A irrupção de um ativismo climático de matriz juvenil não só revitalizou o campo de ação, mas também criou novas expectativas em um contexto de renovada urgência climática. Esse movimento não está livre de riscos – como sua restrição a uma dimensão cultural- expressiva ou a paralisia colapsista –, mas sua persistência é de enorme importância no contexto do fracasso sucessivo das cúpulas globais sobre o clima.
Maristella Svampa, Nueva Sociedad, dezembro de 2020
O cenário atual apresenta uma profunda divisão. Por um lado, observa-se a convergência entre um processo de direitização política, uma preocupante cegueira ambiental e um perigoso deslizamento ideológico de amplos setores subalternos, seduzidos pelo discurso neofascista, que denunciam os resultados excludentes da globalização neoliberal. Por outro lado, a deterioração ambiental e o crescimento exponencial das catástrofes climáticas se correlacionam com o aumento das ações de protesto e o surgimento de novos coletivos e organizações – muitos deles coordenados globalmente – que denunciam a guerra contra a natureza e exigem mudanças drásticas na política climática das potências mundiais e autoridades políticas.
Que alcance têm essas mobilizações globais em um contexto planetário de crescente autoritarismo e diante de um horizonte cada vez mais colapsista? Quais são as reivindicações e mensagens mais importantes desses novos movimentos de cidadãos? Estamos presenciando a cristalização de uma rede de movimentos e ações que ilustram a possível emergência de uma «sociedade em movimento»? A demanda por justiça climática implica quais novos protagonismos?
Neste artigo, apresentarei a composição do espaço da justiça climática de uma perspectiva histórica. Minha tese é que existe atualmente um campo de ação amplo e heterogêneo atravessado pela problemática da justiça climática, revitalizado por um protagonismo juvenil mais radicalizado ao calor dos negacionismos e dos desastres ecológicos. Esse campo inclui:
- organizações de base (movimentos socioambientais locais e culturais, ongs ambientalistas, organizações de povos originários, entre outros);
- redes de organizações e movimentos sociais que nascem como instâncias de coordenação para a realização de ações de protesto pontuais e específicas, simultâneas em diferentes regiões do mundo e que questionam as elites políticas e econômicas, seja na Organização Mundial do Comércio (omc), nas Conferências das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (cop), no Fórum de Davos ou, recentemente, nas marchas globais pelo clima;
- protestos de jovens na forma de «greves climáticas», como as que promovem a Fridays for Future (Sextas-feiras pelo Futuro), a Extinction Rebellion (Rebelião contra a Extinção), a Jóvenes por el Clima (Jovens pelo Clima) e até mesmo as mobilizações espontâneas ou ações de desobediência civil que exigem mudanças nas políticas climáticas e/ou denunciam a inação dos respectivos governos diante de determinados crimes ambientais (incêndios na Amazônia e na Austrália, etc.).
Partimos do princípio de que é necessário tomar como unidade de análise as ações coletivas de protesto, não apenas as organizações. Como defende o economista ecológico Joan Martínez Alier: «Para que haja um movimento, não faz falta uma organização. É equivocado buscar a presença do movimento global por justiça ambiental mais nos diferentes nomes das organizações do que nas ações locais, em suas diversas formas e expressões culturais»1.As raízes dos movimentos
Por muito tempo, a história das lutas e formas de resistência coletiva no Ocidente esteve associada às estruturas de organização da classe trabalhadora, considerada o ator privilegiado da mudança histórica. A ação organizada dessa classe era conceitualizada em termos de «movimento social», na medida em que aparecia como o ator central e, potencialmente, a expressão privilegiada de uma nova alternativa social ao modelo capitalista vigente. No entanto, a partir da década de 1960, a multiplicação das esferas de conflito, as mudanças nas classes populares e a consequente perda da centralidade do conflito industrial evidenciaram a necessidade de ampliar as definições e categorias analíticas. Para dar conta dessa realidade, instituiu-se a categoria – ao mesmo tempo empírica e teórica – de «novos movimentos sociais» na busca de caracterizar a ação dos diferentes movimentos que expressavam uma nova politização da sociedade diante da exposição pública de temáticas e conflitos tradicionalmente considerados próprios do âmbito privado ou que apareciam naturalizados, associados ao desenvolvimento industrial.
