Michael Löwy
Neste final do século XX, a ideologia do progresso, da modernização e da expansão (do mercado e da produção) serve, mais do que nunca, para legitimar um sistema de dominação do Norte sobre o Sul, da acumulação ilimitada de lucros em benefício de uma pequena elite e da destruição crescente do meio-ambiente. Toda referência a valores ou critérios não-mercantis é qualificada de “arcaica” e de “obstáculo à modernização”.
Como deve se situar o marxismo face a esta conjuntura? Quais são os instrumentos teóricos de que ele dispõe para desmistificar esta nova figura do fetichismo da mercadoria? Quais são os aspectos da herança marxista que o tornam vulnerável ao produtivismo? Enfim, que devem pensar os movimentos sociais que resistem à expansão modernizadora do capital?
Apresentam freqüentemente Marx como um pensador prisioneiro da ideologia do progresso do século XIX. Esta acusação, sob esta forma geral, é inexata. Existe em Marx uma concepção dialética do progresso, que leva em conta o lado sinistro da modernidade capitalista – que a distingue radicalmente das visões ingênuas (Condorcet) ou apologéticas (Spencer) da gradual e irresistível melhoria da vida social graças à civilização moderna. Isso dito, esta dialética é incompleta, e nem sempre escapa de uma certa teologia.
A visão de Marx
O pensamento de Marx é atravessado por uma tensão entre duas concepções diferentes da dialética do progresso. A primeira é uma dialética hegeliana, teleológica e fechada, tendencialmente eurocêntrica. O objetivo final, necessário e inevitável, legitima os “acidentes históricos” como momentos do progresso enquanto espiral ascendente. A “astúcia da razão” – de fato uma teodicéia – permite explicar e integrar todo acontecimento (mesmo o pior) no movimento irresistível para a liberdade.
Esta forma de dialética fechada – por um fim já predeterminado – não está ausente de certos textos de Marx, que parecem considerar o desenvolvimento das forças produtivas – impulsionado pelas grandes metrópoles européias – como idêntico ao progresso, na medida em que nos conduz necessariamente ao socialismo. Basta pensar em seus artigos sobre a Índia em 1853. Contrariamente aos apologistas do colonialismo, Marx não oculta de forma alguma os horrores da dominação ocidental: “a miséria infligida pelos ingleses no Hindustão é essencialmente diferente e de uma espécie infinitamente mais intensa que tudo que este Hindustão tinha podido sofrer antes”. Longe de trazer um “progresso social”, a destruição capitalista do tecido social tradicional agravou as condições de vida da população. Entretanto, em última análise, apesar dos crimes da Inglaterra, esta foi “um instrumento inconsciente da história” ao introduzir as forças de produção capitalistas na Índia e provocar uma verdadeira revolução social no estado social (estagnante) da Ásia.[1]
Em um segundo artigo, “Os resultados futuros da dominação inglesa na Índia”, Marx explicita seu procedimento: a conquista inglesa da Índia revela, na sua forma mais nua, “a profunda hipocrisia e a barbárie inerente à civilização burguesa”. Entretanto, a Inglaterra cumpriu uma missão histórica progressista, na medida em que “a indústria e o comércio burgueses criam as condições para uma mundo novo”, isto é, o socialismo. A célebre conclusão deste texto resume perfeitamente a grandeza e os limites desta primeira forma de “dialética do progresso”.
“Quando uma grande revolução social tiver dominado os resultados da época burguesa, o mercado mundial e os poderes produtivos modernos, e os tiver submetido ao controle comum dos povos mais avançados, será então, e somente então, que o progresso humano deixar de se parecer com este odioso ídolo pagão que apenas bebe o néctar no crânio dos massacrados” [2].
