Arvind Dilawar entrevista Sylvie Laurent, Jacobin, 4 de abril de 2021. Tradução de Antonio P Souza, militante do PSOL/CE
Em 4 de abril de 1968, Martin Luther King Jr estava em Memphis, Tenessee, apoiando uma greve municipal de garis quando foi baleado e morto. Mesmo os trabalhos de limpeza de lixo sendo feitos exclusivamente por homens afro-americanos em Memphis, o apoio de King à greve foi sobre mais que raça. Um estudante de longa data de cientistas políticos, sociólogos e economistas progressistas, King via Memphis como “um trampolim necessário para Washington”, nas palavras de um colega da Conferência de Líderes Cristãos do Sul, a organização que ele fundou para fortalecer o movimento pelos direitos civis.
Em menos de três semanas, caravanas multirraciais de pessoas pobres de todo o país convergiram a Washington, DC, para exigir do governo federal providências diretas, ou garantias, para efetivar o acesso universal a necessidades de uma vida digna, incluindo trabalho, moradia, educação e saúde. Após o assassinato de King, a Campanha do Povo Pobre, como ficou conhecida, ocupou o National Mall e outros alvos estratégicos, como agências federais, por quase dois meses. Mas no fim, a tênue coalizão entre liberais e radicais que King constituiu não foi capaz de se manter contra a repressão estatal, incluindo a infiltração pelo FBI.
A Campanha do Povo Pobre foi dispersada por gás lacrimogêneo e tratores, e sua memória foi relegada ao infeliz posfácio da história do movimento pelos direitos civis escrita pela mão dos brancos. O colaborador da Jacobin Arvind Dilawar recentemente conversou com Sylvie Laurent, autora do King and the Other America: the Poor People’s Campaign and the Quest for Economic Equality (King e a outra América: a Campanha do Povo Pobre e a Luta por Igualdade Econômica), sobre a já chamada segunda fase do movimento pelos direitos civis, as visões radicais de King em problemas como a automação do trabalho e renda básica universal, e como a Campanha do Povo Pobre se encaixou nas políticas de King para liberação coletiva. Sua conversa foi suavemente editada para dar mais nitidez e brevidade.
A Campanha do Povo Pobre de Martin Luther King Jr é descrita às vezes como a “segunda fase” do movimento pelos direitos civis. É uma caracterização justa?
Não concordo totalmente com o retrato do movimento pelos direitos civis que contrapõe primeira e segunda fase. Esse entendimento esconde a extensão do movimento pela liberação negra, que tem laços estreitos com o sindicalismo, marxismo e socialismo nos Estados Unidos e dá suporte a uma narrativa onde a primeira fase, focada na igualdade formal e direitos civis, está divorciada dos dilemas dos trabalhadores pretos.
King, a metáfora viva do movimento, foi pintado como se tivesse tido um crescimento amargurado e radicalizado após 1966 (a chamada segunda fase), e seu forte comprometimento com a crítica ao capitalismo desconsiderado. Na verdade, ele fez um movimento estratégico. Ele tinha profundas preocupações com a exploração econômica, com as devastações capitalistas, e a concentração de riqueza, desde o começo dos anos 1920. A agenda centrada nos direitos civis que dominou até 1964 foi sempre impregnada com um embasamento classista e demandas dos trabalhadores. Mas a proteção legal das vidas negras e a reivindicação de direitos positivados para o povo negro eram um pré-requisito para a reestruturação da sociedade que se fazia necessária visando a emancipação completa dos trabalhadores e pobres.
King não apenas apontava as injustiças econômicas que sustentavam a desigualdade racial da América e apoiava sindicatos progressistas de trabalhadores, como também desenhava frequentes analogia entre o homem branco da extrema pobreza que perdeu seu emprego com o trabalhador negro explorado. Unir os pobres para atingir emancipação universal era um objetivo que sempre esteve na sua mente.
Lendo os discursos que ele fazia em sindicatos no começo dos anos 1960, nós entendemos como ele mobilizava a ideia de liberdade expansivamente, que segurança econômica e direitos humanos básicos são componentes essenciais da luta por liberdade, mas também crescendo até que se pudesse construir um movimento solidário com grupos não-negros, não-religiosos, e não-masculinos. Isso foi o que ele conseguiu concretizar com a Campanha do Povo Pobre em 1968.
A Campanha do Povo Pobre (CPP) tinha como ponta de lança a demanda de direitos de bem estar social, liderada majoritariamente por mulheres negras. Elas remodelaram o entendimento de King sobre bem-estar social, direitos econômicos e dignidade. Sua articulação de raça, classe, gênero e ação era sem precedentes.
