A 1 de janeiro de 1804 nasceu a primeira República Negra da História da humanidade. Mas a Revolução dos Escravos de São Domingos, contra a desumanidade e a barbárie da escravatura e do colonialismo, continua a ser condenada ao silenciamento. Por Mariana Carneiro.
O comércio americano de negros e a escravatura
Abordar a temática da Independência do Haiti remete-nos, à partida, para a invasão desta ex-colónia pelos espanhóis, com o desembarque, em 1492, de Cristóvão Colombo àquela que foi então batizada de “Hispaniola”, e o início da era do colonialismo europeu.
A “proteção” tão generosamente oferecida por Espanha aos nativos não destoa da história do imperialismo e do colonialismo global. Cristianização, por um lado, e trabalho forçado, usurpação de territórios e bens, violência atroz, doenças desconhecidas e fome, dizimação da população (os taínos), por outro. A população nativa passou de entre meio milhão a um milhão de pessoas para sessenta mil em quinze anos. A primeira epidemia de varíola, datada de dezembro de 1518 ou janeiro de 1519, matou noventa por cento dos nativos que ainda não tinham sido mortos pelos espanhóis. Em 1548, a população taína consistia em pouco mais de quinhentos indivíduos.
Mediante a ameaça de extinção dos taínos, e por proposta do padre dominicano Bartolomeu de Las Casas, Espanha aboliu a escravização dos locais. E, em 1517, Carlos V deu o seu aval à exportação de 15 mil escravos africanos para a ilha. Assim, “o padre e o Rei iniciaram, no mundo, o comércio americano de negros e a escravatura” (James: 2010).
Nas primeiras décadas do século XVII, pequenos grupos de aventureiros marítimos, entre os quais franceses, agindo por conta própria, desembarcaram na costa norte da ilha. Conhecidos como bucaneiros, dedicavam-se à caça de bois e porcos selvagens, para comércio da carne e peles. Por forma a expandirem os seus domínios coloniais à custa dos seus inimigos de longa data (os espanhóis), os franceses nomearam, em 1665, um governador para os assentamentos dos bucaneiros. Entretanto, o Tratado de Ryswick, firmado em 20 de setembro de 1697, que veio pôr fim à Guerra dos Nove Anos1, deu a França, e a Luís XIV, direito legal sobre a parte ocidental da ilha2.
A partir de 1730, engenheiros franceses construíram um complexo sistema de irrigação para aumentar a produção de açúcar. A colónia, a par da Jamaica, passou rapidamente a liderar o fornecimento de açúcar a nível mundial. Esta produção transformou as plantações coloniais das Índias Ocidentais: “Intensiva simultaneamente em capital e trabalho, a produção de açúcar era proto‑industrial, gerando um aumento acentuado na importação de escravos africanos e uma intensificação brutal da exploração de sua mão de obra para fazer frente a uma nova e aparentemente insaciável demanda europeia pela doçura viciante do açúcar” (Buck-Morrs: 2017). Esta produção, que, em 1767, ascendia a 63 mil toneladas, levou a uma procura aparentemente infinita por escravos, oriundos essencialmente da Guiné, o território de “caça” preferido dos esclavagistas franceses.
Em nenhum outro lugar os proprietários de escravos aprenderam “a explorar a sua força de trabalho com eficiência tão severa” (Popkin: 2012). Em 1789, existiam quase doze escravos negros para cada habitante branco e os proprietários mais ricos tinham fortunas superiores às dos mais abastados proprietários da Virgínia, como George Washington e Thomas Jefferson.
Acresce que a população de São Domingos no século XVIII não só era escrava como era maioritariamente africana (Dubois: 2005)
Transporte transatlântico: Os escravos eram mera mercadoria
As descrições presentes em inúmeras obras sobre as atrocidades cometidas durante o transporte transatlântico são particularmente angustiantes. Parte da “carga”, leia-se, dos escravos, não chegavam ao seu destino. Morriam de fome, de sede, das sequelas causadas pela violência brutal de que eram alvo, de falta de assistência. Os corpos eram atirados ao mar. Outros eram mortos pelos esclavagistas para que a sua carne pudesse alimentar os seus próprios companheiros famintos.
Apesar da impiedosa subjugação a que eram sujeitos, os escravos negros protagonizaram várias revoltas nos portos de embarcação e a bordo dos navios negreiros.
Ao chegarem à colónia francesa de São Domingos (Saint-Domingue), as pessoas escravizadas eram colocadas em locais sem qualquer salubridade, e sobre elas recaíam todo o tipo de violências e arbitrariedades. As atrocidades cometidas iam ainda mais além do que o próprio o Code Noir3 previa. As famílias eram separadas e os escravos eram torturados, mutilados e mortos sem qualquer pudor. A regra geral era a barbárie.
Escravatura: A base económica da Revolução Francesa
Em 1789, a base da riqueza da burguesia francesa era o comércio de escravos e as colónias.
Praticamente “todas as indústrias que se desenvolveram em França durante o século XVIII tiveram a sua origem em bens e mercadorias destinados ou à costa da Guiné ou à América” (James: 2010). Mais de 20% da burguesia dependia de atividades comerciais ligadas à exploração de mão de obra escrava (Buck-Morss: 2017).
Buck-Morss enfatiza que, no século XVIII, “a escravatura tinha-se tornado a metáfora fundamental da filosofia política ocidental, conotando tudo o que havia de mau nas relações de poder” e que “a liberdade, sua antítese conceitual, era considerada pelos pensadores iluministas o valor político supremo e universal”. Mas, à medida que “a sistemática e altamente sofisticada escravização capitalista de não europeus como mão de obra nas colónias se expandia”, a exploração “de milhões de trabalhadores escravos coloniais era aceite com naturalidade pelos próprios pensadores que proclamavam a liberdade como o estado natural do homem e seu direito inalienável”. “Mesmo numa época em que proclamações teóricas de liberdade se convertiam em ação revolucionária na esfera política, era possível manter nas sombras a economia colonial esclavagista que funcionava nos bastidores”, escreve Buck-Morss.
Para alegria do imperialismo europeu, entre 1783 e 1789, a produção de São Domingos duplicou, tornando-a na “mais lucrativa colónia que o mundo jamais conhecera” (James: 2010).
