
3. A declaração sobre a redução e o maior controle sobre as emissões de metano. Ocorre que China, Índia e Rússia, os grandes emissores, não assinaram essa declaração.
4. Repasse de recursos: os tais US$100 bilhões prometidos desde 2009 até 2020 e agora até 2025. Mas a promessa é que eles sejam atingidos apenas em 2023. O Borlace não menciona que o que foi até agora repassado, o foi em grande parte na forma de empréstimos. Mas mostra que o Glasgow Finance Alliance for Net Zero (GFANZ), assinado por mais de 450 corporações financeiras, é uma peça de hipocrisia. Pois 93 bancos desses 450 signatários estão na realidade financiando (empréstimos e subscrições) as petroleiras com US$ 575 bilhões, e isso apenas em 2020. Desde 2016, são US$ 3,8 trilhões.
5. Carvão: as promessas de abandoná-lo têm prazos demasiado longos; a década de 2030 e a década de 2040. Eles teriam que ser abandonados até no máximo em 2030 (mas há quem diga até 2025, Schellnhuber, por exemplo). Além disso, a China, os EUA, Índia, Japão e Austrália não assinaram esse acordo. Eles devem responder, juntos, por cerca de 80% do consumo global de carvão…
6. Carros com motor a combustão: promessa de parar de vendê-los em 2035 para os maiores mercados e até 2040 para mercados menores. Mas os dois maiores fabricantes: VW e Toyota não assinaram, além de Renault-Nissan e Hyundai. E os EUA, a Alemanha e a China não apoiaram essas promessas.
7. BOGA: Beyond Oil and Gas Alliance, assinada por 12 países. Promete terminar com a exploração do petróleo em… 2050. E nem as petroleiras, nem os países produtores de petróleo participaram dessa declaração
8. Declaração conjunta China-EUA: vazio total de propostas e metas. E nenhuma palavra sobre as emissões provenientes do sistema alimentar. Imaginem se a China iria assinar algo por aí…
O documento final da COP26 não diz palavra sobre diminuir as emissões a curto prazo. O mais incrível é que a declaração conjunta final, assinada pelos 197 países, substituiu a frase:
37. Calls upon Parties to accelerate the phasing-out of coal and subsidies for fossil fuels.
por
37. Calls upon Parties to accelerate the phasing-down of unabated coal and inefficient subsidies for fossil fuels.
O único ponto positivo é a exortação, consignada no artigo 30, para que os países revisem suas ambições a cada nova COP, e não a cada 5 anos.
Dave Borlace não se pronuncia sobre o mercado de carbono. Haverá quem se felicite com o fato de que o “Livro de Regras” desse mercado tenha sido, enfim, negociado (após 6 anos e três anos de bloqueios). O que dele advirá são novas oportunidades de negócios, não diminuição das emissões. Em todo o caso, o acordo zerou qualquer taxa nas operações de mercado de carbono destinada a prover recursos na rubrica US$ 100 bilhões para a adaptação dos países pobres. O Brasil e o Japão se aliaram para reciclar os créditos restantes do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo do Protocolo de Kyoto, e o novo Ministro do Meio Ambiente cantou vitória a respeito.
Enfim, a criação de um fundo de compensação por perdas e danos, reivindicada pelos países pobres, não foi aprovada e sua discussão, adiada para a COP27.
Conclusão: salvo engano meu (e gostaria muito de estar enganado), a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança Climática, nascida no RJ em 1992 está morta. Morreu em Madri em 2019 e o enterro foi em Glasgow. A Missa de Sétimo dia será no Egito em 2022 (COP27) e a missa de um ano será oficiada nos Emirados Árabes Unidos em 2023 (COP28), uma das capitais do petróleo, com seus quase 100 bilhões de barris de reservas provadas e com uma produção anual de petróleo desde 2015 próxima de 4 milhões de barris por dia. A COP28 será quase como um ritual macabro da vitória final dos combustíveis fósseis. Até lá, as emissões de GEE estarão bem acima dos níveis atingidos em 2019 (com ou sem variante ômicron).
No Egito e nos EAU nem mesmo protestos haverá, porque lá a repressão é um pouquinho pior que a de Glasgow. É preciso encontrar outras formas de pressão. Há iniciativas importantes, de parte dos jovens, indígenas, quilombolas, MST, da Igreja (Laudato si’) e de outros movimentos populares no Brasil e em toda parte (o Extinction Rebellion, por exemplo), mas a Universidade e os setores médios urbanos em geral continuam imersos em uma paralisia talvez sem precedentes, ao passo que, de seu lado, a extrema-direita, do Brasil ao Chile e alhures, está se mobilizando.
O fundo da questão é esse: há um abismo crescente entre a degradação acelerada de tudo (sistema climático, biosfera, poluição, democracia, igualdade socioeconômica…) e a baixíssima intensidade da resposta política a ela. Até mesmo a vitória do Doria nas prévias presidenciais do PSDB, absolutamente irrelevante, ocupa (muito) mais espaço na mídia do que o fato de que no próximo El Niño vamos provavelmente dar um salto imenso no aquecimento. Quem o diz é o James Hansen e a Makiko Sato, e é melhor não duvidar deles. A Organização Meteorológica Mundial projeta que há 40% de chances de que ao menos um ano entre 2021 e 2025 ultrapasse 1,5C na média global anual e que: “as chances aumentam com o tempo”. Há literatura projetando um aquecimento médio global irreversível de 1,5C até 2030. E 1,5C será então uma escala rápida para temperaturas ainda mais elevadas no próximo decênio.
Temos, em suma, mais uma década, se tanto, de uma sociedade organizada (capaz de aumentar sua capacidade de prover alimentos etc). O mundo não vai acabar em 2030, o que vai acabar, ou pelo menos se reduzir drasticamente, é nossa capacidade de interferir positivamente nas tendências em aceleração do sistema climático e da biosfera, notadamente na Amazônia.
Enquanto isso, vejo gente (sobretudo economistas, lamento dizê-lo) discutindo animadamente o mercado de carbono, as novas perspectivas de “sustentabilidade” do sistema de acumulação de capital vigente ou os 17 ODS, e me pergunto se haverá um limite para o autoengano.
Luiz Marques é professor livre-docente do Departamento de História do IFCH/Unicamp. Pela editora da Unicamp, publicou Giorgio Vasari, Vida de Michelangelo (1568), 2011 e Capitalismo e Colapso ambiental, 2015, 3a edição, 2018. Coordena a coleção Palavra da Arte, dedicada às fontes da historiografia artística, e participa com outros colegas do coletivo Crisálida, Crises SocioAmbientais Labor Interdisciplinar Debate & Atualização.