Entrevista concedida ao Ideias de Esquerda, reproduzida na íntegra.
Entrevistamos Marco Gonsales, que atualmente faz pós-doutorado em Sociologia do Trabalho no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Faz também parte do grupo de investigação Mundo do Trabalho e suas Metamorfoses coordenado pelo Prof. Dr. Ricardo Antunes. Estuda o movimento de resistência dos motoristas de caronas e entregadores no Brasil e em outros países.
1) Na última semana a questão da redução da jornada de trabalho tem sido tema de intenso debate nos locais de trabalho, na imprensa e nas redes sociais, em particular o fim da escala 6x1 - jornada que faz com que os trabalhadores tenham apenas 1 dia de folga. Suas pesquisas são voltadas para análise da reestruturação produtiva contemporânea. Como podemos pensar a chamada indústria 4.0 e sua relação com a disputa pelo tempo de trabalho?
Por enquanto, as principais reestruturações produtivas no mundo do trabalho, fruto de uma gama de inovações tecnológicas que se convencionou chamar de Indústria 4.0 ou Quarta Revolução Industrial, têm impactado principalmente os setores de serviços, diferentemente das grandes transformações do século XX, como o fordismo e o toyotismo.
No entanto, como sabemos, o setor de serviços não responde às novas tecnologias em termos de produtividade da mesma forma que a indústria. Boa parte das atividades típicas desse setor tende a ser menos suscetível à automação, e, portanto, substituir trabalhadores por máquinas e/ou alterar as combinações sociais do trabalho acaba sendo um processo extremamente custoso e com ganhos produtivos limitados — o que alguns autores chamam de “doença dos custos”. Basta fazer uma rápida busca na internet para constatar a dificuldade que empresas como Amazon, Uber, iFood, Deliveroo, OpenAI, entre tantas outras, têm enfrentado para se tornarem lucrativas.
Como sabemos, o problema não reside na tecnologia em si, mas na forma como os capitalistas a utilizam para aumentar a acumulação de capital e, consequentemente, ampliar a desigualdade social. Dessa forma, não é novidade que, no capitalismo, o desenvolvimento tecnológico caminha junto à degradação das condições de trabalho. No entanto, as transformações produtivas decorrentes da Indústria 4.0 têm se mostrado ainda mais dramáticas para a classe trabalhadora.
Dada a maior dificuldade em produzir mais-valor relativo, o “capitalista dos serviços” torna-se ainda mais dependente da mais-valia absoluta - da necessidade de prolongar a jornada de trabalho. Mesmo com a correlação de forças favorável, o capital enfrenta dificuldades crescentes para se reproduzir, o que o obriga a intensificar os ataques à classe trabalhadora.
Nesse sentido, por onde avançam as transformações da Indústria 4.0, avançam também os movimentos de resistência e conscientização. Seguindo o nosso raciocínio, ao depender ainda mais da exploração do trabalhador e da trabalhadora, o capitalismo que se estrutura será um capitalismo de ainda mais conflitos entre capital e trabalho. Veja o caso da uberização do trabalho. Outrora autônomos e empregados de pequenas empresas (motoboys/taxistas), agora, entregadores e motoristas são subordinados ao grande Capital - empresas multinacionais como a Uber, Deliveroo, Ifood, Didi Chuxing - e avançam rumo à cena principal da luta de classes, protagonizando importantes movimentos de resistência por todo o mundo. Apenas no setor de entregas de alimentos, a Universidade de Leeds registrou, entre 2017 e 2020, 527 greves e protestos organizados por entregadores em 36 países [1]. No Brasil, o Breque dos Apps se tornou um dos maiores movimentos grevistas deste início de século.
2) A esse respeito, como podemos analisar os processos de resistência dos setores tradicionais (CLT, como estamos vendo na discussão da jornada) e novos do proletariado de serviços e uberizados? Quais as novas dinâmicas de luta e resistência no mundo do trabalho contemporâneo?
Desde dos anos 1990, Ricardo Antunes [2] tem chamado a atenção para o crescimento do proletariado de serviços e, mais recentemente, para o infoproletariado e o trabalhador uberizado [3]. Para ampliar o nosso conhecimento sobre esses segmentos da classe trabalhadora, há cinco anos, estamos estudando os movimentos de resistência dos entregadores e motoristas uberizados nos estados brasileiros e em algumas localidades internacionais, como a Espanha, a Califórnia e o Reino Unido.