Marx percebe claramente a natureza contraditória do progresso capitalista e não ignora de forma alguma seu lado sinistro, sua natureza de Moloch exigindo sacrifícios humanos; mas ele não acredita menos no desenvolvimento burguês das forças produtivas em escala mundial -promovido por uma potência industrial como a Inglaterra – e, em última instância, historicamente progressista (isto é, benéfico) na medida em que ele prepara o caminho para a “grande revolução social”[3]
Este tipo de raciocínio teleológico e eurocêntrico- que não é necessário dizer, não é o único que se pode encontrar nos escritos marxistas- serviu, sem dúvida, de base para a doutrina dita “marxista ortodoxa” da Segunda Internacional, com sua concepção determinista do socialismo como resultado inevitável do desenvolvimento das forças produtivas (em contradição crescente com as relações capitalistas de produção). Ele permitiu também o surgimento de teorias “marxistas” justificando a natureza “ progressista da expansão colonial ou imperialista, dos partidários social-democratas da colonização operária” até a recente defesa do papel benéfico do imperialismo pelo economista inglês (que se reclama de Marx) Bill Warren. Enfim, ele pôde ser utilizado pelo produtivismo estalinista, que fazia do “desenvolvimento das forças produtivas” – mais do que o domínio democrático da economia pelos trabalhadores – o critério de “construção do socialismo”.
A lógica desta visão de história pode se resumir por um epigrama do grande historiador marxista inglês E.P. Thompson:
“Qualquer que seja o nome daqueles que o imperador massacrou, o historiador científico (sempre fazendo anotar a contradição) afirma que as forças produtivas aumentaram”[4].
Ser esta filosofia “progressista” de coloração determinista e economicista pode se referir a certos escritos de Marx, não é menos verdadeiro que existe nele uma outra “dialética do progresso”, crítica, não teleológica e fundamentalmente aberta. Trata-se de pensar a história simultaneamente como progresso e como catástrofe, sem privilegiar um dos aspectos, pois a saída do processo histórico não está pré-determinada. Um comentário de Frederic Jameson sobre o Manifesto Comunista, capta bem este procedimento. “Marx exige, com força, que façamos o possível, isto é, pensemos este desenvolvimento (do capitalismo) ao mesmo tempo positiva e negativamente. Trata-se de uma forma de pensar que seria capaz de captar os traços demonstravelmente sinistros do capitalismo, bem como o seu dinamismo extraordinário e libertador simultaneamente, em um só pensamento, e sem atenuar a força de nenhum destes dois julgamentos. Somos conduzidos a elevar nosso espírito a um ponto a partir do qual seria possível compreender que o capitalismo é ao mesmo tempo a melhor coisa que aconteceu à espécie humana e a pior”[5].
Esta dialética é apresentada, por exemplo, em certas passagens de “O Capital”, onde Marx constata que, no capitalismo, “cada progresso econômico é ao mesmo tempo uma calamidade social”; ou ainda quando ele observa que a produção capitalista agride tanto os seres humanos como a própria natureza.
“Assim, ela destrói a saúde física do operário urbano e a vida espiritual do trabalhador rural. Cada passo em direção do progresso da agricultura capitalista, cada ganho de fertilidade a curto prazo, constitui ao mesmo tempo um progresso na ruína das fontes duradouras desta fertilidade. Mais um país, os Estados Unidos do Norte da América, por exemplo, desenvolve-se com base na grande indústria, mas este processo de destruição se realiza rapidamente. A produção capitalista desenvolve, portanto, a técnica e a combinação do processo de produção social esgotando ao mesmo tempos as duas fontes donde brota toda riqueza, a terra e o trabalhador”[6].
No quadro desta variante crítica do materialismo histórico, em ruptura com a visão linear do progresso, a civilização burguesa moderna aparece, em relação com as sociedades pré-capitalistas, ao mesmo tempo como um avanço e como uma regressão. Daí o interesse de Marx e de Engels pelos trabalhos de Maurer ou Morgan sobre as formas comunitárias “primitivas”, das tribos iroquesa até a Marca germânica. A idéia de que o comunismo moderno recupera algumas das qualidades humanas do “comunismo primitivo” destruídas pela civilização baseada na propriedade privada e pelo Estado é um tema que atravessa diversos de seus escritos.
Os últimos trabalhos de Marx sobre a Rússia são um outro documento decisivo da “dialética do progresso” não linear, [de liberta da herança] eurocêntrica. Em sua célebre resposta a Mikhailovsky (1877), ele critica as tentativas de “metamorfosear meu esboço histórico da gênese do capitalismo na Europa ocidental em uma teoria política-filosófica do desenvolvimento geral, imposto pelo destino a todos os povos, quaisquer que sejam as circunstâncias com as quais eles se defrontam”. E nos esboços da carta a Vera Zassoulitsch, Marx concebe a possibilidade de poupar a Rússia dos tormentos do capitalismo, na medida em que, graças a uma revolução russa, a comunidade rural tradicional (obschtchina) poderia servir de base para um desenvolvimento específico ao socialismo. Encontramo-nos aqui no antípoda do raciocínio evolucionista e determinista dos artigos sobre a índia em 1853.