Em meados de 1700, os proprietários tinham descoberto um novo produto comercial, quase tão lucrativo como o açúcar: café. Os colonos dedicaram-se ainda ao cultivo do anil e, no final de século, do algodão. Em 1789, existiam cerca de 730 plantações de açúcar na colónia, juntamente com mais de 3.000 plantações de café e igual número de plantações de índigo (Popkin: 2012).
Os britânicos encaravam a prosperidade de São Domingos com preocupação, na medida em que esta se poderia traduzir, inclusive, na primazia da França em território europeu. Acreditando que, sem escravos, São Domingos estaria perdida, a burguesia britânica prontificou-se a defender a abolição da escravatura. Acresce que os britânicos se convenciam das vantagens do livre comércio e encantavam-se com o baixo custo do “trabalho livre” na Índia. Neste contexto, William Pitt4 deixou nas mãos de William Wilberforce5 a defesa da abolição da escravatura. Num momento posterior, os interesses económicos e geoestratégicos serão outros, e a Grã-Bretanha voltará a propagandear as maravilhas da escravatura.
São Domingos um espaço rico também em contradições
A prosperidade económica de São Domingos contrastava com as contradições resultantes do desequilíbrio entre as diferentes classes. Os interesses antagónicos em São Domingos eram flagrantes, com os fazendeiros e as burguesias francesa e britânica a gerarem pressões internas e a intensificarem as rivalidades externas, “dirigindo-se cegamente para conflitos e explosões que despedaçariam as bases do seu domínio e criariam a possibilidade de emancipação” (James: 2010).
Os senhores das plantações, os “grand blancs”, tidos como aristocratas menores, opunham-se aos brancos de classe baixa, os “blancs petit”, que eram artesãos, comerciantes de escravos e capatazes. Acima deles, destacava-se a burocracia, composta quase que totalmente por franceses oriundos de França, cuja arbitrariedade não tinha limites. Os latifundiários odiavam-nos e a burocracia procurava base de suporte entre os “blancs petit”. O regime de exclusividade comercial imposto na colónia que, em última instância, se traduzia no endividamento dos latifundiários, era um frequente foco de conflito.
Existia outra classe de homens livres em São Domingos: a dos mulatos livres e dos negros livres. Brancos pobres, brancos ricos e burocracia desprezavam os mulatos. E, com o aumento do seu número, e a acumulação de riqueza entre os mulatos livres, a perseguição de que eram alvo tornou-se feroz. Ainda assim, foram aliados valiosos dos brancos ricos em determinados momentos.
Acresce que os homens de cor livres e os escravos estavam frequentemente em conflito. As altercações entre os dois movimentos perdurou mesmo após a declaração da independência em 1804.
São Domingos não era, por outro lado, um espaço geográfico homogéneo. A grande Província do Norte, da qual Le Cap era o porto principal, a Província Ocidental e a Província do Sul diferiam bastante entre si.
A Província do Norte era a área mais fértil, com maiores plantações de açúcar, e Le Cap era o centro económico, social e político da ilha. Aí ficava localizado o pólo do poder dos colonos brancos ricos, que reivindicavam uma maior autonomia para a colónia, sobretudo a nível económico (James: 2010). Le Cap foi um dos portos mais movimentados do Novo Mundo: num dia normal, era comum encontrar mais de cem navios mercantes aí ancorados. Já a cidade em si, com as suas ruas geometricamente dispostas e os seus modernos edifícios, “era um símbolo da civilização europeia nos trópicos” (Popkin: 2012).
Era também na Província do Norte que os contingentes de escravos se consciencializavam mais rapidamente das várias mudanças em curso. Os escravos de São Domingos “trabalhavam e viviam às centenas nos levantes de açúcar na Planície do Norte” e estavam “mais perto de um proletariado moderno do que qualquer outro grupo de trabalhadores daquela época”, com capacidade para atuar como um “movimento de massas preparado e organizado” (James: 2010).
Já a Província Ocidental contava com fazendas isoladas entre si e espalhadas por amplas áreas. Em muitos dos seus distritos, existiam proprietários mulatos, alguns dos quais detentores de fortunas consideráveis. A Província do Sul, por outro lado, era escassamente povoada, e, na sua maioria, por mulatos..
Revolução Francesa e Revolução dos Escravos: unas e indivisíveis
Com a Revolução Francesa, veio a promessa da abolição da escravatura. No entanto, se a questão dos mulatos acendeu por diversas vezes as assembleias revolucionárias, os negros foram votados ao esquecimento pelas diferentes partes. Ainda que existissem movimentos abolicionistas à época em França - os Amis des noirs, que denunciavam os excessos da escravatura, “uma defesa da liberdade com base na igualdade racial era algo de facto raro” e as “contradições fundamentais entre os eventos revolucionários na França e o que ocorria nas colónias francesas” eram flagrantes.
“Foram necessários anos de derramamento de sangue antes que a escravatura — não apenas a sua metáfora, mas a escravatura real — fosse abolida nas colónias francesas, e mesmo então os ganhos foram apenas temporários. Apesar de a abolição da escravatura ser a única consequência logicamente possível da ideia de liberdade universal, ela não se realizou por meio das ideias ou mesmo das ações revolucionárias dos franceses; ela se realizou graças às ações dos próprios escravos” (Buck-Morrs, 2017).
Seriam as massas de Paris, num momento posterior, a clamar pelo fim da opressão dos negros e pela abolição da escravatura, numa luta contra a “aristocracia de pele” (James: 2010).
A publicação, a 26 de agosto de 1789, da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que estipulava que todos os homens eram livres e iguais, é um marco incontornável. O documento abriu novas expectativas, rapidamente defraudadas no que respeita aos mulatos e aos negros de São Domingos. Prova disso foram a tortura e a execução de Vincent Ogé, em 1791. Ogé deixou Paris, onde trabalhou com Julien Raimond6, e liderou uma revolta em São Domingos, próximo de Le Cap. Para o efeito, contou com o apoio dos Amis des Noirs, e foi instigado e apoiado por Thomas Clarkson, tendo, inclusive, recebido armamento em Inglaterra. Ogé, mulato livre nascido na ilha de São Domingos, liberal, apelou a interesses comuns de brancos e mulatos, ambos proprietários de escravos. Esta postura não o salvou de ser barbaramente torturado e executado. Antes de morrer, Ogé pediu clemência. A sua morte inflamou o debate sobre a questão colonial em França.
