A relação com a Mãe Terra se torna atualmente – e logo será mais ainda – a questão política decisiva de nossa época. Na luta para impedir a catástrofe da mudança climática irreversível vai se decidir o futuro da humanidade por séculos, senão milênios. É muito decepcionante que tantos companheiros socialistas ainda não tenham se dado conta deste desafio. É nossa tarefa, como ecossocialistas, criticar essa cegueira política, tratando, pacientemente, de convencer nossos camaradas da esquerda.
Sabrina Fernandes entrevista Michael Lowy, Jacobin Brasil, 16 de abril de 2021
Michael, eu gostaria de começar com uma pequena discussão sobre como o entendimento de fronteiras passa por um contexto específico no século XXI. Parece que as mudanças climáticas escancararam de vez o quão artificiais as fronteiras entre países são, mas ainda assim o quão fortes, quando consideramos a disputa de poder geopolítica sobre os rumos do planeta?
A crise ecológica e a mudança climática de fato não conhecem fronteiras. Por isso é mais do que nunca decisivo o internacionalismo, a organização de um movimento planetário contra a oligarquia fóssil e, em última análise, contra o próprio sistema capitalista, que é, como reconhece o Papa Francisco, intrinsecamente perverso.
Isso não impede que as potências capitalistas, enquanto promovem a globalização neoliberal, que é ativamente estimulada pelo Banco Mundial, o FMI e a Organização Mundial do Comércio – todos comprometidos com a indústria fóssil e o ecocídio – disputem as partes do mercado mundial e tentem impor sua hegemonia imperial. É verdade que assistimos a um fenômeno novo, o “nacional-liberalismo”, com Donald Trump, Bolsonaro, Shinzo Abe, no Japão, Boris Johnson e outros, que ao mesmo tempo proclama um nacionalismo agressivo e um neoliberalismo brutal, o que não é nada contraditório. Por último, embora as fronteiras sejam cada vez mais artificiais, os vários governos das potências imperialistas tratam, por todos os meios, de construir muros, barreiras de arame farpado eletrificado, e instalar patrulhas de polícias para impedir o acesso de imigrantes desesperados em busca de sobrevivência a seus países.
E Marx já não havia explicado que o sistema capitalista não pode existir sem formas violentas e bárbaras de dominação?
É interessante, porque a direita liberal, que ajudou a fortalecer figuras como o Bolsonaro, agora finge que não é com ela. Como a extrema direita possui esse teor forte de nacionalismo e bastante conservadorismo social, os liberais tentam se distanciar da imagem negativa do Bolsonaro, mas sabemos que não enxergam nenhum problema em continuar com as políticas de Paulo Guedes, caso cheguem ao Executivo novamente. Essa junção não é nada contraditória, como você disse, até porque estudos sérios sobre a história do liberalismo demonstram sua ligação com os sistemas mais perversos, como a escravidão. Será que o que vivenciamos hoje é um modo do capitalismo garantir seus ganhos sem se importar como? Ora com governos que possuem algumas preocupações com direitos humanos, ora com governos cada vez mais autoritários? É a tendência dessa década?
Como você bem resumiu, aos capitalistas, à oligarquia financeira, aos grandes industriais e ao agronegócio interessa garantir seus lucros. O resto são detalhes sem muita importância. Se o governo assegura uma agenda econômica neoliberal, como a de Paulo Guedes, ele terá o apoio, ativo em alguns setores, passivo em outros, das classes dominantes. Certo, membros mais cultos da elite, ou mais liberais no sentido político, podem ficar incomodados com as insanidades e o autoritarismo neofascista de um Bolsonaro, mas será que assumirão uma oposição consequente? Até agora isso não aconteceu… Nos Estados Unidos, a situação é diferente, um setor da elite dominante, associado ao Partido Democrata, gostaria de por fim ao delirante episódio Trump.
Nada disso é novo, o capitalismo sempre pôde se adaptar a quase tudo: escravidão, trabalho “livre”, democracia parlamentar, fascismo, ditadura militar, governos liberais, social-democratas, nacionalistas ou autoritários. O essencial é que se garanta a taxa de lucro e a acumulação do capital.
As grandes potências possuem uma doutrina imperialista que entende suas próprias fronteiras como impenetráveis, mas as dos outros como alvos a serem penetrados ou demolidos. Como isso se manifesta na construção de uma resistência em países periféricos?
