Começa nesta quarta-feira (30) no STF o julgamento mais importante do século para os povos indígenas e suas terras. Entenda neste artigo por que a tese do marco temporal é inaceitável. Vamos juntos defender os direitos indígenas.
Carlos Marés e Carolina Marçal, Greenpeace, 30 de junho de 2021
A relevância dos direitos originários territoriais dos povos indígenas para as estratégias globais de mitigação e adaptação das mudanças climáticas é hoje reconhecida mundialmente. No Brasil, a Constituição, em seu artigo 231, reconhece o direito originário dos povos indígenas. Acolhe e admite um direito que existe antes mesmo de o Brasil se constituir como Estado. Basta que as terras sejam tradicionalmente ocupadas para que, sobre elas, os povos tenham direitos originários. Isso significa que não há ato constitutivo de terra indígena, ela é e se presume que sempre foi indígena.
Essa é uma das muitas normativas que têm como foco a proteção dos direitos dos povos indígenas de continuar a ser indígenas e de manter-se como coletividade, como povo. Esse direito coletivo de povo corresponde, no plano individual, ao direito à vida; é um direito fundamental e inerente à existência. Garantir esse direito, com toda a sua carga cultural e espiritual, requer a existência de um território onde possam habitar em caráter permanente, como condição para sua reprodução cultural, social e espiritual. Impor uma data para que esse direito exista ou deixe de existir, chamada “marco temporal”, é, portanto, legitimar uma política genocida.
O Supremo Tribunal Federal (STF) realizará em breve o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, que trata da reintegração de posse de área da Terra Indígena (TI) Ibirama/La Klãnõ, do povo xoclengue, a pedido do Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA). Ao determinar que esse caso terá repercussão geral, o STF definiu que será decisivo para o futuro dos povos indígenas do Brasil.
O que está em disputa é a tese do “marco temporal”, que defende, de maneira equivocada, que os direitos indígenas começaram com a Constituição — em 5 de outubro de 1988 — e que, portanto, as demarcações só valeriam para as terras que estivessem sob posse dos povos naquela data ou sob deflagrada disputa.
Essa tese despreza o direito originário dos povos indígenas a seus territórios. Ignora também um passado colonial que se arrasta dissimuladamente até hoje, marcado por uma disputa assimétrica que reiteradamente resulta na violação e na expulsão dos povos de seus territórios ancestrais. Para muitos deles, era impossível — sob pena de morte — estar fisicamente presente em seus territórios em 1988; para outros tantos, esse é um “pré-requisito” impraticável ainda nos dias atuais.
O pedido feito pelo IMA manifesta uma falsa dicotomia. Não existe escolha entre direitos territoriais de povos indígenas e conservação da natureza. Eles são intrínsecos. A coexistência com a natureza e os valores de conservação são inerentes à existência dos povos, ao reproduzirem seu modo de vida e cultura.
Além da proteção física que os povos indígenas asseguram a seus territórios, o reconhecimento legal de seus direitos territoriais garante maior segurança jurídica para a conservação da biodiversidade. As terras indígenas são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas imprescritíveis, além de serem de usufruto exclusivo dos povos indígenas. As unidades de conservação — que também são ferramentas importantes de conservação da natureza — são mais frágeis juridicamente, uma vez que passíveis de desafetação (redução nos limites) por lei.
As políticas de conservação que visam a proteger a natureza e, invariavelmente, contam com a existência e o manejo dos povos indígenas precisam garantir que se alinhem às suas motivações e governança. Os povos indígenas são guardiões por excelência da natureza, sem a qual não será possível vencer a mais grave emergência que ameaça a humanidade — a climática. Defender os direitos dos povos indígenas é, portanto, garantir a existência das futuras gerações.