1791: Escravos organizaram-se para a Revolução
Nos primeiros meses de 1791, os negros de São Domingos organizaram-se para a Revolução. A 16 de agosto, um edifício foi incendiado numa das centenas de plantações de açúcar da rica colónia caribenha. Um dos escravos negros da plantação, sob interrogatório, confessou a existência de um plano para incendiar as plantações e assassinar todos os brancos. Mas as autoridades de Le Cap rejeitaram “a ideia de que escravos negros sem educação poderiam conceber tal esquema”:
“ (...) os brancos não podiam imaginar que os negros que tinham tratado com tamanho desprezo por tanto tempo fossem capazes de se organizar para derrubar os seus opressores” (Popkin: 2012)
A Revolução dos Escravos entrou, de facto, “na história com a característica peculiar de continuar a ser impensável, mesmo enquanto acontecia” e fez-se notar a incapacidade por parte da maioria dos contemporâneos da revolução de “entender a revolução em curso nos seus próprios termos” (Trouillot: 2015).
No entanto, menos de uma semana depois, na noite de 22 para 23 de agosto de 1791, grupos de negros atacaram, efetivamente, as plantações, incendiando-as e matando ou expulsando os proprietários e capatazes brancos.
Dutty Boukman, um sacerdote vodu e líder dos quilombolas, liderou a insurgência, tendo como plano o extermínio dos brancos e a tomada da colónia para si. O vodu teve aqui um papel de relevo, sendo utilizado como meio de conspiração. A cerimónia de Bois Caïman, a 24 de agosto, é disso exemplo7. Mas Boukman acabou por ser derrotado e morto. De qualquer forma, a Revolução estava em marcha, com rebeliões a deflagrarem no sul e no lado ocidental.
“Em 1791, enquanto mesmo os mais ardentes opositores da escravidão na França esperavam passivamente por mudanças, o meio milhão de escravos em São Domingos, a mais rica colónia não somente da França, mas de todo o mundo colonial, tomava nas próprias mãos as rédeas da luta pela liberdade, não através de petições, mas por meio de uma revolta violenta e organizada” (Buck-Morrs, 2017).
De qualquer forma, a história recente de São Domingos já conhecera anteriormente, em meados do século XVIII, outro momento de revolta protagonizado por escravos. Doze anos após fugir da plantação onde estava cativo, François Mackandal, um sacerdote vodu que invocava a cultura e tradição africanas ancestrais, estabeleceu uma rede de organizações secretas entre os escravos das plantações, que lideraram uma revolta que se arrastou desde 1751 até 1757. Embora Mackandal tenha sido posteriormente capturado pelos franceses e queimado numa fogueira em 1758, as grandes milícias de quilombolas persistiram com os ataques e as perseguições após a sua morte. Estima-se que as forças de Mackandal tenham morto mais de mil colonos durante os seis anos de insurreição. Nesta revolta, tal como aconteceu posteriormente, a luta contra o fim da opressão e dominação francesa foi fortemente influenciada pela religiosidade ligada ao vodu, que se revestiu de um carácter revolucionário.
Toussaint L'Ouverture: liberdade para todos, a ser assegurada pela força
Um mês após o início da revolta protagonizada por Boukman, François-Dominique Toussaint L'Ouverture integrou as fileiras dos insurgentes. Até esse momento, a sua preocupação era evitar a destruição da fazenda que administrava, e assegurar a segurança dos seus senhores. O escravo em cujas mãos foi parar o livro Uma história filosófica e política dos assentamentos e do comércio dos europeus nas Índias Orientais e Ocidentais, do Padre Raynal, que, nove antes da queda da Bastilha, clamava por uma revolta dos escravos, assumiu, desde a sua chegada, lugar de destaque.
Entre os traços do caráter de Toussaint mais enaltecidos por C.L.R. James estão a retidão e a integridade, que contrastam com a personalidade de outros líderes escravos, como Biassou e Jean François. Estes tornar-se-iam inimigos de Toussaint e da luta pela libertação. É ainda ao lado de ambos que Toussaint, em negociações com representantes do governo francês, chega a aceitar levar os escravos seus seguidores de volta à escravatura, a troco da liberdade de um determinado número de líderes escravos. Os colonialistas declinaram a proposta e, a partir daí, Toussaint traçou o caminho: liberdade para todos, a ser assegurada pela força. A respeito deste episódio, C.L.R. James afirma que “revolucionários mais extremistas são formados pelas circunstâncias”.
O fim da dominação branca em São Domingos
São inúmeros os protagonistas deste período da história de São Domingos. Destacam-se, entre os mulatos, nomes como os dos soldados André Rigaud, Louis-Jacques Beauvais ou do político Pinchinat8. Na Província Ocidental, estes, a par de escravos negros, fazendeiros brancos e comandantes monárquicos, lutaram contra os patriotas brancos de Porto Princípe. Se, no Norte avançado, os escravos lideravam os mulatos, no lado ocidental os mulatos lideravam os escravos.
Nos primeiros meses de 1792, Toussaint já unificara milhares de negros e, em julho, tinha ao seu lado cerca de 500 escravos.
Quando uma nova expedição francesa, com o fim de acabar com as lutas entre proprietários de escravos e extinguir a revolta liderada por Toussaint, aportou em São Domingos, mais uma vez, os antagonismos evidenciaram-se. Os comissários Léger-Félicité Sonthonax, Étienne Polverel e Ailhand e os comandantes, oficiais do rei, separaram-se logo à chegada, e estes últimos acabaram por ser recambiados para França.
Entretanto, em Paris, a 10 de agosto, as massas derrubaram os Bourbon do trono. A notícia só chegou em outubro a São Domingos. Sonthonax estava disposto a abolir a discriminação contra os mulatos e assumiu o espírito e a letra do Decreto de 4 de Abril, no sentido de dar direito de voto aos mulatos, o que causou a ira dos brancos pobres.
Depois de alguns revezes, foram os acontecimentos em França que determinaram uma nova fase na insurgência dos escravos. Quando estes estavam prestes a ser derrotados pelo comandante francês Étienne Laveaux9, deu-se a execução do rei, a 21 de janeiro de 1793, e, posteriormente, a guerra com Espanha e Inglaterra. As atenções de Laveaux tiveram de se voltar para a defesa da costa contra o inimigo estrangeiro, e o movimento revolucionário escravo ganhou novo fôlego.
Mas, na realidade, a Revolução Francesa continuava a não responder aos anseios dos escravos, e pairava no ar a ameaça do regresso à barbárie. Neste contexto, quando os espanhóis de São Domingos lhes ofereceram uma aliança comum contra o governo francês, os negros aceitaram.