As lutas dos trabalhadores uberizados são movimentos de resistência típicos do capitalismo: trabalhadores assalariados apreendem a condição de exploração, se identificam, se comunicam, se solidarizam, se organizam, resistem, promovem greves, formam associações e sindicatos, fazem piquetes, constroem mecanismos de enfrentamento etc. Nesse sentido, se há uma nova morfologia do trabalho - um novo proletariado -, há também uma nova morfologia de resistência, que pode indicar novos caminhos para o êxito da luta da classe trabalhadora.
Por exemplo, o Breque dos Apps, assim como outros movimentos dos entregadores de outros países, de maneira geral, guardadas as devidas especificidades locais, caracteriza-se principalmente por ações diretas, em grande medida, espontâneas, motivadas principalmente por questões relacionadas aos salários, pela capacidade da articulação remota através das redes sociais, pelo protagonismo das associações, dos coletivos, dos grupos virtuais e das novas lideranças, pelos conflitos, mas também pelas aproximações com os sindicatos tradicionais, pela capacidade de articulação internacional e pela habilidade em conquistar mentes e corações dos consumidores [4] [5].
3) A classe trabalhadora contemporânea se encontra fragmentada, de forma genérica, entre efetivos/formais e terceirizados/precarizados/uberizados. Como pensar os dilemas da resistência do trabalho através desse diagnóstico, partindo da sua pesquisa e experiência com a uberização? E quais os caminhos para se pensar a unificação da classe?
Ficando em apenas uma das especificidades citadas acima, as relações entre sindicatos e associações/coletivos/influenciadores podem significar um processo de revitalização e unificação da resistência da classe trabalhadora como um todo. Ao se aproximarem, os novos sujeitos coletivos de luta e os sindicatos podem se beneficiar mutuamente. Como instituição, o sindicato possui estrutura, pessoas qualificadas e experiência em negociações coletivas, em ações jurídicas e nos diálogos sociais. Por outro lado, as associações, coletivos e influenciadores trazem novos repertórios de luta, como as virtuais e gamificadas, a legitimidade e a capacidade de articulação das bases, em especial através das novas tecnologias da informação.
Vejamos um exemplo do Reino Unido: o sindicato IWGB, fundado em 2012 por faxineiros imigrantes latino-americanos precarizados, enfrentou inúmeras dificuldades na relação com as lideranças dos motoristas uberizados. Posteriormente, adotou uma postura mais flexível em relação ao movimento de resistência dos entregadores, facilitando a sindicalização e incorporando as principais pautas desses trabalhadores. Como resultado, Alex Marshall, uma das principais lideranças da categoria no país, tornou-se presidente do sindicato. Essa aproximação entre trabalhadores precarizados e uberizados fortaleceu tanto o IWGB quanto o movimento dos entregadores.
Nesse sentido, quanto maior for a capacidade da classe trabalhadora de se compreender e se articular entre seus diversos setores e transversalidades — homens e mulheres; jovens e idosos; nacionais e imigrantes; brancos, negros e indígenas; qualificados e não qualificados; trabalhadores estáveis e precários; formais e informais; empregados e desempregados, entre tantos outros exemplos —, maior será sua força de resistência e, quem sabe, sua capacidade de organizar um novo mundo [6].
Outra importante dinâmica de unificação entre trabalhadores tem sido a capacidade de motoristas e entregadores uberizados se articularem além das fronteiras nacionais. Por meio das novas tecnologias da informação, especialmente das redes sociais, esses trabalhadores — em sua maioria com pouca experiência sindical — têm conseguido estabelecer conexões e se organizar internacionalmente. Um exemplo disso foi a primeira greve dos trabalhadores uberizados, articulada e organizada por motoristas dos Estados Unidos e do Reino Unido, que interromperam suas atividades simultaneamente no dia 22 de outubro de 2014.