As intervenções imperialistas têm se multiplicado nas últimas décadas, seja na América Latina, seja no Oriente Médio. Temos que combater essas intervenções, que obedecem exclusivamente a interesses econômicos e geopolíticos dessas potências, em especial os Estados Unidos, sem por isso apoiar os regimes ditatoriais, em particular no Oriente Médio, que se encontram em conflito com o império.
A questão é diferente na América Latina, onde os governos são progressistas, por exemplo, na Venezuela, na Bolívia e em Cuba, que, com todos os limites, enfrentam a intervenção imperialista estadunidense. Nesse caso, é importante a solidariedade internacional com a resistência anti-imperialista desses países.
Acredito que um dos grandes méritos da dialética marxista, especialmente na interpretação do marxismo humanista, é romper com uma visão dualista, segundo a qual os problemas estariam somente no indivíduo, cabendo a ele transformar sua própria microrrealidade, ou totalmente localizados na estrutura, de modo a negar a agência de indivíduos no processo. Mesmo assim, sinto que esse entendimento ainda é difícil de comunicar nos esforços de politização, quando a doutrina neoliberal segue puxando a responsabilidade somente para o indivíduo e alguns grupos socialistas negligenciam a importância da agência e liberdade individual. Você acha que a consciência ecológica pode ser terreno fértil para unir esses campos de batalha?
Já nos escritos do jovem Marx, encontramos uma concepção humanista dialética que rompe tanto com o individualismo liberal quanto com um organicismo conservador. Com efeito, a luta socioecológica é um bom exemplo da necessidade de uma visão marxista dialética da agência individual e coletiva. Isso se traduz em dois níveis: um é a complementaridade entre iniciativas individuais, por exemplo, a alimentação vegetariana, e as mudanças estruturais, como o fim dos subsídios à indústria da carne, ou a defesa da floresta contra a expansão destruidora do gado. Para os ecossocialistas, não se trata de opor uma iniciativa à outra, mas de ganhar os vegetarianos para as lutas sociais. As mobilizações socioecológicas, e um possível processo revolucionário de transição ao ecossocialismo, não são possíveis sem que os indivíduos, em grande número, se unam a esse combate coletivo.
Sem dúvida essa luta exige uma vasta coalização social de forças: trabalhadores do campo e da cidade (de ambos os sexos), juventude rebelde, comunidades indígenas, comunidades cristãs, população negra, mulheres, intelectuais, artistas e muitos outros. Mas esses grupos ou essas classes são compostos de indivíduos, cada um com sua história, sua cultura, sua consciência. Sua motivação pode ser cristã, socialista, ecológica, feminista, ou uma convergência de todas estas; ou então, produto de uma experiência direta da destruição ambiental.
Marielle Franco era uma pessoa única, singular, por seu compromisso irredutível com o povo negro das favelas, com as mulheres oprimidas, com o socialismo e com a ecologia; mas ao mesmo tempo era parte de vários coletivos, de associações e de um partido combativo, o PSOL.
Na primeira linha do combate ecológico se encontram as vítimas diretas dos desastres provocados pela voracidade destruidora do capitalismo: comunidades indígenas, mulheres, movimentos camponeses, mas também aqui são indivíduos que encarnam o combate. Indivíduos que muitas vezes pagam com a vida esse compromisso, como foi o caso, entre tantos outros, de Berta Cáceres, dirigente indígena em Honduras, vítima de paramilitares por encabeçar a resistência a projetos ecocidas.
Não por acaso nesses dois exemplos são mulheres que representam a dignidade e a coragem do combate socioecológico: não por uma essência feminina abstrata, mas por sua condição social concreta, as mulheres são mais sensíveis aos estragos ambientais provocados pelo sistema.
Essa convergência de motivações é algo muito forte no movimento ecossocialista. Vemos pessoas que se juntam a partir das mais diversas preocupações. Seria o ecossocialismo um grande ponto de convergência das lutas sociais a partir do materialismo histórico? Uma síntese socialista que, ao trazer a natureza para o primeiro plano, agrega as potências de todas as lutas? Isso me lembra o que Sônia Guajajara costuma dizer: a luta pela Mãe Terra é a mãe de todas as lutas. Me parece um atraso grande quando organizações socialistas negam que a natureza atravessa todas as nossas relações.
