Enquanto negoceia com os outros partidos a unidade para as legislativas, o candidato mais votado à esquerda nas presidenciais diz ao L'Humanité que não propõe "a velha união da esquerda", mas uma confederação com um programa partilhado e um parlamento comum.
Diego Chauvet e Julia Hamlaoui entrevistam Jean-Luc Mélenchon, L'Humanité / Esquerda.net, 29 de abril de 2022
Entre as duas voltas, o candidato da União Popular lançou um apelo para fazer das eleições legislativas a "terceira volta" das eleições presidenciais e para que fosse "eleito primeiro-ministro". Agora que Marine Le Pen foi derrotada, Jean-Luc Mélenchon, que aposta "que não haverá recompensa para um presidente tão mal eleito", acredita que é necessário "unificar o número máximo de forças" para vencer. Enquanto se negoceia um acordo à esquerda, ele detalha os objetivos da França Insubmissa.
Apela aos cidadãos para que o elejam como primeiro-ministro. Como pode convencê-los de que é possível uma vitória nas eleições legislativas?
As eleições presidenciais recompuseram o panorama político, tornando três blocos políticos mais ou menos iguais: o bloco liberal, que inclui a direita tradicional, o bloco de extrema direita e, finalmente, aquilo a que chamámos o bloco popular. Este último é o resultado de uma estratégia, cujo início está na Frente de Esquerda de 2012, de uma construção paciente que aglomerou sucessivamente vários sectores da população em torno de uma ideia conduzida pelo "Futuro em Comum". É um bloco social, o dos mais desfavorecidos, e um bloco coerente sobre medidas de rutura com o capitalismo. As eleições presidenciais não produziram uma verdadeira maioria política. Todas as luzes da crise democrática permanecem acesas, assim como todas as luzes da crise ecológica e social. Isso é muito. Aqueles que apoiaram a minha candidatura sentem-se frustrados por terem falhado a segunda volta por 420.000 votos. Poderíamos tê-lo feito se estivéssemos organizados como antes, numa aliança com os comunistas. Mas não se trata de uma frustração resignada. Porque, com esta terceira volta, a luta recomeça: podemos conquistar o poder. Os desafios são imensos: todos aqueles que estavam à espera de um aumento do salário mínimo ou de uma reforma aos 60 anos sabem bem isto. O último elemento-chave é a nossa capacidade de demonstrar que estamos a fazer tudo o que podemos para unir o número máximo de forças.
Os macronistas estão inquietos com tal cenário de coabitação consigo, explicando que é impossível dada a lógica do calendário eleitoral da V República. O que é que lhes responde?
Isso é verdade quando o eleito ganha de forma justa com uma escolha real. Mas esta é a terceira vez que o país foi submetido ao truque do "voto contrariado". Em 2007, três quartos do eleitorado estavam representados pelos candidatos na segunda volta, agora é apenas um terço dos inscritos. A abstenção aumentou e o vencedor perdeu quase 2 milhões de votos em comparação com as eleições anteriores. É um abismo. Aposto que não haverá recompensa para um presidente tão mal eleito.
Algumas pessoas acusam-no de personalizar as eleições legislativas e assim contribuir para as falhas da V República.
Até já ouvi dizer que seria desvalorizar as eleições legislativas qualificá-las como a terceira volta das eleições presidenciais. É exatamente o oposto: trata-se de elevar o desafio de uma eleição considerada como uma formalidade administrativa relativamente ao nível das eleições presidenciais. Já é um pouco da VI República na V República.
Como seriam os seus primeiros dias em Matignon?
A reforma aos 60 anos, a recusa do trabalho forçado no Rendimento de Solidariedade Ativa (RSA), a redução das diferenças salariais, o subsídio de dignidade, a garantia de autonomia para os estudantes... Tratar-se-ia também, em discussão com o Presidente da República, de conseguir ou um processo constituinte, ou, se tal for impossível, o RIC (referendo de iniciativa cidadã) e o referendo revogatório por negociação entre as duas Câmaras. Os traços essenciais das presidenciais encontram-se no programa das legislativas. E isto não é porque queremos ser "hegemónicos", mas porque passámos vinte meses de campanha para convencer, dia após dia, através de milhares de reuniões.