A questão chave continua sendo a da abertura do processo histórico, cujos resultados não são determinados antecipadamente por um vetor de progresso irresistível (“o desenvolvimento das forças produtivas”). É ela que permite deixar em suspenso a definição da natureza última do progresso capitalista: o “pior” ou “melhor” na história (para retomar a formula de Jameson), a antecâmara da catástrofe ou da “grande revolução social”.
Trata-se de um problema que está longe de encontrar uma resposta unívoca em Marx, mas pelo menos no Manifesto Comunista é claramente afirmado que, a cada época, a luta de classes pode terminar seja por uma restruturação revolucionária da sociedade, seja pela ruína comum das classes em conflito. Aplicada à luta de classes moderna, isso significaria que a revolução socialista não é a única possibilidade e portanto que é impossível se pronunciar, a priori, sobre o caráter “progressista” ou “regressivo” do desenvolvimento capitalista das forças produtivas.
O marxismo depois de Marx
No marxismo do século XX, é a primeira versão da teoria do progresso, determinista e economicista, que predominou, tanto na Segunda Internacional como na Terceira (após 1924, em todo caso). Mas encontramos também uma corrente “dissidente”, que retoma e desenvolve as intuições da “dialética aberta” esboçada por Marx.
Rosa Luxemburg foi a primeira a tirar, explicitamente, conclusões contemporâneas a partir da hipótese geral sugerida pelo Manifesto: com sua célebre fórmula, “socialismo ou barbárie”, ela rompeu, da maneira mais radical, com toda teleologia determinista, proclamando o irredutível fator contingente do processo histórico – o que torna possível uma teoria da história que reconheça enfim o lugar do fator “subjetivo”. A consciência dos oprimidos, sua organização revolucionária e sua iniciativa política não são simplesmente — como para os pretensos “marxistas ortodoxos” Kautsky e Plekhanov — fatores acelerando ou retardando o progresso histórico, cuja saída já está pré-determinada pela “contradição entre forças e relações de produção”, mas as forças decisivas para a solução de uma crise capitalista – rumo a emancipação social ou rumo à barbárie. Esta última expressão não designa, em Rosa Luxemburg, um impossível retorno ao passado, uma “regressão” à etapas anteriores do desenvolvimento social, mas principalmente uma barbárie moderna, para a qual a Primeira Guerra Mundial oferecia um exemplo em escala planetária (outros ainda piores viriam a seguir).
O pensamento de Lenin e de Trotsky não se liberaram plenamente da pesada herança do “progressismo” e do produtivismo da Segunda Internacional, mas em um certo número de questões chaves, eles contribuíram de forma significativa para uma visão dialético-crítica do progresso. A teoria do imperialismo de Lenin concebe a expansão mundial do capitalismo não como um processo benéfico (“em última análise”) de desenvolvimento das forças produtivas, mas antes de tudo como uma intensificação das formas mais brutais de dominação sobre os países coloniais ou semi-coloniais, e como fonte de guerras (inter-imperialistas) mais mortíferas. Para retomar a imagem de Marx, no artigo de 1853 sobre a Índia, o monstruoso ídolo pagão continua a exigir sacrifícios humanos ilimitados, mas para Lenin ele não pode mais ser percebido como “instrumento inconsciente” de progresso.
Quanto à teoria da revolução permanente de Trotsky, sua grande contribuição é romper com o eurocentrismo, superando o vínculo mecânico entre nível de desenvolvimento das forças produtivas e maturidade revolucionária, e proclamando, sem hesitação, as “vantagens do atraso”: longe de seguir uma evolução linear —feudalismo, revolução burguesa, desenvolvimento do capitalismo moderno, crescimento das forças produtivas a um grau tal que elas não poderiam mais ser contidas pelas relações de produção, revolução socialista — o movimento social-revolucionário tende a começar nos países periféricos, menos desenvolvidos e menos modernos.