No Brasil, o Breque dos Apps, realizado no dia 1º de julho de 2020, além de ter sido o primeiro movimento paredista nacional, fora também a primeira participação da categoria em uma manifestação de dimensão internacional. Os “repartidores” de países como Argentina, México, Peru, Equador, Guatemala, Costa Rica e Espanha, no mesmo dia do Breque ocorrido no Brasil, também brecaram as suas motos e bicicletas por melhores condições de trabalho [7].
4) Por fim, qual a importância que você vê no atual debate sobre o fim da escala 6x1 e qual sua potencialidade para a classe trabalhadora?
Para além de representar uma questão humanitária urgente, o movimento pelo fim da escala 6x1 destaca a relevância de pautas que possam impactar de forma positiva e imediata a vida da classe trabalhadora e que, ao mesmo tempo, se tornam importantes instrumentos de conscientização de classe. Em tempos de glorificação do empresariado, a luta pelo fim da escala 6 x 1 logra pautar uma demanda capaz de “conversar” com toda a classe trabalhadora, deixando o “o rei nú”, ao posicionar para o centro do tabuleiro o conflito capital-trabalho. Como nos lembram Engels e Marx [8]: “Os indivíduos isolados apenas formam uma classe na medida em que tem que manter uma luta em comum com outra classe. No restante, eles mesmos se defrontam uns com os outros na concorrência ”.
A necessidade por mais tempo socialmente livre é tão premente que o próprio capital transforma essa demanda em moeda de troca, oferecendo trabalhos desprovidos de direitos, mas supostamente mais flexíveis em termos de horário, como ocorre no caso da uberização. Basta acessar qualquer site de empresas como Uber ou iFood para encontrar slogans como: “Faça o seu próprio horário”, “Dirija quando quiser e ganhe de acordo com suas necessidades” e “Você no controle do seu tempo”, dentre outros.
É evidente que, como inúmeras pesquisas e depoimentos demonstram, o trabalhador uberizado enfrenta jornadas muito mais longas do que seus congêneres celetistas. No entanto, a possibilidade de exercer algum controle sobre seu tempo, ainda que de forma limitada, atrai muitos desses trabalhadores. Embora não seja o único motivo que leva as pessoas a optarem pelo trabalho uberizado, esse aspecto é sintomático de nossos tempos: o explorador, aquele com maior interesse em intensificar e prolongar a jornada de trabalho, agora se apresenta como salvador.
Em outras palavras, quando motoristas e entregadores uberizados rejeitam a possibilidade de se tornarem celetistas, estão refutando empregos que seguem o modelo de escala 6x1, os quais, além de privar o trabalhador de seu tempo socialmente livre, frequentemente vêm acompanhados de um "combo" de condições degradantes: patrões assediadores, instabilidade, ambientes insalubres, salários irrisórios e outros fatores igualmente degradantes.
Assim como a luta dos motoristas e entregadores uberizados tem sido protagonizada principalmente por associações, coletivos e influenciadores digitais, o movimento Vida Além do Trabalho (VAT), principal responsável pela articulação da luta pelo fim da escala 6x1, também surgiu por meio de um influenciador digital, Rick Azevedo. Mesmo com a desconfiança e críticas de alguns sindicalistas, há sinais de articulação entre os novos e os tradicionais protagonistas de luta. Um exemplo disso é o caso dos trabalhadores da Pepsi de Itaquera e Sorocaba, que, organizados pelo sindicato Stilasp, aproveitaram o mote da campanha do VAT e entraram em greve pelo fim da escala 6x1. Assim como no movimento de resistência dos trabalhadores uberizados, mencionado anteriormente, a aproximação e o entendimento entre associações, coletivos, influenciadores digitais e sindicatos pode representar um salto qualitativo na capacidade de luta da classe trabalhadora como um todo.
Em suma, o VAT nos enche de esperança porque é um movimento classista, diretamente vinculado ao trabalho, propositivo, de imediato impacto à classe trabalhadora, conscientizador e inter-relacionado às lutas antirracistas, feministas e antilgbtfóbicas.
Marco Gonsales é militante da Insurgência em São Paulo.
Originalmente publicado em: https://esquerdadiario.com.br/Marco-Gonsales-Se-ha-uma-nova-morfologia-de-trabalho-ha-tambem-de-resistencia