Embora aliado dos espanhóis, Toussaint continuava a organizar os negros para a luta pela liberdade para todos.
Abolição da escravatura nas colónias francesas
Enfrentando ameaças constantes dos contrarrevolucionários, Sonthonax ordenou que os escravos e os prisioneiros de Le Cap fossem armados e assegurou liberdade aos escravos insurrectos, que desceram até à planície. Depois da pilhagem, os escravos retornaram aos seus aliados espanhóis, e aqueles que ainda não tinham aderido à revolta saíram às ruas. Sonthonax proclamou a abolição da escravatura em São Domingos a 29 de agosto de 1793. No entanto, na Província Ocidental foi um fracasso, com os mulatos e os brancos unidos sob a bandeira da contrarrevolução.
Toussaint estava rodeado de milhares de homens à sua volta, homens de cor e brancos, antigos oficiais do Antigo Regime e antigos republicanos. Mas a maior parte eram negros, como é o caso de Jean Jacques Dessalines, Henri Christophe e Hyacinthe Moïse10, que tinham sido escravos.
Sob ataque, a 3 de setembro de 1793, São Domingos acabou por aceitar a “proteção” da Grã-Bretanha e, com esta, registaram-se modificações no regime de exclusividade do comércio, o Antigo Regime foi reestabelecido, bem como a escravatura e a discriminação dos mulatos. Os britânicos somaram várias conquistas. A 4 de junho de 1794, tomaram Porto Príncipe.
Perante este cenário, os franceses Sonthonax, Polverel e Laveaux lutaram para salvar São Domingos para a Revolução.
Em França, os girondinos escaparam da ira das massas e juntaram-se à contrarrevolução, e o governo de Maximilien Robespierre11 e da Montanha12 ganharam a confiança das massas. Com a França, agora, mais do que nunca, sob a influência das classes populares, a 3 de fevereiro de 1794, foi declarada na Convenção a abolição da escravatura nas colónias francesas. Após saber da abolição da escravatura, em maio de 1794, Toussaint, juntamente com os seus homens, uniu-se aos revolucionários franceses e Laveaux promoveu-o a general de brigada.
Britânicos são expulsos da Província Ocidental
Laveaux dirigia agora sozinho a colónia, mas Toussaint estava praticamente livre no comando do contingente das forças e do seu distrito. Toussaint dividia recompensas e perigos, ocupando sempre a dianteira. Mas era, conforme realça C.L.R. James, uma pessoa contida, impenetrável e rigorosa, o que causava um certo distanciamento entre o líder escravo e aqueles que o seguiam. De qualquer maneira, as forças de Toussaint iam crescendo. Em 1796, o comando de Toussaint na província do Norte era inquestionável e os próprios brancos sentiam-se sob sua proteção. O líder escravo defendia que a situação de São Domingos dependia da restauração da agricultura e frequentemente apelava ao empenhamento de todos para um aumento da produção. Mais tarde, o exemplo do negro Brossard, que pôs todos a trabalhar mediante promessa de um quarto da produção, foi disseminado na Província do Norte.
Em setembro de 1795, Espanha e França declararam a paz no Tratado de Basileia. No entanto, Toussaint alertou que os espanhóis não se manteriam neutros.
Toussaint e Rigaud somaram triunfos contra britânicos e Victor Hugues13 derrotou-os batalha após batalha em Guadalupe.
Em 1796, Pinchinat chegou a Le Cap e começou a conspirar, o que levou a que, a 20 de março de 1796, os mulatos prendessem Laveaux. Prontamente, Toussaint seguiu em auxílio daquele que se havia tornado um amigo muito próximo. A 1 de abril de 1796, Laveaux proclamou Toussaint assistente do governador - posto que o Diretório confirmou a 17 de agosto - e jurou que jamais faria algo sem consultá-lo. “Abaixo de Deus, Laveaux”, afirmou Toussaint à época.
Entretanto, chegou a São Domingos uma comissão que incluía, entre outros, Philippe Roume, Raimond e Sonthonax para controlar os mulatos. Sonthonax e Laveaux contaram com o apoio dos negros.
Laveaux, por insistência do próprio Toussaint, foi eleito delegado e regressou a França. Sonthonax também foi eleito deputado, mas ficou em São Domingos, igualmente por insistência de Toussaint. Mediante uma cisão entre o sul sob Rigaud e o governo, tanto em São Domingos como em França, Sonthonax tentou, contra conselhos de Toussaint, conter Rigaud e os seus homens no Sul. Entre o fim de 1796 e o princípio de 1797, Toussaint estava muito próximo de Rigaud, mas manteve-se ao lado de Sonthonax.
A 2 de maio de 1797, Toussaint foi indicado como comandante chefe e governador. Perto de três meses mais tarde, a 17 de agosto de 1797, Toussaint “enviou” Sonthonax para França com o argumento de que este queria matar todos os brancos e tomar São Domingos independente. Terão sido os acontecimentos em França que mudaram a visão de Toussaint e, com ela, todo o curso da Revolução Negra.
Em território francês, a Revolução estava ameaçada, com Babeuf14 preso e os deputados jacobinos afastados.
A 30 de abril de 1798, Toussaint expulsou finalmente os ingleses da Província Ocidental. A luta e vitória de Toussaint veio a fortalecer o movimento abolicionista na Grã‑Bretanha e “preparou o terreno para a suspensão britânica do tráfico de escravos em 1807” (Buck-Morss: 2017).
Fidelidade à República e aos ideais da Revolução Francesa
O general Hédouville15, que substituiu Sonthonax como representante do governo francês em São Domingos, tinha um mandato para negociar com Rigaud. Após o líder mulato ter sido atacado no Sul pelos britânicos, e Toussaint ter ido ao seu auxílio, ambos vão ter com Hédouville. O governante francês convenceu Rigaud a conspirar contra Toussaint. Apesar de estar ciente desta conspiração, Toussaint continuou, no entanto, a sua luta para expulsar os britânicos de toda a ilha.
O comandante britânico Thomas Maitland ofereceu a Toussaint apoio para dominar São Domingos, a troco de exclusividade nas relações comerciais. Toussaint recusou, tendo somente aceite um acordo para adquirir mantimentos, pagos com produtos de São Domingos. O líder negro mantinha-se fiel à República e aos ideais da Revolução Francesa.