Foram compreendidos nesse contexto os nascentes movimentos ecologistas ou ambientais que, juntamente com os movimentos feministas, pacifistas e estudantis, ilustravam o surgimento de novas coordenadas culturais e políticas. Os movimentos ecologistas e pacifistas direcionavam suas críticas ao produtivismo, que alcançava tanto o capitalismo como o socialismo de matriz soviética, e apareciam unificados por trás do questionamento do uso da energia nuclear.Assim, os anos 1970 viram a questão ambiental entrar na agenda global. Surgiram então instituições internacionais e novas plataformas de intervenção – como o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (pnud) –, diferentes organizações de natureza ecologista, os primeiros partidos verdes (tendo o partido alemão como modelo) e diversas ongs com tendências e origens ideológicas muito contrastantes, que iam desde as mais conservadoras até as mais radicais.
Na década de 1980, houve uma inflexão associada ao surgimento do movimento por justiça ambiental, nascido nos Estados Unidos e vinculado às lutas das comunidades afro-americanas, cujos bairros eram os mais afetados pelas atividades mais contaminantes como destinos de resíduos tóxicos e da instalação de determinadas indústrias. Trata-se de um enfoque integral que, desde sua origem, enfatiza a desigualdade dos custos ambientais, a falta de participação e de democracia, o racismo ambiental, a injustiça de gênero e a dívida ecológica2. Por sua vez, nascem na mesma época as mobilizações socioambientais nos países do Sul. Martínez Alier3, que estudou os novos conflitos ambientais nos cinco continentes, batizou esses movimentos de «ecologia popular» ou «ecologia dos pobres». Com isso, ele se referia a uma corrente que crescia em importância e dava ênfase aos conflitos ambientais que, em diversos níveis (local, nacional e global), são causados pela reprodução globalizada do capital, pela nova divisão internacional e territorial do trabalho, e pela desigualdade social. A divisão desigual do trabalho, que repercute na distribuição dos conflitos ambientais, prejudica sobretudo as populações pobres e mais vulneráveis. Além disso, Martínez Alier afirmava que, em muitos conflitos ambientais, os pobres se alinham na defesa da preservação dos recursos naturais não por convicção ecológica, mas com o fim de preservar seu modo de vida.
Por outro lado, em 1999, entraram na cena pública global os movimentos antiglobalização após a batalha de Seattle, quando conseguiram interromper a reunião da omc. Ligados a uma narrativa que questiona a globalização neoliberal e responsabiliza o capitalismo pela degradação social e ambiental, os movimentos e organizações ambientais se propuseram a questionar as instituições internacionais que regulam o capitalismo no mundo.
Assim, o movimento pela justiça climática é o herdeiro natural dessas três correntes mais antigas. Ele nasceu associado às ongs menores, que buscavam se reapropriar criticamente desse conceito, recuperando sua dimensão mais confrontadora e integral. Somente em 2009, após o fracasso da cop em Copenhague, o apelo à justiça climática encontraria uma tradução em termos de movimento global de caráter mais radical, com eixo na crítica ao capitalismo e tendo a transição energética como horizonte.
O conceito de «justiça climática» foi introduzido em 1999 pelo grupo Corporate Watch (membros ativos do movimento por justiça ambiental), que tinha sede em San Francisco e se propunha a abordar as causas do aquecimento global, exigir que as empresas responsáveis pelas emissões (petroleiras) prestassem contas e apresentar a necessidade da transição energética. Ainda que os princípios tenham sido estabelecidos em Bali (International Climate Justice Network, 2002), a nova agenda ambiental foi apresentada à sociedade em várias reuniões, uma delas na sede da Chevron Oil em San Francisco. Como conceito totalizador, ele busca retomar a visão integral da justiça ambiental, nascida nos bairros afro-americanos dos eua onde se denunciava o racismo ambiental, assim como a dimensão social mais presente na chamada ecologia dos pobres, esta última associada às resistências territoriais dos países do Sul global. Dessa perspectiva, a justiça climática «exige que as políticas públicas estejam baseadas no respeito mútuo e na justiça para todos os povos», além de «uma valorização das diversas perspectivas culturais»4. Embora haja interpretações diversas, ela propõe não só uma política de igualdade, mas também de reconhecimento e participação política dos setores afetados.
Em termos organizacionais, os movimentos pela justiça climática partilham do ethos próprio dos movimentos alterglobalização: a ação direta e o caráter público, a vocação nômade pelo cruzamento social e pelo multipertencimento, as redes de solidariedade e os grupos de afinidade aparecem como elos no processo sempre fluido e constante de construção da identidade.