Os trabalhos de Marx e de Engels sobre o “comunismo primitivo” ou a comuna rural tradicional não encontram grande eco no marxismo europeu, exceto em Rosa Luxemburg, que lhe dedicou a maior parte de seu curso de Introdução à economia política. Ela desenvolve nestes textos duas teses perfeitamente heréticas do ponto de vista da doutrina evolucionista do progresso: o período dominado pela propriedade privada poderia não ser mais do que parêntese na história da humanidade , entre duas grandes épocas comunista, a do passado arcaico e a do futuro socialista. Neste espírito, ela proclama seu desejo de uma aliança entre o proletariado europeu e os povos indígenas dos países coloniais, isto é entre o comunismo moderno e o arcaico, contra seu inimigo comum, o imperialismo.
Sem conhecer os escritos em questão de Rosa Luxemburg, o fundador do marxismo latino-americano, o grande pensador peruano José Carlos Mariategui desenvolveu idéias semelhantes. Sua obra continha uma concepção profundamente original do “socialismo indo-americano”, resultado da fusão entre o comunismo proletário moderno e as tradições comunitárias indígenas, de origem pré-colombiana (que ele chamava pelo termo um pouco inadequado de “o comunismo inca”).
Todavia a tentativa mais importante de crítica da ideologia do progresso é sem dúvida a obra – completamente heterodoxa – de Walter Benjamin. Ele foi, talvez, o único a se propor o desenvolvimento de um materialismo histórico que iria abolir radicalmente a idéia de progresso (ver o Livro das passagens parisienses). Para Benjamin, a revolução não é “inevitável” e ainda menos determina pelo nível de desenvolvimento das forças produtivas: ao contrário, ela a concebe como uma interrupção de um progresso catastrófico, cujo indicador era o aperfeiçoamento crescente das técnicas militares — isto é, para retomar sua imagem, como apagar um pavio fumegante que antes que o fogo da tecnologia ficasse incontrolável e provocasse uma explosão fatal a civilização humana (Sentimento único).
Daí seu “pessimismo revolucionário”, seu chamamento angustiado em 1929 à uma “organização do pessimismo” pelo movimento comunista, pois, segundo sua fórmula irônica – e estranhamente premonitória – “apenas podemos ter confiança ilimitada na IG. Farber e no aperfeiçoamento pacífico da Luftwaffe” (O surrealismo). Benjamin reconhece a contribuição positiva do desenvolvimento dos conhecimentos e das técnicas, mas se recusa a considerá-lo, ipso facto , como um progresso humano. Sem negar o potencial emancipador da tecnologia moderna, ele está preocupado com seu domínio social, pelo controle da sociedade sobre suas relações com a natureza. A sociedade sem classes do futuro deverá colocar um fim não somente na exploração do homem pelo homem mas também na da natureza, substituindo as formas destruidoras da tecnologia atual por uma nova modalidade de trabalho, “que, longe de explorar a natureza, pode fazer nascer dela as criações virtuais adormecidas em seu seio” (Teses sobre o conceito de História, 1940).
Recusando uma escrita da história em termos de progresso — que seria a da “civilização” ou da “forças produtivas” — ele se propõe a interpretá-la do ponto de vista de suas vítimas, das classes e povos esmagados pelo carro triunfal dos vencedores. Nesta perspectiva, o progresso lhe aparece como uma tempestade maléfica que distancia a humanidade do paraíso original e que fez da história “uma só catástrofe que continua a empilhar ruína sobre ruína”. A revolução não é mais a locomotiva da história mas a humanidade que puxa os freios de emergência antes do Trem cair no abismo” (Teses sobre o conceito de História).
Notas
[1] Karl Marx, O domínio britânico na Índia. In Sobre o colonialismo, Moscou, Edições de Língua Estrangeira, s.d.
[2] Karl Marx,Os resultados futuros do domínio britânico na Índia, Sobre o colonialismo.
[3] Esta análise da “dialética do progresso” em Marx é amplamente inspirada pelo livro recente de Alex Callinicos, Theories and Narratives: Reflextions on the Philosophy of History, Cambridge, Polity Press, págs. 151-165, mesmo se minhas conclusões são bastante diferentes.
[4] E.P. Thompson, “Histoty lessons “ in Powers and names.London Review of Books. 23/1/1986.
[5] Frederic Jameson, Postmodernism, or the Cultural Logic of Late Capitalism. London. Verso, 1991, p.47.
[6] Karl Marx, Le Capital. Paris, Editons Sociales, tome 1, pages 360-61.
Publicado originalmente nos Cadernos Em Tempo nº 288, maio de 1996. Tradução de José Corrêa Leite.