Face aos conflitos constantes com Hédouville, Toussaint demitiu-se de comandante-chefe e aposentou-se. Mas não por muito tempo. Hédouville quis impôr um sistema de treinamento para os trabalhadores negros que os subjugava aos senhores das terras e o descontentamento agravou-se. Hédouville decidiu ainda destituir Moïse e prendê-lo. Perante os acontecimentos, Toussaint ordenou a prisão de Hédouville, que fugiu para França, sem antes declarar o antigo escravo traidor. Roume veio a substituir Hédouville.
Toussaint tornou-se senhor de toda a ilha
Toussaint assumiu a governação de São Domingos e americanos e britânicos competiram pela primazia do comércio com a ilha. A 13 de junho de 1799, Toussaint firmou acordo com os americanos e, depois, com o britânico Maitland, para evitar que a economia da ilha colapsasse.
Toussaint e Rigaud confrontaram-se e Beauvais recusou tomar partido.
O general Napoleão Bonaparte, que nesse ano assumiu o poder na França, enviou uma comissão para São Domingos composta pelo coronel Vincent16, Raimond e o general Michel. Toussaint foi reconhecido como comandante-chefe e governador.
Em agosto de 1800, Toussaint conquistou a vitória face a Rigaud, que partiu para Paris. Devido a um naufrágio, o líder mulato só chegaria à capital francesa em abril de 1801. Setecentos dos melhores soldados de Rigaud recusaram-se a integrar as forças de Toussaint e foram para Cuba.
Toussaint quis deixar o mulato Clairveaux responsável por governar o Sul, mas este declinou a proposta. A escolha recaiu então em Dessalines, que foi especialmente agressivo com os mulatos seguidores de Rigaud, executando 350 prisioneiros. Esta ação causou grande amargura no Sul.
Toussaint queria obter autorização de Roume para invadir a São Domingos espanhola (Santo Domingo), mas este recusava-se, e o líder escravo prendeu-o. A 21 de janeiro de 1800, os espanhóis saíram de São Domingos e Toussaint tornou-se senhor de toda a ilha.
Nova São Domingos começou a florescer
Em 1801, Toussaint transformara os contingentes de escravos em comunidades de trabalhadores livres. Dividiu a ilha em seis departamentos, criou tribunais de 1ª instância e 2ª instância, e um tribunal superior na capital, bem como tribunais militares. Aboliu numerosas tarifas e impostos e instituiu uma unidade monetária local. Além de simplificar o sistema tributário, reduziu, e acabou por eliminar, o imposto sobre a propriedade imobiliária, e reduziu o tributo sobre a importação. Toussaint determinou também a descida dos impostos sobre produtos de primeira necessidade. Para combater o contrabando, organizou a polícia marítima. Indicou Raimond como administrador do património nacional, construiu escolas, vias de comunicação, estimulou a prática religiosa, construiu edifícios imponentes e um monumento para comemorar a abolição da escravatura. No Hôtel de La Republica não existia distinção de raça ou posto. Toussaint propalava a necessidade do trabalho, o respeito à lei e à ordem. O cultivo prosperava e a nova São Domingos começou a florescer a olhos vistos. Num ano e meio, São Domingos recuperou o cultivo em dois terços.
A Constituição de São Domingos
Toussaint sabia o que esperar dos colonos brancos, e não tinha qualquer confiança na sua integridade, com exceção de homens como Sonthonax, Laveaux, Roume e Vincent. Mas era contra qualquer vingança, e a destruição de bens e a matança de brancos mereciam o seu repúdio. Perdendo de vista o apoio das massas, Toussaint procurava apaziguar os brancos da ilha e não teve em conta a importância de explicar os seus passos aos seus mais fiéis seguidores e de partilhar as suas preocupações.
Toussaint preparou-se para a guerra e adquiriu milhares de armas aos Estados Unidos. Durante este período, todas as expectativas de obter qualquer resposta às suas cartas por parte de Bonaparte foram defraudadas.
Em julho de 1801, Toussaint aprovou a Constituição de São Domingos, que determinava o fim das discriminações, o direito de propriedade, e colocava todo o poder nas suas mãos. O documento não previa a existência de nenhum representante francês. A Constituição autorizava o tráfico escravo para a ilha, mas estabelecia que assim que os escravos lá aportassem tornavam-se livres. Em The Black Jacobins, C.L.R. James refere que Toussaint tinha um projeto para conquistar terras em África, colocando um fim ao tráfico de escravos e tornando milhões de negros “livres e franceses”. E que, para esse efeito, enviou centenas de milhões de francos para os EUA.
A Constituição não agradou a mulatos e negros livres, e alimentou uma acesa discussão com Vincent, que, involuntariamente, acabou por se tornar num instrumento da traição que se avizinhava.
Em março de 1801, Bonaparte, com olhos na Índia, chegou a tentar namorar Toussaint e nomeou-o capitão-general. Mas a carta com a nomeação nunca chegou a ser enviada. Bonaparte tinha-se apercebido que a Índia estava perdida para os britânicos. Bonaparte serviu-se então do argumento da Constituição recém aprovada para atacar Toussaint.
A 1 outubro de 1801, Inglaterra e França assinaram os preliminares da paz.
Fantasma da restauração da escravatura materializava-se
Bonaparte enviou uma expedição para São Domingos com 20 mil soldados veteranos, “a maior expedição jamais enviada por França” (James: 2010), que tinha ao comando alguns dos seus melhores oficiais. A expedição era chefiada pelo general Charles Leclerc, marido de Paulina Bonaparte, irmã de Napoleão. Leclerc partiu de Brest em dezembro de 1801 e desembarcou em Le Cap em fevereiro de 1802. O fantasma da restauração da escravatura materializava-se.
Ao não explicar o seu caminho, Toussaint negligenciou o seu próprio povo, e alimentou uma insurreição contra si próprio. A 21 de novembro de 1801, Toussaint prendeu Moïse, por conspiração, e ordenou o seu fuzilamento. Era a “desilusão derradeira dos negros do norte” (James: 2010.). Apesar de consciente do erro cometido, Toussaint matou sem piedade nos distritos onde houve insurreição. E adotou um conjunto de leis ainda mais severas.
Ao contrário de Toussaint, Dessalines não se preocupava em tranquilizar os brancos, eram os trabalhadores negros que teriam de pegar em armas e era neles que Dessalines concentrava a sua atenção. No entender de Susan Buck-Morss, “Dessalines foi quem viu com maior clareza a realidade do racismo europeu”.