O cenário das cop
Na Cúpula da Terra do Rio de Janeiro, realizada em 1992, foram firmados instrumentos como a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (unfccc, por sus siglas en inglés) e o Convênio sobre a Diversidade Biológica (cdb). Simultaneamente, iniciaram-se negociações na busca de uma Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação. Dois anos depois, em 1994, a unfccc entrou em vigor e, em 1995, foi celebrada a Primeira Conferência das Partes (cop). A cop nasceria assim como o órgão supremo da Convenção e a associação de todos os países dela signatários («as partes»), cujo objetivo é a estabilização das concentrações de gases do efeito estufa na atmosfera para impedir riscos ao sistema climático. Participariam das reuniões anuais especialistas em meio ambiente, ministros, chefes de Estado e ongs.De 1995 a 2019, foram realizadas 25 cop. Como afirmou Antonio Brailovsky, um dos ecologistas pioneiros na Argentina, pouco antes de iniciar a última cop, em Madri,
O simples fato de haver uma reunião número 25 para debater os problemas do clima significa que se reuniram 24 vezes e fracassaram em chegar a um acordo que funcione. Sempre prometem algo e depois não cumprem. Dessa forma, temos 24 exemplos de fracasso de cúpulas do clima em que muito foi dito e nada se cumpriu. Portanto, não vejo razões para pensar que desta vez será diferente.5
Uma das cúpulas que geraram mais esperança foi a cop3, realizada no Japão e na qual, após intensas negociações, foi assinado o Protocolo de Kyoto. Esse instrumento, juntamente com o Protocolo de Montreal (de 1987, sobre proteção da camada de ozônio), foi um dos dois documentos mais importantes da humanidade até esse momento para regular as atividades antropogênicas. Foram nele estabelecidos objetivos vinculantes para 37 países industrializados, que deveriam reduzir de 2008 a 2012 – seu período de vigência – 5% de suas emissões de gases do efeito estufa em relação ao nível de 19906.
O Protocolo de Kyoto se tornou legalmente vinculante para 30 países industrializados, e alguns deles realmente começaram a reduzir suas emissões em comparação com 1990. Por outro lado, os chamados países em desenvolvimento (como China, Índia e Brasil) aceitaram assumir suas responsabilidades, mas sem incluir objetivos de redução de emissões. A Rússia ratificou o protocolo em 2005, sendo a cop de Montreal a primeira em que o pacto entrou em vigor. Mas sem o compromisso dos eua – país responsável por um terço das emissões mundiais e que se retirou em 2001 durante a gestão George W. Bush – e com o aumento das emissões por parte de países emergentes como Índia e China, o protocolo acabaria por perder muito de sua eficácia ambiental. Além disso, ele teve sua força reduzida pela introdução de mecanismos e vias que possibilitaram que os países industrializados contabilizassem reduções de emissão não realizadas em seu próprio território, os chamados «mecanismos de flexibilidade», como o comércio de emissões (a compra direta de cotas de dióxido de carbono), e outros que envolvem investimentos em outros países para que estes emitam menos, como o mecanismo de desenvolvimento limpo e a aplicação conjunta.
Enquanto isso, a participação da sociedade civil nas cop, visível em um arco amplo de movimentos ecologistas e ongs ambientalistas de projeção internacional, crescia cada vez mais (no caso latino-americano, foram criadas as Cúpulas dos Povos). Em 2005, estiveram na cop11 de Montreal cerca de 10.000 participantes. Em 2007, marcado pela ação global e como «movimento de movimentos», um ecologismo cada vez mais ativo foi caminhando para a formação da Climate Justice Now (Justiça Climática Agora), que reuniu as principais organizações7.
Apesar das expectativas, a cop15, realizada em Copenhague em 2009, acabou sendo um grande fracasso. Foi aprovado um texto elaborado por poucos países (eua, China e outros emergentes) que, além de sua total falta de transparência, tornou-se uma mera declaração de intenções, pois, ao contrário do Protocolo de Kyoto, não continha os compromissos de redução de emissões necessários para evitar o aquecimento global, embora promovesse a criação de um fundo verde. Além disso, as tensões vividas dentro e fora da cúpula deixaram evidente a mudança de forças em termos geopolíticos: o papel da China, principal país emissor de gases do efeito estufa juntamente com os eua, era um sinal claro de como os tempos haviam mudado entre 1997 (ano de assinatura do Protocolo de Kyoto) e 20098.
Copenhague significou o fim de um ciclo para muitos movimentos sociais e ongs que foram excluídos da cúpula e liderariam uma enorme mobilização que sitiou a capital nórdica. Como afirmou Ramón Fernández Durán, fundador da Ecologistas en Acción, o representativo ato final foi a repressão policial da mobilização, pois mostrou que «a visão pública dos cidadãos não era bem-vinda em um encontro vazio de conteúdo e sequestrado pelos poderosos»9. Como consequência, houve um distanciamento dos grupos mais críticos, que concluíram não ser possível enfrentar as mudanças climáticas sem questionar o capitalismo global. Daquele momento em diante, o movimento adotaria o lema «Mudar o sistema, não o clima».
