Duas semanas depois do quebra-quebra bolsonarista na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, Lula tomou duas iniciativas, neste sábado, 21 de janeiro, para desatar nós importantes do impasse político-militar que foi exposto no dia 8 de janeiro. De um lado, demitiu o comandante do Exército e o substituiu por um general mais alinhado com a defesa do resultado eleitoral e crítico à politização bolsonarista das forças armadas. De outro, fez sua iniciativa mais forte até agora no terreno social, visitando a Casa de Saúde do Índio (Casai), em Boa Vista, onde deu visibilidade à devastação causada pelo garimpo e ao descaso - consciente - do governo Bolsonaro para com a situação de fome e violência que golpeia os ianomâmis.
José Correa Leite, 22 de janeiro de 2023
Recordando o que discutimos em “8 de janeiro: contradições e alternativas na luta contra o fascismo”, o governo da chapa Lula-Alckmin foi constituído a partir de três vetores: a frente democrática do progressismo com os liberais para desapear Bolsonaro do poder, a integração ao menor custo possível de partes do Centrão no pacto de governabilidade para viabilizar uma maioria parlamentar estável e uma transição pactada com os militares.
O governo - e Lula em especial - se fortaleceu nestas duas últimas semanas em dois terrenos. Internamente, capitalizando o apoio, ainda que episódico, de grande parte das elites políticas, mesmo as conservadoras, assustadas com os eventos de Brasília, e da grande burguesia e parcelas de seus porta-vozes. A luta pela direção da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, a FIESP, onde os grandes setores globalizados do capital, respaldando as normas da democracia liberal e o governo eleito, se contrapõem ao pequeno empresariado conservador alinhado com Bolsonaro, parece um indicativo complementar da clivagem estabelecida. Externamente, reativando e reforçando o grau de legitimidade que Lula detém na arena internacional. Este é o ponto onde o nível de consciência expresso por Lula vem parecendo se descolar e colocar-se muito acima de quase todo o progressismo brasileiro - que carrega vieses economicistas, nacionalistas e desenvolvimentistas bastante rebaixados. Lula teceu uma teia de relações com governos e governantes dos principais países do mundo que, de um lado, lhe dão a segurança de que um golpe militar tradicional contra ele não é exequível e, de outro, recolhe uma centralidade política na agenda de defesa da Amazônia e dos povos indígenas.
Agora, Lula utiliza este acúmulo para atacar dois problemas fundamentais: o enquadramento das forças armada, o terceiro vetor da formação do governo que mencionamos acima; e trazer para o centro dos holofotes as consequências criminosas das iniciativas de Bolsonaro de extermínio dos ianomâmis e de devastação da Amazônia. Estas são suas reações calculadas mais importantes desde a reunião com os governadores em 9 de janeiro e parecem colocar o bolsonarismo ainda mais na defensiva.
A substituição do comandante do Exército
O Exército corresponde a 60% das forças militares brasileiras. Lula escolheu José Múcio para Ministro da Defesa pelo seu diálogo com integrantes das três armas (Exército, Marinha e Aeronáutica) com a ideia de realizar a passagem de governo nesta área da maneira mais suave possível. Mas ele disse enfaticamente que os militares envolvidos na tentativa de golpe de 8 de janeiro deveriam ser punidos e vinha procurando que os comandantes das três forças colaborassem com isso. Também procurava o apoio deles para isolar figuras-chaves do “partido bolsonarista” entre os militares. O general Júlio César de Arruda, comandante do Exército, estava se configurando em um importante obstáculo para isso. Ele havia impedido, no próprio dia 8, que policiais do Distrito Federal dissolvessem o acampamento de bolsonaristas radicais na frente do Quartel-General do Exército, uma iniciativa aberta de acobertamento dos bolsonaristas depois do que tinha acontecido na Esplanada dos Ministérios. Isso levou a que o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), baixasse uma decisão exigindo sua dissolução imediata.
