Marina Ruzzi é membra da coordenação estadual da setorial de mulheres do PSOL São Paulo e militante da Insurgência.
No dia 07 de outubro de 2021 tivemos o julgamento, em segunda instância, do recurso apresentado por Mariana Ferrer na ação penal que absolveu o réu André Aranha do crime de estupro de vulnerável. Em resumo, Mari sofreu uma violência sexual quando estava sob uso de diversas substâncias - dentre elas álcool e um remédio para dormir que tem efeito hipnótico, o Zolpidem - em uma festa, na qual estava trabalhando como embaixadora em uma boate de grande nome em Santa Catarina.
O caso contava com diversas provas - exame toxicológico, depoimentos de testemunhas, exame sexológico e de DNA, imagens de segurança, áudios gravados na sequência do crime pela própria vítima em que estava visivelmente alterada - que indicavam que Aranha a teria estuprado enquanto ela não tinha condições de consentir: daí a caracterização do crime de estupro de vulnerável.
Em primeira instância, o caso ficou famoso pois trechos da audiência online foram divulgados, mostrando as humilhações sofridas por Mari pelos atores judiciais, em especial pelo advogado do réu, cuja única defesa basicamente foi atacá-la de maneira misógina, repleta de estereótipos de gênero, chamando-a de “mentirosa” e “vagabunda”. Usou imagens postadas por ela em redes sociais, argumentando que uma mulher que “sensualiza nas redes” não poderia ser estuprada. Que haveria interesses de dar um “golpe” no violador. As imagens eram chocantes não apenas pelo tom empregado e pelo conteúdo, mas principalmente pela falta de amparo que Mari recebeu, impedida de estar acompanhada de advogada - uma flagrante violação de seus direitos - e pelo silêncio e cumplicidade dos demais homens ali presentes, dentre eles o juiz e o promotor.
Além dos ataques à vítima na sua condição de mulher, a defesa de Aranha usou um velho argumento do Poder Judiciário: ele não sabia que ela não estava em condições de consentir, razão pela qual não poderia saber que a estaria estuprando. Foi a partir desse argumento, acolhido pelo Ministério Público, que se cunhou na mídia o termo “estupro culposo”, o que gerou revolta nos movimentos de mulheres e na sociedade de forma geral.
Essa defesa foi acolhida pelo juiz, que absolveu o acusado. Não foi surpreendente para quem atua na área do direito, em especial com violência de gênero, pois esse é um argumento corriqueiro. Muitos homens são absolvidos de acusações de estupro de vulnerável pela defesa com base na ignorância do pobre homem: não sabia que a menina era menor de 14 anos ou não sabia que ela estava dopada ou sem condições de consentir. E o pacto de cumplicidade frequentemente se compadece desses acusados-vítimas, fazendo dos tribunais mais um espaço de violação de direitos das mulheres e de reprodução de machismos, garantindo não apenas a impunidade mas o retrogosto de injustiça, pois de alguma forma aquele acusado era, por conta de seu privilégio, uma pobre vítima das circunstâncias.
Vale dizer que mesmo os ataques do advogado de Aranha à Mari Ferrer foram extremamente calculados e são reflexo de uma cultura judicial machista, em especial nos crimes contra a dignidade sexual. E essa estratégia tem uma base histórica. Até 2009, quando houve uma grande reforma nos crimes sexuais, apenas as mulheres tidas como “honestas” poderiam sofrer estupro. Isso significava que em qualquer julgamento por esse tipo de crime, em primeiro lugar deveria ser julgada a mulher, com base em ataques machistas contra a sua moralidade e comportamento sexual. Pois se ela não fosse honesta, não teria a existência de um crime.
Apesar de esse requisito já não mais estar em vigor, isso não significa que os operadores do direito deixaram de usá-lo na estrutura de suas defesas e na condução dos seus julgados. Porque por mais que não seja lei, de fato há um entendimento social de que há mulheres cujos corpos são violáveis, que elas de alguma forma contribuíram para aquele episódio e que as penas previstas em lei são muito pesadas para um mero desentendimento. Isso precisa acabar.