Por outro lado, em resposta ao fracasso de Copenhague, os países do chamado «eixo bolivariano», liderado pela Bolívia, convocaram uma contracúpula com caráter de ruptura em Tiquipaya, a 30 quilômetros de Cochabamba, chamada de Conferência Mundial dos Povos sobre Mudanças Climáticas e Direitos da Mãe Terra. Realizada em 2010, essa cúpula reuniu mais de 30.000 pessoas de 140 países. A ambiciosa iniciativa10 denunciou a responsabilidade do capitalismo na deterioração do meio ambiente e a dívida ecológica, buscando ao mesmo tempo colocar na agenda os direitos da natureza e o «viver bem». Contudo, a iniciativa do governo boliviano teve vida curta: um ano depois, a proposta não foi contemplada na cop de Cancun; os movimentos sociais que questionavam a cúpula foram mantidos distantes do recinto oficial, e a Bolívia ficou sozinha no momento das votações. Além disso, o Fundo Verde, orientado a mitigar os impactos gerados pelas mudanças climáticas, ficou submetido à supervisão do Banco Mundial.
Como corolário, a promessa ecológica de Evo Morales e a narrativa de respeito aos direitos da Mãe Terra acabariam sendo desmentidas em seu próprio território diante do avanço de projetos de caráter extrativista e da expansão da fronteira agropecuária. A retórica oficial se revelou falsa e inconsistente, sobretudo após o conflito pelo Território Indígena e Parque Nacional Isiboro Sécure (tipnis) em 2011, que envolveu o enfrentamento entre o governo boliviano e várias comunidades indígenas, e expôs o duplo discurso oficial, evidenciado com a adoção de uma clara política extrativista, altamente desqualificadora e criminalizadora com relação aos ambientalismos críticos do país11.
Os movimentos pela justiça ambiental e climática foram se organizando em torno de ações e redes de protesto, o que passou a desenhar, como defende Martínez Alier, uma nova cartografia de territórios em resistência que – seguindo Naomi Klein – se denominaria «Blockadia»12. O mapa destaca as ações coletivas e diversas estratégias de enfrentamento contra a expansão territorial do capital que incluem desde mobilizações e bloqueio de estradas e ruas até a ocupação de territórios e outras formas de resistência civil. Na América Latina, são sobretudo as lutas contra o neoextrativismo que liderarão os movimentos pela justiça ambiental em suas diferentes modalidades: luta contra a expansão das fronteiras de exploração de hidrocarbonetos, mineração e agropecuária, biocombustíveis, megarrepresas e também passivos ambientais e expansão de zonas de sacrifício. Na América do Norte, serão as ações de protesto contra as tubulações de gás do fraturamento hidráulico (fracking) que cruzam territórios indígenas (por exemplo, contra o Dakota Access Pipeline). Na Europa, é preciso incluir a luta contra as minas de carvão (como na Alemanha) e contra as atividades de fraturamento hidráulico (França, Bulgária e Inglaterra), além de diferentes ações de bloqueio contra o transporte de combustíveis fósseis. Nos últimos tempos, ganharão protagonismo as marchas globais pelo clima.As marchas globais pelo clima
Nos eua, o catalisador do movimento pela justiça climática foi novamente a denúncia do racismo ambiental, que voltou a ganhar força em 2005 quando o furacão Katrina arrasou as comunidades mais pobres de origem afro-americana de Nova Orleans e evidenciou as enormes desigualdades existentes no país mais rico do planeta. Em 2012, a passagem do furacão Sandy por Nova York causou 285 mortes e 75 bilhões de dólares em danos, além de provocar o início de uma mudança cultural. Os apagões afetaram mais de dois milhões de pessoas e, enquanto os escritórios centrais do Goldman Sachs em Manhattan permaneciam iluminados e Wall Street pôde amortecer os piores efeitos utilizando geradores próprios, os pobres e menos poderosos ficaram presos no sistema de desigualdade, sem nenhum amparo do Estado13.
Dois anos mais tarde, em 21 de setembro de 2014, Nova York recebeu a Marcha dos Povos, em que cerca de 400.000 pessoas se manifestaram exigindo políticas ativas contra as mudanças climáticas. Estavam entre os slogans presentes «Não existe planeta b», «As florestas não estão à venda», «Não ao fraturamento», «Não é possível deter as mudanças climáticas sem deter a máquina de guerra dos eua»14. Também ocorreram mobilizações contra as mudanças climáticas em outras 166 cidades do mundo. De caráter mais expressivo e festivo que confrontador15, a marcha foi realizada antes da Cúpula das Nações Unidas sobre o Clima, que buscava chegar a um acordo para a cop21, com as expectativas postas na cop de Paris que seria realizada um ano depois, em 2015.