Bonaparte traçou o plano de campanha com o seu próprio punho, dividindo-o em três etapas. A 4 de fevereiro, Fort Liberté ardia e os franceses somavam vitórias. Apesar do poderio militar francês, os negros comandados por Dessalines conseguiram imputar pesadas baixas aos seus oponentes. Já Henri Christophe cansou-se das indefinições de Toussaint e rendeu-se, levando consigo 1200 soldados, munições e dois mil habitantes brancos.
Toussaint negociou a rendição: manteria o seu Estado-maior; os oficiais manteriam as patentes e funções; e França reconheceria a liberdade irrestrita de todos os escravos. Mas Dessalines tinha os seus planos, queria afastar Toussaint e aconselhou Leclerc a isolá-lo de vez. Toussaint foi preso e enviado para França:
“Ao me depor, cortaste em São Domingos apenas o tronco da árvore da liberdade. Ela brotará novamente pelas raízes, pois estas são numerosas e profundas” (James, C.L.R.)
Toussaint, aprisionado em Fort-de-Joux a 24 de agosto, sofreu todos os tipos de maus tratos. O líder revolucionário morreu a 7 de abril de 1803.
Escravos conquistaram a Liberdade pelas suas próprias mãos
Após o envio de Toussaint para Paris, líderes locais negros promoveram inúmeras insurreições.
Uma fragata Cockade atracou em Le Cap e os escravos a bordo, oriundos de Guadalupe, atiraram-se à água durante a noite e foram contar aos seus companheiros que Bonaparte restabeleceu a escravatura na Martinica, Île-de-Bourbon e Guadalupe, entre outras ilhas. As revoltas multiplicaram-se. A tentativa de Bonaparte de voltar a impor o domínio branco em São Domingos provocou “a fase mais violenta de toda a Revolução Haitiana” (Popkin:2011).
Entretanto, Leclerc enviou inúmeras cartas desesperadas a Bonaparte clamando por reforços e apoio financeiro, mas as respostas sempre tardaram em chegar.
Dessalines promoveu em outubro de 1802 um motim contra as forças francesas, que se traduziu em sangrentas batalhas.
A 2 de novembro de 1802, Leclerc morreu, vítima de febre amarela. Sucedeu-lhe o general Rochambeau17 que, prontamente, começou a exterminar mulatos. O representante trouxe também 1500 cães para caçar os negros. A barbárie prosseguia sem qualquer pudor.
O povo, as massas negras, deram eco às suas vozes, e queimaram toda São Domingos.
A 16 de novembro, o mulato Clairveaux e o negro François Capois18 avançaram sobre Le Cap e, a 18 de novembro de 1803, as forças lideradas por Dessalines venceram os franceses na Batalha de Vertières19. Rochambeau viu-se obrigado a evacuar a ilha. Como a guerra entre França e Inglaterra tinha recomeçado, os franceses tiveram de se render à frota britânica que os bloqueava. A 29 de novembro, os ocupantes abandonaram a ilha e deu-se a proclamação preliminar da independência da ex-colónia francesa.
A 1 de janeiro de 1804, foi oficializada a independência do Estado negro do Haiti e, em outubro desse ano, Dessalines proclamou-se Imperador com o nome de Jacques I. No início do ano seguinte, por exigência de um agente inglês, Dessalines ordenou o massacre dos brancos da ilha. Estes acontecimentos viriam a penalizar fortemente o Haiti, isolando-o internacionalmente. Durante seu governo, Dessalines procurou restabelecer a economia das plantações mediante um sistema de trabalho forçado. A zona leste da ilha foi recuperada pelos espanhóis. Foi traído e assassinado em 1806 pelos seus anteriores aliados Alexandre Pétion20 e Henri Christophe, que dividiram a ilha em dois países.
O ex-escravo Henri Christophe instalou-se no norte, no Estado do Haiti, que, em 1811, se tornou o reino do Haiti. Alexandre Pétion governou a República do Haiti, no Sul. Quando Pétion morreu, em 1818, o general Jean Pierre Boyer foi eleito presidente da República. Depois do suicídio de Henri Christophe, Boyer reconquistou o norte do país e consolidou a República.
França apenas reconheceu a independência do Haiti em 1825. Já os Estados Unidos recusaram-se a fazê-lo durante seis décadas. A razão é simples: os norte-americanos continuaram a escravizar milhões dos seus próprios cidadãos e temiam que reconhecer o Haiti pudesse encorajar uma revolução de escravos no seu território.
O imperialismo francês continuou a ditar o futuro da ex-colónia, que foi hipotecado aos bancos franceses. O custo assumido pela recém-criada nação nos anos 20 do século XIX para indemnizar os proprietários de escravos franceses, e acabar com o isolamento político e económico do Haiti, na ordem dos 150 milhões de francos (reduzindo o montante em 1838 para 60 milhões de francos), teve consequências desastrosas para o seu desenvolvimento.
Sendo o único estado negro nas Américas, o Haiti foi tratado com hostilidade a nível internacional. A sucessão de embargos económicos, golpes, ditaduras e intervenções estrangeiras, com o envolvimento dos Estados Unidos21, condicionaram o desenvolvimento de uma sociedade civil forte, instituições políticas estáveis e uma economia diversificada. Todo o percurso da Nação ficou comprometido por décadas de opressão pós-colonial sistemática.
Hoje, o Haiti continua a ser o reflexo das consequências de reiteradas agressões imperialistas americanas e francesas, com a conivência da comunidade internacional.
As sementes da Revolução dos Escravos
A Revolução dos Escravos de São Domingos teve uma profunda influência no desenvolvimento da história, cultura e pensamento político afro-americanos e inspirou o nacionalismo negro, o abolicionismo, o socialismo negro e o pensamento revolucionário, e o pan-africanismo (Jackson; Bacon: 2010).
A par deste evento ter inspirado movimentos de independência na América Central e do Sul, e desferido um pesado golpe contra a escravatura e a hierarquia racial, também se traduziu num efetivo apoio militar e financeiro a esta causa, como é o caso da ajuda oferecida por Pétion a Simón Bolívar22 (Bushnell: 1970).