Com a repercussão, inclusive com movimentos de rua em plena pandemia, o Congresso se mobilizou para aprovar uma lei batizada em seu nome que visava coibir especialmente a prática de atos que ofendam vítimas de crimes contra a dignidade sexual durante os processos judiciais. Claro que esse tipo de lei não precisaria ser aprovada pois o que ocorreu já violava diversas normas nacionais e tratados internacionais, dentre eles a Convenção Belém do Pará, que tem status de emenda constitucional e que coloca uma série de obrigações ao Estado Brasileiro para que proteja as mulheres de violência, em especial por parte de seus representantes e autoridades. Mas não deixa de ser uma conquista, pois agora mulheres contam com mais um instrumento para se defenderem.
Claro que tudo isso mobilizou esperanças. Houve a expectativa de que o Tribunal de Justiça de Santa Catarina corrigiria essa injustiça. Afinal, até mesmo ministros do Supremo Tribunal Federal criticaram a sentença, o juiz chegou a ser afastado pelo seu comportamento na audiência e o advogado está sendo investigado na OAB. Mas o resultado foi simplesmente mais do mesmo: a votação UNÂNIME de três desembargadores confirmou a sentença que absolvera o réu André Aranha.
Mariana Ferrer irá recorrer ao Superior Tribunal de Justiça, que já deu diversas decisões a respeito da palavra da vítima nesse tipo de caso, a qual deve ter especial relevância probatória. Ou seja, se esses precedentes fossem ser aplicados, as provas seriam mais do que suficientes para demonstrar que a palavra de Mari é coerente com os fatos por ela narrados e que a condenação era necessária.
Pode ser que o judiciário seja uma trincheira adequada para a resolução do caso dela, e sinceramente torço por isso, mas a verdade é que o que aconteceu é um golpe duro em todas as mulheres. O tratamento ao qual ela foi submetida, a impunidade do agressor - que se sente livre inclusive para falar à mídia que temia ser estuprado na prisão, uma grande ironia machista - tudo isso desincentiva vítimas a reportarem as violências sofridas e a buscarem reparação e justiça. Tudo isso passa a mensagem para a sociedade de que há corpos que não merecem ser protegidos, que é a mulher quem é responsável por evitar uma violência sexual e que os homens violadores, bem, eles não sabem o que fazem.
Quando são corpos negros e periféricos, esse tratamento institucional é ainda mais violento. Dados do Atlas da Violência de 2018 indicam que em 2016, foram registrados nas polícias brasileiras 49.497 casos de estupro. Com dados das notificações realizadas no SUS no mesmo ano, fica evidenciado que as vítimas têm um padrão claro: majoritariamente negras, crianças, com escolaridade de nível fundamental a médio. Mas o que vemos é que não apenas não são casos devidamente acolhidos pelas autoridades, como também sujeitos a maior impunidade por parte dos agressores, o que evidencia ainda mais a matriz de opressões que está presente em casos que exigem cautela e cuidado.
Como disse, isso não é novo. Nesta mesma semana, vimos o caso do médico ginecologista de Goiânia-GO, acusado de abusar de pelo menos 53 mulheres, com outras denúncias formais anteriores, teve a sua prisão preventiva relaxada, podendo ficar em casa com o uso de tornozeleira. O estudante de medicina da FMUSP, acusado de estuprar uma colega em uma festa da faculdade e outras mulheres, não apenas foi absolvido como teve seu registro no CRM deferido e hoje está livre para praticar medicina como ginecologista. Não se trata aqui de defender um punitivismo cego, exigindo penas perpétuas para esses agressores. É esperar, contudo, que haja o reconhecimento por parte do poder público e a responsabilização desses acusados que, com base nos seus privilégios são protegidos de qualquer tipo de responsabilidade, cabendo a eles o benefício da dúvida e a presunção de inocência a despeito das provas e da palavra da vítima - algo que não é garantido à população negra que lota as prisões brasileiras por delitos como o roubo de R$ 21,00 em alimentos em uma loja de conveniência por uma mãe de 5 filhos em meio ao retorno do Brasil ao mapa da fome.
A solução também não é nova: é seguir mobilizando, disputando espaços e narrativas e pressionando as autoridades para que nos deem um tratamento adequado pautado nos direitos humanos. É compreender, nos tribunais e fora deles, que para além das desigualdades estruturais, em casos concretos, a vulnerabilidade não se discute. Quem deve ser responsabilizado é o agressor, que deve se dar ao trabalho de confirmar as condições de consentimento. E nós, comprometidas e comprometidos com a igualdade de gênero, seguirmos fortes e firmes até que isso se torne uma realidade.