O Acordo de Paris foi assinado em 2015 no âmbito da cop21. Apesar dos aplausos, esse acordo apresenta enormes falhas e fragilidades. Logo se identificou no documento final que não apareciam palavras-chave como «combustíveis fósseis», «petróleo» e «carvão», e a dívida climática do Norte perante o Sul brilhava por sua ausência. Foram excluídas também as referências aos direitos humanos e das populações indígenas, movidas para o preâmbulo. Além disso, ainda levaria um tempo para que esse acordo entrasse em vigor, somente em 2020, e a primeira avaliação de resultados está prevista para 2023. Poderia ser dito até mesmo que houve um retrocesso em relação aos acordos anteriores, já que o cumprimento do pactuado e a forma de implementação – redução de emissões de dióxido de carbono para que o aumento da temperatura média não ultrapasse 2 °C – são voluntários e dependem de cada país. Também não houve propostas concretas para combater os subsídios que estimulam o uso dos combustíveis ou para deixar no subsolo 80% de todas as reservas conhecidas desses combustíveis, como recomenda inclusive a Agência Internacional de Energia, entidade que não se caracteriza por sua visão ecológica. Não são questionados o crescimento econômico e, muito menos, o sistema do comércio mundial. Setores altamente contaminantes como a aviação civil e o transporte marítimo, que acumulam aproximadamente 10% das emissões mundiais, ficaram isentos de qualquer compromisso, entre outros tópicos16.
A não obrigatoriedade do acordo e as claras omissões deixaram um gosto amargo nos milhares de ativistas climáticos que foram de Bourget a Paris para se manifestar em diferentes locais de uma cidade interditada em seus pontos estratégicos. Grupos da sociedade civil entregaram tulipas vermelhas – representando as linhas de mesma cor que, supostamente, não deveriam ser cruzadas – e buscavam realizar um encontro sob o Arco do Triunfo. O apelo à justiça climática foi o lema em comum. Naomi Klein foi a estrela indiscutível em Paris, não apenas por suas críticas ao capitalismo neoliberal como responsável pelo aquecimento do planeta, mas também por sua proposta de multiplicar as resistências e ocupações organizando o «Blockadia» para transformar a sociedade17.
O Acordo de Paris foi ratificado em 2017 por 171 dos 195 países participantes, mas, apesar da gravidade da crise climática, continua sendo uma declaração de boas intenções, pois não estabelece compromissos concretos ou verificáveis. Abrem-se com esse acordo ainda mais portas para impulsionar falsas soluções no contexto da «economia verde», que se sustenta na contínua e até mesmo ampliada mercantilização da natureza. Para atingir um equilíbrio das emissões antropogênicas, os países poderão compensar suas emissões por meio de mecanismos de mercado que envolvam florestas ou oceanos, incentivar a geoengenharia, os métodos de captura e armazenamento de carbono, entre outros. Para financiar todos esses esforços, foi estabelecido um fundo de 100 bilhões de dólares anuais a partir de 2020, ao qual buscam se «candidatar» não poucos países periféricos.
Como era previsto, a cop25, realizada em dezembro de 2019, acabou sendo um novo fracasso. Lembremos que ela foi realizada em Madri, e não na sede originalmente prevista, a cidade chilena de Santiago, devido aos protestos sociais que sacudiam o país latino-americano. A cúpula foi pior que o esperado, já que não chegou a nenhum consenso, e o desenvolvimento do artigo do Acordo de Paris referente aos mercados de dióxido de carbono precisou ser novamente adiado.
A potência da juventude
Em 1988, a capa da revista Times exibia um globo terrestre amarrado com várias voltas de corda e um avermelhado entardecer ao fundo, com o sugestivo título «Planeta do ano: a Terra em perigo de extinção». Trinta e um anos depois, em dezembro de 2019, a capa da revista mostra a jovem sueca Greta Thunberg, considerada «personalidade do ano», com o subtítulo «O poder da juventude».Ainda que nada tenha mudado de Paris a Madri em termos de resultados, houve com relação ao ativismo climático uma inflexão, vinculada à irrupção da juventude, que assumiu o protagonismo do movimento pela justiça climática. E se em 2015, em Paris, a grande estrela da contracúpula foi Klein, que acabava de publicar seu livro Tudo pode mudar. capitalismo vs. clima18, em dezembro de 2019 em Madri a figura indispensável foi Thunberg, de apenas 16 anos de idade e que havia iniciado dois anos antes uma verdadeira cruzada para combater as mudanças climáticas.
