José Correa Leite, 22 de janeiro de 2021
A imprensa brasileira e mundial chamou a atenção para a imensa tragédia em curso na Amazônia brasileira e especialmente em Manaus, a maior metrópole da região. Ela é resultado de dez meses de política criminal do governo Bolsonaro que busca uma imaginária “imunidade de rebanho”.
Como afirma a investigação recém-divulgada pelo Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário (CEPEDISA) da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo (USP) e a Conectas Direitos Humanos, trata-se do resultado da aplicação de “uma estratégia institucional de propagação do vírus, promovida pelo Governo brasileiro sob a liderança da Presidência da República”. Já são 215 mil mortes e este imenso caldo de cultura virológico começa a produzir suas consequências.
Agora, sem a contenção em países centrais do sistema internacional (como EUA, Brasil, Índia e Inglaterra, todos com governantes de extrema direita, que fizeram pouco caso dos conselhos da comunidade científica), a pandemia escala em todo o mundo por uma combinação de fadiga das pessoas com as medidas de isolamento, pressão econômica de empresários míopes e o surgimento de variantes mais contagiosas, isto é, mas facilmente transmissíveis. Seguindo quase que um manual darwinista de evolução convergente, elas surgiram na Inglaterra, África do Sul e Brasil - até agora, embora novas mutações devam surgir em outros países. As novas variantes fazem com que as analogias com a primeira (ou segunda) onda não sejam pertinentes. É muito importante romper o senso comum que foi formado sobre a pandemia: a situação agora é muito mais dramática do que há dez meses e mais pessoas tendem a morrer nos próximos meses do que no passado. O sentimento subjetivo de desgaste ou de adaptação à situação é irrelevante para esta afirmação: a situação está pior e vai piorar e não melhorar!
Há cada vez mais indicações de que a mutação localizada em Manaus seja também mais grave, afetando com maior virulência gente mais jovem ou ainda que ela esteja reinfectando as pessoas que já tiveram a doença (e portanto que ela vença mais facilmente o sistema imunológico). Isso ainda não tem comprovação epidemiológica (isto é, não se acumularam casos que tornem isso uma evidência estatística inquestionável). Mas esta é uma observação levantada com cada vez mais força pelos médicos que atendem nos serviços de emergência da região. E não há hipótese da mutação de Manaus já não estar espalhada pelo resto do país. Ou seja, na ausência de medidas draconianas de contenção do vírus, Manaus é hoje o Brasil de amanhã.
Ao contrário do que a mídia e os políticos induzem a população a pensar, a vacina contra a covid-19 (todas elas) não tem relação com a transmissibilidade do vírus em todo o próximo período - por isso, quero dizer o ano de 2021. A vacina foi concebida para predispor o corpo a combater o vírus se ele for infectado, evitando que a pessoa adoeça com gravidade, mas a pessoa vacinada e infectada transmite o vírus. Isso significa que somente se a imensa maioria da população estiver vacinada (pelo menos 70% como afirmou ontem Anthony Fauci, responsável pelo CDC dos EUA, seguindo os manuais epidemiológicos), a pandemia pode refluir. Mas lembremos que esse patamar já foi atingido em Manaus e a pandemia não apenas não recuou como se agravou! O conceito de imunidade de rebanho foi concebido para o desenvolvimento de vacinas de longa imunidade (e este não parece ser o caso da covid-19) e está sendo utilizado de maneira equivocada desde o início da pandemia! Com a mutação, o vírus foge ao comportamento anterior e esta é a origem do atual pânico dos gestores de políticas de saúde.
Os meses iniciais da vacinação (algo que vai no mínimo até o meio do ano, dependendo do país - talvez mais) vão ser aqueles que apresentarão o maior número de mortes por covid, como já estamos vendo na Europa e nos EUA. A Alemanha, apesar da fortíssima oposição interna de setores do empresariado, decretou um lockdown total até 15 de fevereiro.
A mídia e os políticos têm feito um grave desserviço à luta contra o covid-19, ao transmitir uma ideia de que a vacina estará levando à superação a curto e médio prazo da pandemia. Isso é pensamento mágico: a vacina é importante - e afirmar isso é central na luta contra Bolsonaro no Brasil -, mas não eliminará a covid-19. Ela sofrerá mutações que tenderão a abrandá-la a longo prazo - os epidemiologistas especulam, seguindo modelos anteriores, que em décadas ela será como uma gripe. Mas quantos milhões de pessoas morrerão até lá? Isso não é um processo linear e certamente incluirá o surgimento e difusão de novas variantes que estimulem a reinfecção (esta é a lógica da evolução darwinista) e mesmo que possam ser mais letais. Isso já aconteceu no passado, fugindo do otimismo dos modelos de manuais.
O Estados Unidos de Biden, que ainda é o país mais poderoso do mundo, quer, em um otimista esforço de guerra, vacinar 100 milhões de pessoas em 100 dias. No Brasil, apenas a vacinação inicial, cobrindo os grupos de risco formalmente definidos pelo Plano Nacional de Imunização, deve abarcar 68,8 dos mais de 211 milhões de habitantes do país, segundo o censo de 2019. São mais de 137 milhões de doses da vacina - duas doses por pessoa - para evitar o aprofundamento da tragédia humana, o que muito dificilmente será alcançado no ano de 2021. No caso do Brasil, se vacinarmos 2 milhões de pessoas por semana, serão, em um ano, 48 milhões de pessoas vacinadas, menos de 25% da população - sem levar em conta mutações ou reinfecções. Essas metas poderiam ser superadas, mas teríamos que ter, para isso, vacinas disponíveis e um governo com vontade férrea de conduzir esta campanha.
Na medida em que o otimismo midiático inicial em relação à entrega das vacinas reflui, aumentam as notícias de que um horizonte de normalidade se torna inatingível no ano de 2021. O Carnaval do Rio de Janeiro adiado para o meio do ano foi definitivamente cancelado; a Olimpíada de Tóquio está em questão; as fronteiras nacionais voltam a se fechar; o presidente Biden afirma que os EUA atingirão meio milhão de mortos ainda em fevereiro (o país já tem hoje mais mortos do que suas vítimas da Segunda Guerra Mundial). As preocupações com as mutações crescem para nos lembrar que estávamos em uma corrida armamentista contra o vírus e sofremos uma derrota decisiva em 2020; a vacina não garante a vitória. O horizonte é hoje, portanto, sombrio.
Qualquer ideia de retomada da “normalidade”, como vem sendo propagandeada por Bolsonaro e Dória, deve ser combatida e descartada pelos setores populares. Fazer eco a este discurso é irresponsabilidade! O que está hoje em jogo são demandas como a vacinação universal, ampliação da garantia de renda, defesa do SUS, acesso à educação remota e a banda larga para todos, defesa do meio-ambiente e derrubada de Bolsonaro, Pazuello e dos responsáveis por essa imensa tragédia, que infelizmente continuará pelo menos por todo o primeiro semestre. Os protestos de rua indispensáveis - que podem salvar a vida de centenas de milhares de pessoas se derrubarem aqueles que estão encaminhando o genocídio em curso - sempre comportarão riscos e devem ser feitos com imenso cuidado e responsabilidade, sempre ao ar livre (jamais em ambientes internos), com máscara e rígido distanciamento social, sem envolver grupos de risco.
A recuperação de um horizonte para o Brasil passa por um confronto não apenas político com o projeto suicidário vigente - uma luta nacional e internacional -, mas também moral, com a solidariedade e a defesa da vida conseguindo se sobrepor ao egoísmo e à pulsão de morte que hoje prevalece em importantes setores da sociedade. A pandemia é o campo desta batalha!