Amazônia registra novo recorde de destruição. Dado foi omitido pelo governo durante Conferência do Clima em Glasgow. À DW Brasil, ambientalista diz que não há chance de mudança de rumo com Bolsonaro no poder.
Nádia Pontes entrevista Marcio Astrini, Deutsche Welle Brasil, 19 de novembro de 2021
O desmatamento na Amazônia entre agosto de 2020 e julho de 2021 atingiu 13.235 km², segundo números divulgados nesta quinta-feira (18/11) pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), um número superior a duas vezes a área do Distrito Federal. Foi a maior taxa desmatamento desde 2006 e o número representa uma alta de 22% em relação ao período anterior.
O governo já sabia dessa alta recorde desde pelo menos 27 de outubro, mas o número foi omitido pela delegação brasileira que compareceu à Conferência do Clima de Glasgow (COP26), encerrada no último sábado (13/11).
"O que a gente tem é um fato grave. Não é só um ministro do Meio Ambiente que foi à COP e não revelou. O ministro declarou que fez reuniões com outros 24 ministros de outros países. Ele fez isso sabendo o dado e não revelou. Ele mentiu em 24 reuniões", comenta em entrevista à DW Brasil Márcio Astrini, secretário-executivo da rede de organizações da sociedade civil Observatório do Clima, sobre a postura do ministro Joaquim Leite.
Com credibilidade já abalada no cenário internacional por causa da sua política antiambiental, a governo de Jair Bolsonaro corre o risco de sofrer ainda mais pressão no exterior, avalia Astrini. Até o momento, nenhum pacote de ações foi anunciado pela administração para reverter o cenário.
"Para resolver o problema, a condição ímpar é a mudança do governo. Não existe a menor possiblidade de ter esperança com Bolsonaro na presidência da República”, pontua Astrini.
DW Brasil: Os sinais que vinham do campo neste ano eram, de alguma forma, diferentes dos anos anteriores e demonstravam que a taxa de desmatamento atingiria um nível tão alto?
Márcio Astrini: A mudança muito substancial é a tranquilidade com a qual o crime ambiental trabalha hoje. Eles estão realmente dizendo com todas as letras o seguinte: "Vocês, ambientalistas, fiscais do Ibama, quem trabalha com a lei, vocês perderam. A gente ganhou. É a gente que comanda".
Eles estão se sentindo abrigados pelo governo federal. Eles nunca tiveram tamanho empoderamento. Mesmo quando o desmatamento era maior, havia um receio por parte de quem praticava o crime da fiscalização, um medo de ser preso ou multado. Hoje não há o menor pudor.
Nós temos o nosso pessoal que vai pra campo, eles conversam com madeireiros que dizem que acabou esse negócio de multa. Eles dizem que agora eles têm o governo do lado deles.
No último dia da COP26, em Glasgow, o ministro do Meio Ambiente Joaquim Leite foi confrontado com os dados de desmatamento de outubro, que registraram recorde na série histórica. Leite disse não conhecer os números. Por outro lado, a nota divulgada nesta quinta-feira com os dados anuais do sistema Prodes tem data de 27 de outubro. O que isso diz sobre o governo?
Faz 22 dias que os dados estavam com o governo. Faz 22 dias que há uma nota escrita com os números por estado, com o valor do desmatamento e uma explicação. Talvez os números estivessem prontos, inclusive, antes do dia 27 de outubro, que é data da nota redigida do ministério.
Não tem como um ministro, um presidente da República, não saber desses números. Eles são estratégicos. A divulgação deles impacta internacionalmente as relações brasileiras. São números com impactos nos governos de estado.
Existe um ritual de tratamento desses números que é: o Inpe finaliza o cálculo, ele é repassado para o ministro de Ciência e Tecnologia e então o governo toma conhecimento como um todo desse dado - ministros da Comunicação, do Meio Ambiente, gabinete da Presidência da República.
O governo começa a coordenar a ação de divulgação, porque ela tem impacto internacional, nos estados. É quando o governo se prepara para dar respostas para a imprensa. Quando os números aumentam, ele já anuncia quais serão as ações pra reverter o cenário.
Esse número era conhecido. O que a gente tem é um fato grave. Não é só um ministro do Meio Ambiente que foi à COP e não revelou. O ministro declarou que fez reuniões com outros 24 ministros de outros países. Ele fez isso sabendo o dado e não revelou. Ele mentiu em 24 reuniões. O presidente da República foi para o G20 também sabendo dos dados de desmatamento. Isso é gravíssimo.
Eu estou conversando com embaixadores de outros países pra medir o impacto disso. Eu não sei se tinha alguém que ainda acreditasse no governo Bolsonaro, mas, caso houvesse, isso acabou agora.