Em agosto de 2018, após várias ondas de calor e incêndios florestais que transformaram o verão ameno da Suécia em um verdadeiro inferno, uma adolescente de aspecto frágil desse país lançou a primeira «greve estudantil pelo clima». Com apenas 14 anos e afetada pela síndrome de Asperger, Thunberg deixou de frequentar a escola às sextas-feiras para se colocar em frente ao Parlamento sueco e denunciar os riscos da inação das elites políticas e econômicas diante das aceleradas mudanças climáticas. Sua perseverança, obstinação e a impactante crueza de suas declarações a tornariam famosa em muito pouco tempo. A dramática chamada à ação se espalhou pelo mundo e encontrou um eco favorável em milhares e milhares de adolescentes e jovens, que deram origem ao movimento Fridays for Future, além de muitos outros que catapultariam a juventude à cabeça do movimento global pela justiça climática.
O «efeito Greta» se traduziu no lançamento das greves globais contra as mudanças climáticas, cujo impacto e massividade surpreenderiam a todos, inclusive quem acompanha o tema de perto. Tanto é assim que, durante a segunda greve global, realizada em 15 de março de 2019, mais de 1,4 milhão de jovens se manifestaram em 125 países e 2.083 cidades. Na terceira greve, em 20 de setembro do mesmo ano, foram quatro milhões em 163 países, reunindo jovens de cidades do Norte e do Sul do mundo todo. Sua convocação e – por extensão – a ação dos novos movimentos pela justiça climática evidenciaram o fracasso daqueles grandes objetivos traçados pela humanidade meio século atrás, quando se inaugurou a era das cúpulas climáticas globais: em primeiro lugar, o chamado «desenvolvimento sustentável» como novo paradigma, esvaziado de todo conteúdo transformador e sacrificado no altar do capitalismo e do livre mercado; em segundo, a ruptura do pacto intergeracional que, desde a época das primeiras cúpulas, buscava garantir igualdade para as futuras gerações, o direito a uma herança adequada que lhes possibilitasse um nível de vida não inferior ao da geração atual.
As palavras de Thunberg contêm uma força dramática incomum e se sintonizam com a gravidade do momento. «Não quero que vocês tenham esperança; quero que entrem em pânico. Quero que sintam o medo que eu sinto todos os dias e, depois, quero que ajam», declarou a jovem diante dos líderes presentes no Fórum Econômico Mundial em Davos, em janeiro de 2019. E em setembro do mesmo ano, durante a Cúpula de Ação Climática das Nações Unidas, afirmou:
Tudo isso está errado. Eu não deveria estar aqui em cima. Eu deveria estar de volta à escola, do outro lado do oceano. Mas vocês recorrem a nós, os jovens, em busca de esperança? Como se atrevem?Estamos no começo de uma extinção em massa. E vocês só conseguem falar de dinheiro e contos de fadas de crescimento econômico eterno. Como se atrevem? (…) Vocês roubaram meus sonhos e minha infância com suas palavras vazias. E, no entanto, sou das pessoas que têm sorte.
Em sua passagem pela cop25, em Madri, a jovem sueca se cercou de ativistas, sobretudo indígenas, e de cientistas estudiosos das mudanças climáticas. No momento de falar diante dos políticos e observadores tradicionais, ela mudou de estratégia e evitou a emoção e as frases de impacto para apelar aos dados científicos sobre a situação do clima. Seu lema foi, mais do que nunca: «Escutem os cientistas».Ao calor da ação dessa nova guerreira do Antropoceno, nasceram em 2019 por todo o mundo coletivos e organizações juvenis que se propõem a influenciar políticos e as políticas climáticas globais. São casos emblemáticos o Jóvenes por el Clima, o Fridays for Future, o Extinction Rebellion e a Alianza por el Clima, coletivos e redes disseminadas em diferentes países cuja entrada súbita na arena política global gerou grandes repercussões.
Por exemplo, o coletivo argentino Jóvenes por el Clima nasceu com o propósito de organizar a versão local da Marcha Mundial pelo Clima, em março de 2019. O crescimento dessa organização, formada por jovens com idade de 16 a 20 anos, foi explosivo. Apenas seis meses depois, Bruno Rodríguez, uma de suas referências, foi selecionado entre muitos outros e convidado para ir a Nova York falar juntamente com Thunberg na Cúpula dos Jovens pelo Clima19. Hoje, esse grupo afirma que seu objetivo é «promover um ambientalismo popular, latino-americanista e combativo».