A exclusão dos golpistas dligados às forças armadas dos cargos políticos vem avançando. Até dia 19, foram demitidos 46 militares que trabalhavam na coordenação da administração do Palácio da Alvorada ou na residência oficial e 38 militares que trabalhavam no Gabinete de Segurança Institucional da Presidência. Foram também trocados os superintendentes da Polícia Federal em 18 Estados e os chefes da Polícia Rodoviária Federal, profundamente aparelhada pelos bolsonaristas, em 26 unidades da federação. Em uma entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, Lula havia dito: "Eu perdi a confiança, simplesmente. Na hora que eu recuperar a confiança, eu volto à normalidade".
Um problema muito emergencial é o do tenente-coronel do Exército Mauro Cesar Barbosa Cid, o coronel Cid, ajudante de ordens e um dos principais assessores de Bolsonaro, que, segundo investigação de caixa 2 do STF divulgada pelo site Metropoles, sacava dinheiro dos cartões corporativos da Presidência da República e usava os valores para pagar contas da família do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e iniciativas do seu "gabinete do ódio" - do qual era um dos principais articuladores. Mauro Cid fazia a ponte entre Bolsonaro e apoiadores que organizavam a militância bolsonarista radical nas redes, como o blogueiro Allan dos Santos, que teve prisão decretada por Alexandre de Moraes e vive nos Estados Unidos. O coronel Cid era filho de um general colega de turma de Bolsonaro, Mauro Cesar Lourena Cid, e antes do ex-presidente sair do governo o nomeou para comandar o 1° BAC (Batalhão de Ações de Comandos) em Goiânia (GO), a partir de fevereiro de 2023. Este é um cargo chave no Exército já que coloca sob suas ordens uma das principais tropas de elite das forças armadas, estacionada a apenas três horas de Brasília. Lula já tinha dito que isso era inaceitável, mas o general Arruda queria manter a nomeação do tenente-coronel Cid para o 1° BAC.
Diante das resistências, Lula optou por demitir o comandante do Exército junto com dois outros oficiais alinhados com o governo Bolsonaro, cuja promoção também não era aceitável, o general Gustavo Henrique Dutra, que comandava desde abril de 2022 o Comando Militar do Planalto, e o tenente-coronel Paulo da Hora, chefe do Batalhão da Guarda Presidencial.
Para o lugar de Arruda, Lula nomeou como comandante do Exército o general Tomás Miguel Ribeiro Paiva, até então comandante militar do Sudeste. No dia 18, em uma cerimônia do Exército, Tomás Miguel defendeu que o resultado das urnas eletrônicas deve ser respeitado e afirmou que militares devem respaldar a alternância de governos e não expor opiniões políticas. Falando na noite de sábado, o ministro da Defesa, José Múcio disse à imprensa: "Evidentemente que depois desses últimos episódios, a questão dos acampamentos e a questão do dia 8 de janeiro, as relações, principalmente no Comando do Exército, sofreram uma fratura no nível de confiança e nós achávamos que nós precisávamos estancar isso logo de início até pra que nós pudéssemos superar esse episódio". Nada garante que o general Tomás Paiva conseguirá desbolsonarizar o alto-comando das forças armadas, mas Lula fez o que deveria ter feito, aparentemente com a melhor alternativa que tinha à disposição.
O genocídio dos ianomâmis
No mesmo dia em que mudava o comandante do Exército, Lula viajava para Boa Vista, em Roraima, onde constatou as consequências chocantes da situação de saúde e da grave crise humanitária instalada na Terra Indígena Yanomami. Aí, pelo menos 570 crianças menores de cinco anos morreram por falta de assistência médica no governo Bolsonaro. Lula levou consigo para Boa Vista o núcleo social do seu governo: a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, a presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana, a ministra da Saúde, Nísia Trindade Lima, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, e o ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, Wellington Dias.