O Brasil, aliás, firmou na COP o compromisso de acabar com o desmatamento no país até 2030 junto com uma centena de países. O dado atual de destruição da Amazônia enfraquece a capacidade do país de honrar essa meta?
Mostra na verdade a covardia. É um governo de covardes. Porque eles sabiam dos números e não são capazes de lidar com os próprios problemas que eles geram, que são consequências das políticas que eles implementam.
O ministro, na quarta-feira passada, fez um discurso na plenária geral da COP em que ele fala que o governo está controlando o desmatamento, diz que estão implementando ações e cita números de contratações de fiscais do Ibama e de orçamento. E não fala dos números de desmatamento.
Quer dizer: ele propositalmente omite. Eu nem sei se isso tem alguma previsão legal dentro do país, pois o Leite era chefe da delegação brasileira. Ele não falava só como ministro, ele falava em nome do Brasil num fórum das Nações Unidas. É muito escandaloso.
As iniciativas do Conselho da Amazônia, coordenado pelo vice-presidente Hamilton Mourão, também não deram resultado.
Em agosto, quando os números deram uma diminuída, cerca de 30%, houve uma nota do Ministério do Meio Ambiente, o Mourão deu uma entrevista, foi um carnaval. Agora ninguém é o dono do problema.
Mourão, inclusive, é do Conselho da Amazônia, mas ele não manda no Icmbio, não escreve legislação, não exonera ou nomeia ninguém. Ele é vice-presidente, ele não tem poder executivo dentro do governo. Mas ele não deve ser isentado de responsabilidade.
É um governo covarde, que não assume os problemas que gera, é uma depreciação do governo brasileiro.
O governo tentou contratar os serviços privados da Planet para monitorar a Amazônia. Você ainda vê algum risco de uma empresa substituir o trabalho que é feito há mais de 30 anos pelo Inpe, um instituto público?
Acho que é só propaganda. O Inpe provê todos os dados e é uma referência global de monitoramento de florestas. Não há nada que o Inpe vá fazer que alguma outra agência, seja a Planet, seja o Elon Musk, possa fazer melhor.
Para o que o governo precisa fazer, que é ter dados sobre alertas de desmatamento e traçar políticas de ação, os dados do Inpe são mais que suficientes. O problema do governo não é a falta de dado, mas a falta de ação.
Fizemos um levantamento pelo MapBiomas e chegamos a um número impressionante: o governo toma ação em cima de apenas 2% dos alertas de desmatamento que ele recebe.
O nível atual registrado leva ao país a um cenário visto pela última vez em 2006, quando o Brasil estava numa trajetória de redução do desmatamento que o fez ganhar destaque internacional. O que o levantamento de 2021 mostra em relação ao retrocesso de políticas ambientais?
É um retrocesso de 15 anos. Acho que a reação internacional será muito grande em relação aos números atuais. A Europa está colocando em consulta pública aquela lei antidesmatamento para as importações. A mesma legislação também está sendo analisada nos Estados Unidos. E a China fez uma declaração durante a conferência do clima dizendo que vão inserir regras antidesmatamento. Acho que esses números que saem agora do Brasil vão acabar impulsionando esses debates.
Para resolver o problema, a condição ímpar é a mudança do governo. Não existe a menor possiblidade de ter esperança com Bolsonaro na presidência da República.
O governo sabia desse número há 22 dias. Qual é o pacote de medidas anunciado para reduzir o desmatamento? Nenhum. Esse número, para Bolsonaro não é ruim. Para a base eleitoral dele, para o que ele prega de política, é um número bom. Ele está, na verdade, prestando serviço, entregando o plano que ele tem com sua base eleitoral.
O interesse do Bolsonaro não é colocar o Brasil no mundo, o interesse é ter sua base alimentada para a reeleição, mesmo que isso custe a economia do país. Nós só vamos mudar os números do desmatamento quando Bolsonaro não for presidente da República.
A primeira coisa que o próximo presidente precisa fazer é um choque de gestão na área ambiental. Ele vai ter que fazer em um mês uma quantidade enorme de atos, recolocar o Fundo Amazônia pra funcionar, chamar o Ibama e divulgar que o crime será reprimido, fazer um sistema de inteligência com a Polícia Federal, recobrar multas ambientais - que está paralisado desde outubro de 2019.
Esse choque de gestão vai mostrar para o mundo que o Brasil está sob nova direção e traçando de forma diferente a agenda de clima. Talvez será necessário pedir ajuda internacional para que a gente vá diminuindo os números do desmatamento.
O empoderamento que agora o crime tem na Amazônia vai continuar por muito tempo. Serão anos de embate entre a lei e o crime na floresta pra gente começar a ver a redução.