Qual seria a sua margem de manobra no âmbito de uma coabitação com Emmanuel Macron?
A V República é filha das suas circunstâncias: estávamos a sair de um regime de Assembleia, de uma terrível crise nacional ligada à descolonização e de Gaulle colocou os seus ovos em vários cestos. Tanto assim que a Constituição atribui um papel absolutamente extravagante ao chefe de Estado, mas também dá muito poder ao primeiro-ministro. O artigo 20º diz mesmo que ele "determina e conduz a política da nação".
Dois meses após a invasão russa, a guerra na Ucrânia está a ficar atolada e faz-nos temer o pior. Que iniciativas devem ser tomadas em prol da paz?
A guerra, pela qual Putin é inteiramente responsável, é um terramoto geopolítico cujas consequências completas ainda não foram medidas. Como primeiro passo, devemos conseguir que a Rússia ponha fim aos combates e a evacuação do território ucraniano. Os complexos nucleares devem também ser protegidos, e o primeiro-ministro pode propor o envio de capacetes azuis, e, se necessário, que sejam todos franceses. Em segundo lugar, não podemos falar de sanções económicas sem dizer com que meios nos vamos proteger. Não podemos passar sem gás ou petróleo. Devemos, portanto, pensar em alternativas, por exemplo com a Argélia para um pacto de trigo por petróleo e gás. Nós, os franceses, tínhamos dito que a Europa nunca mais seria o cenário de uma guerra e que a dissuasão nos protegeria dela. Mas a guerra está a decorrer e nós não pudemos fazer nada! Estamos a enfrentar um enorme desafio. A minha política continua a ser a de um partido não-alinhado. Não é do interesse dos franceses serem apanhados em todas as batalhas do mundo sem terem decidido por si próprios o que é do seu melhor interesse.
Apela ao "alargamento da União Popular". O que propõe concretamente às outras forças políticas?
A votação resolveu pelo menos uma questão: quem da esquerda é a favor de romper com o neoliberalismo ou de o apoiar? Isto dá uma direção, uma orientação geral. E os cidadãos votaram tanto para o programa como para um candidato. "O Futuro em Comum" é um programa de rutura. É herdeiro das lutas da sociedade francesa. É uma extensão de "O Humano Primeiro", o programa da Frente de Esquerda em 2012. A sua atualização através de combates parlamentares foi feita muitas vezes com votos convergentes dos socialistas, e em 98% dos casos dos comunistas. As diferenças entre o nosso programa e o dos comunistas não são tão importantes que justifiquem a separação imposta pela campanha presidencial.
Em segundo lugar, não é um acordo eleitoral que estamos a propor, mesmo que seja incluído aqui. É um acordo programático, sem o qual não pode haver acordo eleitoral. Queremos um programa que nos permita governar. O que estamos a propor não é a velha união da esquerda. Nessa altura era um partido dominante sem qualquer estrutura de mediação com os outros. Propomos que todos devem ter um grupo parlamentar e, ao mesmo tempo, um intergrupo. E um parlamento comum, na linha da atual União Popular. Uma vez acordado, podemos continuar a manter essa linha durante cinco anos. Com a expressão "União da Esquerda", permanecemos presos à lógica da recolha de logótipos e comando político vertical. A União Popular é uma abordagem baseada num programa. Dá um método que permite que cada organização se mantenha a si própria e que as pessoas intervenham. Estou a falar de uma federação, ou confederação, que cria um quadro comum, um programa partilhado, um parlamento comum.
Em 2017, achava que a reunião das forças da esquerda funcionaria como um repelente. O que mudou desde então?
Desde então, nada mudou. Mas o nosso resultado mudou. Temos de virar a página e atirar o rancor borda fora. Ou as massas decidem as questões através do voto, ou ficamos presos em conflitos. Não são os nossos argumentos que mudam a realidade, é a sua prática. Se os comunistas aceitarem hoje o acordo que estamos a propor, são bem-vindos e trabalharemos em conjunto.