Por sua vez, a Extinction Rebellion também apresenta uma trajetória vertiginosa e fulgurante. A agrupação nasceu na Grã-Bretanha, onde em abril de 2019 ocupou e bloqueou por uma semana pontos-chave de Londres com o objetivo de chamar a atenção para o aquecimento global e seus riscos20. Hoje, a Extinction Rebellion se encontra disseminada por diferentes países. Em seu mural do Facebook, a divisão argentina da organização, que também busca conectar justiça climática a lutas contra o neoextrativismo, afirma:
Estamos diante de uma crise climática e ecológica sem precedentes; a primeira aniquilação de espécies da história planetária já está ocorrendo, e a extinção humana é um risco real. Temos muito pouco tempo para atuar e evitar o colapso: em menos de 10 anos, devemos transformar completamente nosso sistema de produção e consumo. A negligência passiva de nossos governos os transforma em cúmplices de um crime. Portanto, é nosso direito e dever atuar escutando a ciência e nos rebelar por meio da desobediência civil pacífica.
Certamente, apesar da desconfiança inicial por parte das organizações socioambientais instaladas há mais tempo, são promissores os laços dos jovens com as assembleias e coletivos antiextrativistas, e também com as organizações indígenas. O diálogo intergeracional se torna imprescindível, assim como a compreensão sobre a articulação necessária entre a escala global e suas expressões locais e territoriais. Mais ainda, em regiões como a província argentina de Mendoza, quase não há distância entre as novas organizações juvenis e as potentes lutas contra a megamineração e o fraturamento hidráulico. A ampliação do campo de batalha propõe a existência de um espaço plural onde organizações se cruzam com histórias e acúmulos diversos, e deixa claro que as lutas em defesa do planeta adotam um aspecto local e territorial polifacetado, mas cada vez mais radical, que já não pode ser ignorado.
Com a casa em chamas…
Sem dúvida, o surgimento de um jovem ativismo climático não só revitalizou o campo de ação, mas também gerou novas expectativas nas quais convergem diferentes apelos e versões do Green New Deal (Novo Pacto Verde) global, desde a mencionada Klein até Bernie Sanders e Jeremy Rifkin.Está claro que o novo campo suscita várias desconfianças e cautelas. Uma delas é que, apesar da massividade e do corte transversal, as ações coletivas se esgotem na dimensão cultural-expressiva ou até mesmo, diante dos fracassos das cúpulas globais, naufraguem em um tipo de impotência ou paralisia colapsista. Algo assim parece ocorrer a cada ano com as cop, pois, ainda que elas façam parte – como já mencionamos – de uma crônica de um fracasso anunciado, ainda geram expectativas entre diversos ativistas e organizações ambientais, que se deslocam em massa de um continente a outro para tentar influenciar as negociações globais.
Os movimentos pela justiça ambiental e climática são filhos dos movimentos ecologistas da década de 1980, mas – especialmente em suas versões mais recentes, pensadas como «campo de ação» – são movimentos e coletivos liderados cada vez mais por jovens mulheres e homens do Antropoceno comprometidos com a luta contra todo tipo de desigualdade. Essa luta inclui a rejeição a diversas formas de dominação neocolonial, racista e patriarcal, assim como foi o Occupy Wall Street, como continuam sendo as lutas contra as diferentes formas de neoextrativismo e, sobretudo, como são as enormes mobilizações feministas que percorrem hoje o planeta.Internamente, não são poucos os jovens que buscam atingir a massividade e o caráter transversal que o potente movimento feminista assumiu recentemente em escala global. No entanto, embora por meio de suas ações os jovens tenham impulsionado um fenômeno de viralização da crise climática como problemática maior, ainda não se produziu um processo de libertação cognitiva massiva, isto é, de transformação da consciência vinculada ao dano moral e às expectativas de sucesso, processo que pode ativar a passagem do movimento social para a «sociedade em movimento». Por ora, como «movimento de movimentos», o campo da justiça climática apresenta formas plurais que se traduzem em diferentes níveis de envolvimento e ação, desde grandes e pequenas organizações que desenvolvem uma persistente tarefa militante e registram continuidade no tempo até outras, mais fluidas e transitórias, que se cristalizam em redes ou alianças fugazes, pois surgem com o objetivo de realizar uma determinada ação para então se dissolverem ou permanecerem em estado latente.
Enquanto isso, os tempos vão se encurtando visivelmente. Como expressa uma carta assinada por mais de 11.000 cientistas de todo o mundo, «a crise climática chegou e está se acelerando mais rapidamente do que a maioria dos cientistas esperava. Ela é mais grave do que o previsto, ameaça os ecossistemas naturais e o destino da humanidade». Os desafios requerem audácia e severidade, pois «as reações em cadeia climática podem causar alterações significativas nos ecossistemas, nas sociedades e nas economias, o que pode tornar grandes áreas da Terra inabitáveis»21. Uma solução urgente exige não só a redução drástica de gases do efeito estufa, mas também uma diminuição do metabolismo social, o que implicaria menos consumo de matéria e energia que o atual.