Seu plano, orquestrado com King, consistia em uma ocupação espetacular do National Mall por pessoas pobres de todos os lugares do país - uma coalizão pan-racial de despossuídos e explorados que fosse tão corajosa quanto substantiva. A CPP pressionou por um dramático pivô em direção à social democracia através de uma redistribuição massiva da riqueza e a constitucionalização do direito à dignidade. Eis as palavras que King usou em 1967 para anunciar sua Campanha do Povo Pobre:
Nós ainda não somos livres… e vocês sabem por que nós não somos livres? Porque nós somos pobres. Agora, nós estamos cansados de estar no fundo, nós estamos cansados de ser explorados… E como um resultado de estarmos cansados, nós vamos para Washington, DC… Vamos dizer a essa nação que nós devemos ter emprego ou renda… e em 60 ou 90 dias, essa nação já não vai mais ter como ignorar ou fingir que não vê os pobres. E nós estamos indo praguejar contra o Congresso, e nós estamos indo praguejar contra o governo, até que eles façam alguma coisa.
Durante a Campanha do Povo Pobre, King falou de problemas e propôs soluções que parecem radicais até hoje, como a renda básica universal. Qual era a perspectiva dele sobre isso?
Ele sabia que a automação estava destruindo empregos e a chamou de “catástrofe”, especialmente pelo fato da maioria desses empregos extintos serem de baixa qualificação, primariamente ocupados por trabalhadores negros. Lendo John Kenneth Galbraith, ele concluiu que uma renda básica universal iria permitir a retirada de pessoas da pobreza se combinada com a criação massiva de empregos públicos, moradia a baixo custo, educação, infraestrutura sanitária, além do aumento do salário mínimo.
Mas o argumento central não era tanto sobre as ferramentas necessárias, mas sobre o advento de uma verdadeira social-democracia. Todas essas políticas deveriam ser priorizadas pela lei. A demanda central da campanha era aprovar uma “Segunda Carta de Direitos para os Despossuídos”. Impondo o combate à pobreza como um compromisso constitucional que permitiria responsabilizar o Estado pela garantia de que todas e todos teriam capacidade de obter acesso aos níveis adequados de nutrição, abrigo, educação e segurança econômica para o mínimo de dignidade humana. Mas dignidade também significa que identidades culturais sejam reconhecidas como valiosas. Eles nunca quiseram ser subsumidos a “não ver raça” nas pessoas.
Marchando com os trabalhadores de limpeza em Memphis em 1968, King fez explícita a ligação entre o valor da dignidade humana e as condições materiais necessárias a possibilitar que as pessoas tenham uma vida decente. “As pessoas que catam o nosso lixo”, ele disse, “são tão importantes quanto os médicos. Se ninguém faz esse trabalho, as doenças se proliferam. Todo trabalho é digno.”
Dominação racial e exploração econômica devem ser arrancadas juntas pela raiz. O propósito da campanha foi construir uma democracia devotada à erradicação da pobreza e do desempoderamento dos pobres, e fazer da dignidade um direito inalienável.
Que estratégia a Campanha do Povo Pobre usou para atingir seus objetivos? Quanto dela se frustrou depois do assassinato de King?
King não viveu para ver sua última cruzada se materializar. Ele morreu em 4 de abril, semanas antes do lançamento da campanha. Ralph Abernathy pegou o bastão e seguiu em frente com a campanha. A curto prazo, a morte de King impulsionou os esforços, com pessoas vendo a campanha como um meio de manter o líder vivo. Mas logo depois, sua ausência foi intransponível.
Durante mais de um mês, milhares de pobres de todas as raças chegaram à capital, à pé, de trem, em vagões de carga, acampando fora no National Mall numa favela que foi chamada “Cidade Ressureição”. Eles ocuparam o espaço por cinco semanas e tentaram fazer os poderes notarem sua presença e demandas.
Ralph Abernathy, Andrew Young, Hosea Williams, James Bevel, Walter Fauntroy, Joseph Lowery, e Jesse Jackson se esforçaram para continuar o grande empreendimento de seu líder ausente. Mesmo que o confronto não fosse inicialmente planejado, os manifestantes tiveram atos disruptivos, na esperança de que aquele momento de Guerra contra a Pobreza do presidente Lyndon B. Johnson entrasse na consciência nacional. Diversas delegações faziam visitas diárias a departamentos e agências estatais, para reivindicar a proteção do direito de pesca dos nativos americanos, a remoção de requisitos humilhantes para garantia do bem-estar, ou a expansão de programas de vale-refeição.
O principal comício da campanha, que aconteceu no Dia da Solidariedade (19 de junho de 1968), colocou 50 mil pessoas em Washington, DC, com demandas de combate à desigualdade descontrolada e, nas palavras usadas por Coretta Scott King, combate “à violência da pobreza”.