Estas eleições presidenciais confirmam uma recomposição política em três blocos. Um elemento importante desta eleição é que o centro de gravidade da esquerda passou de um liberalismo social para uma esquerda de transformação social. Como se analisa esta primeira vitória ideológica e como se pode construir sobre ela?
Em 2017, já tínhamos ganho. Mas como tudo parecia acidental, incluindo o aparecimento de Macron, muitos não viram o que significava o colapso dos dois partidos tradicionais LR e PS. Em França, um dos países no centro do capitalismo global, a esquerda radical esteve perto de chegar à segunda volta. Este progresso não é definitivo, mas o cenário à italiana da erradicação da esquerda de rutura ficou afastado. Especialmente porque, entretanto, os social-liberais perderam a capacidade de dinamizar a sociedade. A composição social do centro-esquerda impede-o de conduzir as classes trabalhadoras para uma ilusão coletiva liberal de um amanhã melhor. Esta é também uma razão pela qual a aliança com os comunistas é tão importante. A cultura comunista é uma cultura de rutura com o capitalismo. Temos esta base em comum, e é muito importante que seja o mais forte possível.
No que diz respeito à esquerda, ela sempre existiu e sempre existirá. Toda a minha vida está ligada à esquerda. Mas propus deixar esta palavra em pousio, ou seja, esperar que ela manifestasse uma nova fecundidade. Ainda não chegámos a esse ponto. O que antes nos fazia fortes eram as massas concentradas: operários em fábricas, contratos da função pública que agrupavam milhões de pessoas. Um novo ator desempenha hoje este papel central: o povo. Com os pensadores comunistas, tivemos um debate aceso em torno do conceito de povo. Mas eu quero discuti-lo. O século XXI precisa de uma teoria materialista da revolução cidadã, que é o objetivo comum das nossas duas organizações.
Doze milhões de eleitores não compareceram às urnas na primeira volta. Parte das classes trabalhadoras, especialmente as das zonas rurais ou desindustrializadas, voltaram-se mais para a abstenção e para a extrema direita...
Existe de facto um quarto bloco abstencionista. Contém diferentes componentes: os mal recenseados - vários milhões, mesmo assim -, e outros que não votam porque pensam que é inútil. Que o seu voto nunca mudou a sua vida. É difícil demonstrar que estão errados. A esquerda das 35 horas semanais de trabalho está a ficar velha. O programa comum é o Vercingétorix [chefe gaulês que liderou a revolta contra os romanos] para os mais novos. Temos muito trabalho a fazer. Não subscrevo o conceito de "França periférica", segundo o qual os cidadãos são redutíveis à sua morada. Tal como não são redutíveis à sua religião. São todas estas coisas de uma só vez e muitas mais. Quanto à extrema-direita, muitos cidadãos pensam que é o maior bastão para bater Macron. Precisamos de estar presentes no terreno como nós contra a farsa social do RN. Vamos parar de mitificar as classes sociais atribuindo-lhes um pensamento automático. De facto, o voto em Le Pen na segunda volta representou para alguns um "voto de classe". Foram encorajados a fazê-lo. Nomeadamente por aqueles que uivavam com os lobos contra os muçulmanos ou negavam a violência policial! Também travaram uma guerra estúpida contra as ferramentas intelectuais que nos mostraram como a questão da discriminação religiosa se poderia cruzar com a da classe social: a interseccionalidade, ridicularizada pelos ignorantes. Eles nunca leram Frantz Fanon! Quebrar os consensos podres, como estes, é parte da nossa tarefa. A interseccionalidade é um instrumento para compreender a realidade, tal como o materialismo.
Vai ser candidato nas eleições legislativas?
Não estou a tentar criar um falso suspense, mas continuo hesitante. Não preciso de ser um deputado para ser primeiro-ministro. Seis em 24 desde 1958 não o eram. Por enquanto, vencer as eleições legislativas é o que me interessa.
Entrevista realizada por Diego Chauvet e Julia Hamlaoui para L'Humanité(link is external). Traduzida por Luís Branco para o Esquerda.net.