Em A Concise History of the Haitian Revolution, Popkin ressalva, no entanto, que, no seu entender, os movimentos de independência na década de 1810 e de 1820 na América do Sul e América Central assemelhavam-se mais ao movimento dos homens de cor livres do que à própria revolta dos escravos. E que, em muitos países, a independência não se traduziu imediatamente no fim da escravatura. Inclusive, nas ilhas caribenhas mais próximas do Haiti, a escravatura acabou por ser abolida pelos próprios governantes coloniais, e a independência surgiu ainda mais tarde. Refira-se também que, mesmo na atualidade, nem todos os países são independentes: os Estados Unidos governam Porto Rico e as ilhas de Martinica e Guadalupe são colónias francesas. Popkin explica inclusive que, em alguns países latino-americanos, a Revolução dos Escravos acabou por se traduzir na intensificação da escravatura, na medida em que os colonos refugiados de São Domingos trouxeram os seus métodos de cultivo do açúcar para Cuba e Brasil, criando novos centros de produção que tornariam esses dois países os últimos a abolir a escravatura no continente americano.
A Revolução dos Escravos de São Domingos originou a fuga de colonos brancos da ilha e, consequentemente, a primeira crise de refugiados na história dos Estados Unidos da América (EUA). Acresce que o apoio dado a Toussaint L’Ouverture, no final do século XVIII, foi o primeiro exemplo da intervenção dos EUA além das suas próprias fronteiras. Com a derrota de Napoleão em 1803, a França propôs vender as suas reivindicações territoriais no Norte da América à jovem república americana. Esta “Compra da Louisiana” abriu o caminho para a expansão dos EUA para o oeste e o seu crescimento numa potência continental. Popkin também refere que ex-residentes de São Domingos compunham grande parte da população inicial de Nova Orleans, o que influenciou profundamente a cultura distinta daquela região.
O lastro da Revolta dos Escravos atravessa vários continentes. Na Europa, intelectuais como o filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel analisaram as implicações da resistência à escravatura23, e abolicionistas britânicos, muitos deles motivados por princípios religiosos, citaram o movimento dos escravos como prova da necessidade de abolir a escravatura: em 1807, os seus esforços levaram o Parlamento britânico a oficialmente proibir o comércio de escravos.
Já no continente africano, o evento afetou profundamente o destino de milhares de homens e mulheres que, de outra forma, teriam sido enviados para o caribe.
Os governos britânico e francês e os grandes grupos económicos aperceberam-se de que poderia ser mais lucrativo estabelecer pequenas colónias em África, onde a mão-de-obra negra poderia ser arregimentada, leia-se, escravizada, para produzir para o mercado europeu sem o estigma moral associado ao comércio de escravos no Atlântico. Até porque essas eram as exigências da industrialização. Assim, sob o falso manto da “missão civilizadora”, mais uma vez, os interesses económicos e geoestratégicos sobrepuseram-se aos direitos humanos e à soberania dos povos. E assim se forjou o início de uma nova era do imperialismo europeu que iria, no final do século XIX, afetar quase todo o continente da África e muitas outras partes do mundo.
A Revolução dos Escravos de São Domingos, contra a desumanidade e a barbárie da escravatura e do colonialismo, resultou, a 1 de janeiro de 1804, no nascimento da primeira República Negra da História da humanidade. Hoje, este momento ímpar na nossa História, continua a ser condenado ao silenciamento.
BIBLIOGRAFIA
Buck-Morss, Hegel e o Haiti. São Paulo: N-1 Edições; 1ª edição (1 janeiro 2017)
Bushnell, David. O Libertador, Simón Bolívar . Nova York: Alfred A. Knopf, 1970.
Casimir, Jean. The Haitians: A Decolonial History. University of North Carolina Press (09/2020)
Depuis, Alex. Rethinking the Haitian Revolution: Slavery, Independence, and the Struggle for Recognition. Rowman & Littlefield Publishers (March, 2019)
Dubois, Laurent. Avengers of the New World: The Story of the Haitian Revolution. The Belknap Press (October 31, 2005)
Dubois, Laurent; Garrigus, John D. Slave Revolution in the Caribbean, 1789-1804 Second Edition (2017)
Ferrer, Ada. Freedom's Mirror: Cuba and Haiti in the Age of Revolution. Cambridge University (2014)
Fick, Carolyn E. The Making of Haiti: The Saint Domingue Revolution from Below. Univ. of Tennessee Press, 1990
Forsdick, Charles; Høgsbjerg, Christian. Toussaint Louverture: A Black Jacobin in the Age of Revolutions. Revolutionary Lives (2017)
Fouchard, Jean The Haitian maroons: liberty or death. Nova York: Blyden Press, 1981; edição original, 1972.
Franchina, Miriam. “Only When French Generals Will Give Their Daughters In Marriage To The Nègres”: Jean-François Petecou And The Other Path To Haitian Freedom Age of Revolutions (2021)
Gaffield, Julia. Sovereignty And The Haitian Revolution In Jean Casimir’s The Haitians: A Decolonial History. Age of Revolutions (2021)
Geggus, David P. The Impact of the Haitian Revolution in the Atlantic World (The Carolina Lowcountry and the Atlantic World). University of South Carolina Press (January 1, 2002)
Gonzalez, Johnhenry . Maroon Nation: A History of Revolutionary Haiti. New Haven CT: Yale University Press, 2019. xii + 302 pp.
Horne, Gerald. Confronting Black Jacobins: The U.S., the Haitian Revolution, and the Origins of the Dominican Republic. Monthly Review Press; 1st edition (October 22, 2015)
Jackson, Maurice. Bacon, Jacqueline. African Americans and the Haitian Revolution: Selected Essays and Historical Documents. ISBN: 9780415803762 | Published by Routledge Books (2010).
James, C. L. R. Os Jacobinos Negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos. Boitempo (2010).
Moitt, Bernard. Women and Slavery in the French Antilles, 1635-1848. Indiana University Press (14 novembro 2001).