Como destaca o site Sumaúma, que trouxe a luz o caso, a situação "no território Yanomami se agravou nos últimos anos, durante o governo do extremista de direita Jair Bolsonaro. O ex-presidente, que sempre se pronunciou a favor do garimpo em terras indígenas, enfraqueceu os órgãos de fiscalização e de auxílio aos indígenas, como a Funai, o que permitiu que milhares de garimpeiros invadissem a área protegida. Em algumas das 350 aldeias do território, onde vivem quase 30 mil indígenas, as atividades criminosas estão próximas das áreas onde eles vivem, o que afetou a soberania alimentar dos indígenas. Os animais de caça fugiram e os peixes, assim como a água, foram contaminados pelo mercúrio e outros produtos tóxicos usados pelos garimpeiros para separar o ouro. Com a chegada da multidão de criminosos, a malária, transmitida por mosquitos que se contaminam ao picar pessoas contaminadas, explodiu na região: os casos saltaram de 2.928, em 2014, para 20.394, em 2021 (...). Em algumas regiões do território, o garimpo também dominou os pólos de saúde, onde os indígenas recebiam atendimento, expulsando médicos e enfermeiros”. Agora, o “Ministério da Saúde publicou uma portaria que declara emergência em saúde pública de importância nacional no território (...). Haverá uma sala de situação com especialistas, e a Força Nacional do Sistema Único de Saúde (SUS), com médicos e enfermeiros, será enviada à região”. A reportagem de Sumaúma, “Não estamos conseguindo contar os corpos”, é uma contundente denúncia do caráter criminoso das políticas de Bolsonaro.
O ministro da Justiça, Flavio Dino, afirmou que a Polícia Federal vai abrir inquérito apurando o crime de genocídio. Em agosto de 2021, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) protocolou uma denúncia de Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional em Haia em que acusa o presidente de agir “de forma deliberada para exterminar etnias” e estabelecer um “Brasil sem indígenas”. “A política anti-indígena em curso no Brasil hoje é dolosa. São atos articulados, praticados de modo consistente durante os últimos dois anos, orientados pelo claro propósito da produção de uma nação brasileira sem indígenas, a ser atingida com a destruição desses povos, seja pela morte das pessoas por doença ou por homicídio, seja pela aniquilação de sua cultura, resultante de um processo de assimilação”, afirmava a Apib. Diversas outras acusações de crimes contra a humanidade foram protocoladas no Tribunal de Haia contra Bolsonaro, pela política anti-indígena, anti-ambiental e anti-vacinas. A investigação desencadeada agora pelo Ministério da Justiça trabalhará em um terreno fértil.
Jamil Chade, um importante correspondente internacional brasileiro, disse que “em Roraima, Lula faz a primeira viagem de política externa” de seu governo. Envia a mensagem mundial de que a era de descaso em relação à Amazônia em geral e aos ianomâmis em especial está encerrada. Também reativa a acusação do genocídio contra Bolsonaro, bastante presente na opinião pública progressista da Europa. E ainda dá uma resposta aos temerosos com a questão da soberania do território brasileiro ao recolocar o peso do estado para fazer cumprir as leis e direitos socio-ambientais. Além disso, Damares Alves, a pastora e ex-ministra da "mulher, família e direitos humanos", bastião do reacionarismo e senadora eleita pelo Distrito Federal, também passa a ser colocada como alvo de investigações que vão de descaso a genocídio contra os ianomâmis.
O punição dos envolvidos na tentativa de golpe de 8 de fevereiro e o desmonte da narrativa bolsonarista de conjunto são duas das mais importantes tarefas imediatas de democratização da sociedade brasileira. As decisões tomadas ontem, 21 de janeiro, são importantes nesse caminho, colocando Bolsonaro em uma defensiva ainda maior e criando um vácuo político que está sendo ocupado pelo novo governo. Quanto mais se avançar nestas tarefas, mais rapidamente a esquerda socialista terá espaço para demandar medidas mais avançadas do governo de frente democrática contra Bolsonaro encabeçado por Lula
22 de janeiro de 2023