Em suma, a radicalidade nos posicionamentos e demandas requerida para superar a crise socioecológica sem enormes custos humanos e não humanos é tal que já não bastam coloridas mobilizações globais que ilustram de baixo as dimensões mais expressivas da luta, como tampouco a ação de grupos de pressão que, em seu trânsito pelos corredores do poder, acabam legitimando reformas brandas que priorizam as leis do mercado (por exemplo, bônus de carbono). É necessária uma ação que busque mais a ruptura, o confronto com o poder global e suas expressões locais e territoriais se a intenção for realmente fazer com que as decisões do planeta e da humanidade não continuem sequestradas por uma elite política e econômica que, em nome do capital e do progresso, destrói o próprio tecido da vida.
- 1. Ver J. Martínez Alier: «Una experiencia de cartografía colaborativa. El Atlas de Justicia Ambiental» em Nueva Sociedad No 286, 3-4/2020, disponível em www.nuso.org.
- 2. Sobre o tema, v. Henri Acselrad: «Movimiento de justicia ambiental. Estrategia argumentativa y fuerza simbólica» em Jorge Riechmann (coord.): Ética ecológica. Propuestas para la reorientación, Nordman, Montevidéu, 2004.
- 3. J. Martínez Alier: El ecologismo de los pobres. Conflictos ambientales y lenguajes de valoración, Icaria, Barcelona, 2005. [Há uma edição em português: O ecologismo dos pobres, Contexto, São Paulo, 2007].
- 4. David Schlosberg: «Justicia ambiental y climática: de la equidad al funcionamiento comunitario» em Ecología Política, 18/6/2011.
- 5. Mario Hernández: «Si hay una cop25 quiere decir que se han reunido 24 veces y han fracasado», entrevista a A. Brailovsky em Rebelión, 30/11/2019.
- 6. Ricardo Estévez: «¿Conoces en qué consiste el ghg Protocol?» em Ecointeligencia, 20/5/2013.
- 7. «Principios» em Clima Justice Now, https://climatejusticenow.org/sobre-cjn/principios/.
- 8. Tom Kucharz: «La justicia climática como reto social y político» em Ecologistas en Acción, 18/4/2010.
- 9. Ramón Fernández Durán: «Fin del Cambio Climático como vía para ‘Salvar todos juntos el Planeta’» em Ciudades para un Futuro más Sostenible, 2010.
- 10. Ela foi promovida pelo ambientalista Pablo Solón, então embaixador da Bolívia na onu.
- 11. Abordamos o tema em M. Svampa: Debates latinoamericanos. Indianismo, desarrollo, dependencia y populismo, Edhasa, Buenos Aires, 2016.
- 12. J. Martínez Alier, Alice Owen, Brototi Roy, Daniela del Bene e Daria Rivin: «Blockadia: movimientos de base contra los combustibles fósiles y a favor de la justicia climática» em Anuario Internacional cidob 2018, 7/2018; J. Martínez Alier: «Una experiencia de cartografía colaborativa. El Atlas de Justicia Ambiental», cit.
- 13. Geoff Mann e Joel Wainwright: Leviatán climático. Una teoría sobre nuestro futuro planetario, Biblioteca Nueva, Madri, 2018, p. 278.
- 14. Gloria Grinberg: «‘Marcha de los pueblos’ contra el cambio climático en Nueva York» em La Izquierda Diario, 23/9/2014.
- 15. G. Mann e J. Wainwright: op. cit., p. 280.
- 16. Retomamos a síntese de Alberto Acosta e E. Viale: «Sin paz con la Tierra, no habrá paz sobre la Tierra» em Rebelión, 16/12/2005.
- 17. G. Mann e J. Wainwright: op. cit., p. 296.
- 18. Presença, Lisboa, 2016.
- 19. Julián Reingold: «Aclimatando las paso: la juventud que empuja la causa climático-ambiental desde las calles a los palacios del poder» em Infobae, 6/8/2019. Em rigor, foram dois os jovens convidados da Argentina: um da Jóvenes por el Clima e outro da ong Ecohouse.
- 20. «Breaking: Extinction Rebellion – The World has Changed», 24/4/2019, https://rebellion.earth/2019/04/24/breaking-extinction-rebellion-the-world-has-changed/.
- 21. Roberto Andrés: «Once mil científicos del mundo: ‘El planeta Tierra se enfrenta a una emergencia climática’» em La Izquierda Diario, 12/11/2019.
Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Dezembro 2020, ISSN: 0251-3552