Munro, Martin. Walcott-Hackshaw, Elizabeth. Reinterpreting the Haitian Revolution And Its Cultural Aftershocks. University Press of the West Indies (June 1, 2006)
Nesbitt, Nick. Universal Emancipation: The Haitian Revolution and the Radical Enlightenment (New World Studies)
Oliveira, Carla. Liberdade ou morte! A obra Hegel e o Haiti como resgate da história +universal da liberdade. Revista Sísifo. Nº10, v. 1, julho/dezembro de 2019
Popkin, Jeremy D. Facing Racial Revolution: Eyewitness Accounts of the Haitian Insurrection By Jeremy D. Popkin Chicago: U of Chicago P, 2008. xv + 400 pp. ISBN 13-978-0-266-67583-1
Popkin, Jeremy D. A Concise History of the Haitian Revolution. A John Wiley & Sons, Ltd., Publication (2012)
Sader, Emir. A maravilhosa revolução haitiana. Boitempo (2021)
Scott, Julius s. The Common Wind: Afro-American Currents in the Age of the Haitian Revolution. Verso (November 27, 2018)
Stein, Robert. Leger Felicite Sonthonax: The Lost Sentinel of the Republic. UNKNO (1 novembro 1985)
Trouillot, Michel-Rolph. Silencing the Past. Power and the Production of History. Tantor Audio; MP3 - Unabridged CD edition (November 17, 2015)
Zoellner, Tom. Jamaica On Fire: Haiti And The Problem Of Inspiration. Age of Revolutions (2020) https://ageofrevolutions.com/2020/07/20/jamaica-on-fire-haiti-and-the-problem-of-inspiration/(link is external)
1 A Guerra dos Nove Anos (1688-1697) foi um conflito entre a França e uma coligação europeia que incluía principalmente o Sacro Império Romano (liderado pela Monarquia dos Habsburgos), a República Holandesa, Inglaterra, Espanha, Sabóia e Portugal. A guerra foi travada com o fim de travar a expansão francesa no Reno. Por outro lado, a Inglaterra de Guilherme III participou para evitar o apoio francês a uma possível restauração de Jaime II no trono inglês.
2 Os franceses ocuparam a parte ocidental da ilha - colónia francesa de Saint-Domingue - e os espanhóis a parte leste - Santo Domingo.
3 Código legislativo francês que se aplicava aos escravos negros nas colónias, elaborado em 1685 e sancionado por Luís XIV.
4 William Pitt foi um político britânico que ocupou a posição de primeiro-ministro em dois períodos diferentes, primeiro de 1783 até 1801 e depois de 1804 até sua morte.
5 William Wilberforce foi um político britânico, filantropo e líder do movimento abolicionista do tráfico negreiro.
6 Julien Raimond nasceu um homem de cor livre e foi um plantador de índigo na colónia francesa de São Domingos. Trabalhando com Vincent Ogé, Henri Grégoire e a Sociedade Amis des Noirs , Raimond conseguiu fazer da questão da igualdade de direitos para pessoas de cor livres a principal questão colonial perante a Assembleia Nacional em 1790 e 1791.
7 Bois Caïman foi o local da primeira grande reunião de negros escravizados durante a qual foi planeada a Revolução. Nesse encontro foram realizados rituais vodu.
8 Deputado mulato que representava a colónia francesa de Saint-Domingue em França.
9 Foi um militar e político francês, contemporâneo à Revolução Francesa. Foi um dos proclamadores da abolição da escravatura em São Domingos.
10 Foi o sobrinho adotivo de Toussaint L’ouverture, executado por ordem de Toussaint a 9 de novembro de 1801.
11 Advogado e político francês e uma das personalidades mais importantes da Revolução Francesa. Principal membro dos Montanha durante a Convenção.
12 Grupo político de tendências revolucionárias cujos integrantes, na sua maioria, pertenciam à pequena e média burguesia.
13 Político, militar e administrador colonial francês durante a Revolução Francesa. Governou Guadalupe de 1794 a 1798, abolindo a escravidão da ilha, seguindo as ordens da Convenção Nacional.
14 Jornalista que participou da Revolução Francesa e foi executado pelo seu papel na Conspiração dos Iguais.
15 Em 1797, o general Hédouville foi enviado para São Domingos como representante civil e militar do governo. Chegou em março de 1798, mas sete meses depois partiu devido a conflitos com Toussaint L’ouverture. De volta a França, em 1799 Hédouville comandou novamente algumas divisões militares antes de ser nomeado comandante do Exército de Inglaterra.
17 General Donatien Marie Joseph de Rochambeau, um oficial militar veterano e ex-governador de São Domingos e Martinica.
19 Vertières ficava no sul de Le Cap.
20 Em 1791, participou da revolta contra os colonos, mas entrou em conflito com Toussaint e foi para França. Regressou a São Domingos com a expedição de Charles-Victor-Emmanuel Leclerc (1801). Lutou contra Toussaint L’Ouverture e Jean Jacques Dessalines, mas, em 1802, passou para o lado dos insurretos.
21 Os EUA ocuparam e governaram o Haiti pela força de 1915 a 1934. O presidente Woodrow Wilson enviou tropas para invadir o país em 1915. Revoltas de haitianos foram abatidas pelo exército dos EUA. Durante os dezanove anos seguintes, os EUA controlaram as alfândegas no Haiti, recolheram impostos, e dirigiram muitas instituições governamentais. De 1957 a 1986, o Haiti foi forçado a viver sob os ditadores apoiados pelos EUA que roubaram milhões do Haiti e acumularam centenas de milhões em dívida em nome do país. O Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial forçaram o Haiti a abrir os seus mercados ao mundo, o que permitiu aos EUA despejarem milhões de toneladas de arroz e açúcar subsidiados no Haiti, reduzindo os preços dos agricultores e arruinando a agricultura do país. Em 2002, os EUA retiveram centenas de milhões de dólares de empréstimos ao Haiti que deviam ser usados, entre outros projetos públicos, com educação, estradas. Em 2004, os EUA apoiaram o golpe contra Aristide, o presidente eleito do país. Para ver mais sobre a exploração do Haiti pelos EUA: Paul Farmer, “The uses of Haiti”; Peter Hallward, “Damning the flood”; and Randall Robinson, “An unbroken agony”
22 Após fugir da Jamaica na sequência de uma tentativa de assassinato, Simón Bolívar rumou ao Haiti, onde travou amizade com Pétion, a quem pediu apoio. O presidente da República do Haiti deu-lhe amplo apoio em armas e dinheiro, exigindo apenas em troca que Bolívar prometesse abolir a escravatura em qualquer uma das terras que retomasse da Espanha (Bushnell: 1970).
23 A este respeito, ler Buck-Morss, Susan. Hegel, Haiti, and Universal History. Paperback (2009)
Mariana Carneiro é socióloga do trabalho, especialista em Direito do Trabalho, jornalista do Esquerda.net e mestranda em História Contemporânea.