O esforço para dramatizar os apuros das pessoas pobres na América foi bem sucedido, mas o país não iria e não poderia ouvir aquele chamado por uma social democracia inclusiva e multirracial. O acampamento foi despejado em junho de 1968.
Mesmo que seja reiteradamente o projeto mais ambicioso de King, a Campanha do Povo Pobre tem sido largamente deixada de fora do entendimento popular sobre sua vida e trabalho. Por que você pensa que isso acontece?
Há várias razões para esse esquecimento, começando com o impacto desorientador da morte de King e a subsequente revolta que inflamou o país. A América parecia estar em guerra consigo mesma, tanto no país quanto no exterior, e os manifestantes foram taxados de subversivos, se não como um lumpen a ser domesticado. A criminalização dos pobres já estava ganhando fôlego, e a CPP - que também teve de lidar com suas próprias tensões internas - perdeu muito do seu frágil capital político. Eu argumentaria que a belicosidade da Campanha do Povo Pobre adveio de sua inabilidade de corresponder às convenientes narrativas que vieram a prevalecer: uma muito romantizada narrativa do estreito período de 1955 a 1965, quando a luta era supostamente constante, eficiente e consensual - versus o suposto inoportunismo, antagonismo e radicalismo abrasivo do fim dos anos 1960 e começo dos anos 1970, que alienou bem intencionados esquerdistas brancos e afundou o país em divisionismo racial. As políticas disruptivas da Campanha do Povo Pobre foi taxada, para usar a formulação do historiador Thomas Sangue, como “um desarranjo numa história edificante de redenção racial”.
A intenção de King era de que a campanha desafiasse uma imperfeita política econômica, que conduziu o país a uma classe trabalhadora racialmente dividida, desempregada, mal empregada e super explorada. A insurgência dos americanos pobres que ele convocava e sua crítica ao capitalismo e desigualdade eram inquietantes. Eles não se encaixaram no roteiro de progresso racial. O apagamento da campanha fala sobre a inabilidade nacional de analisar suas questões não resolvidas no tocante à raça, classe, opressão e exploração.
Além disso, a linha de frente dos líderes pelos direitos civis, incluindo figuras proeminentes da Conferência de Líderes Cristãos do Sul, tinha questões com a campanha e com o sentimento anti-guerra de King. Ademais, quando desenhava a campanha, King recusou-se a dispensar as correntes mais militantes e nacionalistas do movimento. O fato de ele mobilizar a linguagem da luta de classes e atingir jovens Black Power e Chicanos, além de ativistas pelo bem-estar social, afastaram ele de muitos de seus amigos e apoiadores. Alguns deles foram rápidos em classificar a campanha como “falha”, “desastrosa” e “um erro trágico” - enquanto buscavam resgatá-la da reação conservadora que estava tomando lugar em 1968 e poderia colocar em xeque as conquistas anteriores.
Na realidade, a Campanha do Povo Pobre em 1968 teve poucas das abrangentes demandas que reivindicou atendidas. Mas foi um extraordinário exercício performativo de democracia racial e uma experiência sem precedentes de coalizão racial entre os pobres.
Que lições os organizadores sociais hoje podem tirar da Campanha do Povo Pobre?
Antes de tudo, deixe-me dizer que o que o Reverendo William Barber II está fazendo hoje - revivendo a campanha e dando a ela uma nova relevância - é fenomenal. O principal que podemos tirar da última campanha de King é provavelmente que o debate raça-versus-classe é despropositado e contraproducente. Seu famoso escrito:
Uma infeliz questão sobre o Black Power é dar prioridade à raça precisamente num tempo em que o impacto da automação e outras forças têm feito a questão econômica igualmente fundamental para brancos e negros. Nesse contexto, o slogan “Poder para o Povo Pobre” seria muito mais apropriado que Black Power.
Mas ele nunca quis dizer com isso que a luta era para que não se visse raça. A Campanha do Povo Pobre é o exemplo perfeito de objetivos universais que levam em consideração os agravantes específicos de cada grupo em relação à coletividade, igualmente consideradas. Os Appalaches brancos que se uniram com negros e latinos em Washington foram talvez prejudicados. Mas na ação coletiva, a construção de relações comuns, e uma localização especial para a dignidade econômica e social, fez a solidariedade prevalecer.
A dominação arbitrária de trabalhadores, a humilhação de mulheres no sistema de saúde, a marginalização de imigrantes, e a desumanização do povo negro poderia ser colocada com ênfase na dignidade econômica. No entanto, ela não é um universalismo de tamanho único, que pode ser reproduzido a qualquer tempo - a questão real é como inventar políticas libertárias em torno de raça e classe que respeitem as diferenças enquanto dramatizam a condição comum.