Um monstro chamado Facebook
A desregulamentação económica permitiu o monopólio do Facebook que hoje ameaça a democracia. Nunca uma só empresa ou entidade concentrou tal poder de manipulação.
Mariana Mortágua, Esquerda.net, 13 de outubro de 2021
Na semana passada, as três principais redes sociais mundiais - o Facebook, o Instagram e o WhatsApp - paralisaram durante seis horas. Pouco importa as suas causas. A avaria mostrou ao Mundo o poder de uma empresa que, sozinha, domina o negócio das interações digitais. Nas poucas horas em que um terço da humanidade se desconectou das aplicações de Mark Zuckerberg, perderam-se 950 milhões de euros.
O apagão deu-se na altura em que o "Wall Street Journal" publica os Facebook Files, baseados em documentação interna da empresa, fornecida por uma ex-trabalhadora. Perante o Senado americano, Frances Haugen denunciou como o gigante da tecnologia coloca os lucros à frente de quaisquer preocupações sociais, éticas, ou democráticas.
O perfil predatório do Facebook, que levou a empresa a comprar os maiores competidores, fez de Zuckerberg o homem mais poderoso à face da terra. O escândalo da Cambridge Analytica mostrou como esse poder de acesso aos dados de milhões de pessoas foi exercido a favor de Trump nas eleições norte-americanas. Anos mais tarde, Zuckerberg decidiu simplesmente bloquear as contas do ex-presidente. Uma decisão discricionária para esconder o papel do próprio Facebook na organização da invasão do Capitólio que marcou a derrota do trumpismo.
Partir o monopólio e o seu algoritmo, acabar com o anonimato e regular a utilização das redes é o mínimo que a sociedade tem a fazer para se proteger
Quem o diz é Haugen, que testemunhou a forma como o Facebook virou as costas às medidas que poderiam ter tornado a aplicação menos nociva. "A empresa esconde informação vital do público, do Governo dos EUA e dos governos mundiais", disse. Segundo as suas denúncias, o Facebook não só falha em eliminar o discurso de ódio online, como desenhou o seu algoritmo para promover esse tipo de interações. Porquê? Porque é esse o seu modelo de negócio: "o Facebook faz mais dinheiro quando você consome mais conteúdo. As pessoas gostam de interagir com coisas que causam uma reação emocional. E quanto mais a raiva a que são expostas, mais elas interagem e consomem". Em nome de lucros astronómicos, a empresa ignorou os estudos que alertavam para o impacto do Instagram na saúde mental dos jovens, e para a utilização das redes sociais no incitamento ao ódio e até ao crime. "O resultado é mais divisão, mais dano, mais mentiras, mais ameaças... Em alguns casos, este discurso perigoso online levou a atos de violência que magoaram e até mataram pessoas".
Um desses casos ocorreu em Myanmar, onde a aplicação foi utilizada para espalhar uma notícia falsa sobre a violação de uma rapariga budista às mãos de muçulmanos. O resultado foi a chacina e perseguição da minoria muçulmana pelas forças de Estado. A ONU considerou o Facebook corresponsável pelo ataque que teve características de genocídio.
A desregulamentação económica permitiu o monopólio do Facebook que hoje ameaça a democracia. Nunca uma só empresa ou entidade concentrou tal poder de manipulação. Partir o monopólio e o seu algoritmo, acabar com o anonimato e regular a utilização das redes (como se de qualquer outro espaço público se tratasse) é o mínimo que a sociedade tem a fazer para se proteger. A má notícia é que nenhuma destas medidas está, neste momento, à vista.
Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 12 de outubro de 2021
Deve-se desmantelar o império do Facebook? Editorial do jornal Libération
Mark Zuckerberg admite uma ''profunda admiração'' pelo imperador romano Augusto, o que não é reconfortante em relação às suas intenções no controle do manete de um monstro cujas recentes revelações mostraram uma toxicidade absoluta
Dov Alfon, Carta Maior/Liberation, 8 de novembro de 2021
"Qual figura histórica poderia servir de modelo para você?" O fundador do Facebook foi questionado no alvorecer de uma espécie de annus horribilis interminável de escândalos cada vez mais manchando sua, até então, agradável imagem.
Mark Zuckerberg poderia ter focado no papel inovador, com Gustave Eiffel, Marie Curie ou Thomas Edison; ele poderia ter jogado com as relações públicas e ter deitado elogios a Nelson Mandela ou Mahatma Gandhi, mas, fiel a si mesmo, ele simplesmente respondeu ao New Yorker: "Sempre tive uma profunda admiração pelo imperador romano Augusto."
Essa declaração tem o mérito de ser verdade, pois o jovem Zuckerberg estudou latim e história clássica muito antes de copiar a ideia de uma rede social entre alunos também chamada de Facebook. Ele e sua esposa deram o nome de August à sua segunda filha em homenagem ao imperador, que reinou ignorando todas as regulamentações do senado e espionando rivais por meio de um sofisticado sistema de escuta ilegal.
Augusto é, sem dúvida, uma melhor escolha como modelo do que, digamos, Calígula, mas não tranquiliza sobre as intenções de Zuckerberg se deixado livre para o que bem entender. A denunciante Frances Haugen sabe algumas coisas sobre isso: os documentos que ela entregou aos reguladores do mercado financeiro em Washington e a vários meios de comunicação demonstram a toxicidade do império do Facebook, cujos algoritmos alimentam a violência, o desânimo, o autoritarismo e a depressão.
Sua vinda à Europa - ela será ouvida no Parlamento Europeu na segunda-feira (8) e na Assembleia Nacional em Paris na quarta-feira - simboliza o novo desejo de ambos os lados do Atlântico de encontrar uma parada para este monstro. O desmantelamento do império do Facebook parece ser a resolução mais fácil e rápida. Zuckerberg não aprovaria isso, mas, afinal, o imperador Augusto sem dúvida teria defendido uma solução muito menos pacífica.
*Publicado originalmente por Libération | Tradução por César Locatelli