O ecossocialismo pode contribuir para a convergência das lutas, ao revelar, com a ajuda do materialismo histórico, a íntima relação entre exploração capitalista, racismo, dominação patriarcal e destruição da natureza. Mas essa convergência deve respeitar a autonomia dos movimentos e das lutas sociais, suas respectivas agendas, seus objetivos. A convergência não é imediatamente dada, deve ser pacientemente construída, por meio do diálogo e das experiências de luta. O Fórum Social Mundial, com todos seus limites, foi uma experiência interessante de convergência desse tipo.
A questão ecológica, a relação com a Mãe Terra, se torna atualmente – e logo será mais ainda – a questão política decisiva de nossa época. Nos próximos anos, na luta para impedir a catástrofe da mudança climática irreversível, vai se decidir o futuro da humanidade por séculos, se não milênios. É muito decepcionante que tantos companheiros socialistas ainda não tenham se dado conta deste desafio: a ficha ainda não caiu, como se dizia no meu tempo – quando ainda havia telefones com fichas. É tarefa nossa, como ecossocialistas, criticar essa cegueira política, tratando, pacientemente, de convencer nossos camaradas da esquerda.
Recentemente, tenho visto análises sobre um “ecofascismo”, que me lembra certos elementos do movimento ambiental mais misantropo, especialmente no final do século XX. Isso inclui discussões que culpam o ser humano como espécie, em vez do conjunto do modo de produção e do padrão “civilizatório”, até discussões alarmistas sobre crescimento populacional e medo de refugiados. No fundo, me pergunto se as conclusões de tais movimentos e pessoas não passam da busca pela resposta mais fácil, mesmo que seja a resposta errada. Enfrentamos o risco de ter a luta ambiental cooptada não somente pelos ecocapitalistas e suas soluções de mercado, mas também pelos conservadores da extrema direita?
Esse perigo existe, sem dúvida. Há ecologistas “fundamentalistas” que denunciam a espécie humana como responsável pela catástrofe ecológica. Outros, sem ir tão longe, acham que o problema principal é o excesso de população. Alguns poucos chegam ao extremo de propor uma espécie de ditadura ecológica – o filósofo ecologista do século passado, Hans Jonas, chegou a especular com essa ideia. Mas são poucos os que representam um verdadeiro “ecofascismo”: se trata, pelo menos por enquanto, de um fenômeno marginal. A extrema direita “fascistante”, na Europa por exemplo, insiste que a ecologia não interessa, o verdadeiro problema são os refugiados e imigrantes. Eles têm manifestado um ódio tremendo por figuras como Greta Thunberg, que alguns acusam de ser uma perigosa “feiticeira”, uma comunista, uma inimiga da civilização ocidental etc.
Os principais representantes de um neofascismo do século XXI, personagens como Donald Trump ou Jair Bolsonaro, são fanaticamente anti-ecológicos, negam o perigo de mudança climática, e buscam, por todos os meios, promover os interesses ecocidas da oligarquia fóssil, nos Estados Unidos, ou do agronegócio, no Brasil. Acabar com o regime desses personagens sinistros é um imperativo categórico, ao mesmo tempo, e inseparavelmente, social e ecológico. O que eles estão fazendo é, simplesmente, acelerar ao máximo a corrida suicida do trem da civilização capitalista industrial em direção ao abismo da mudança climática. Enquanto isso, os “razoáveis”, os capitalistas “ecológicos”, estão propondo pintar de verde a locomotiva.
Vejo como vários capitalistas têm investido em debates como o do Green New Deal para garantir que qualquer projeto de lei aprovado nesse sentido seja favorável aos seus investimentos. Como Naomi Klein falou no This Changes Everything, há até mesmo grandes burgueses da indústria de combustíveis fósseis investindo em renováveis. Qual o tamanho do desafio que encontramos em trazer a ecologia para o centro da discussão, quando os capitalistas agem, com todo seu aparato, para promover mais um passo na mercadorização da natureza? A financeirização da natureza já é uma realidade no mercado global.
De fato, há muitos anos já existe um “capitalismo verde”, interessado no mercado das energias renováveis, e governos propondo políticas de “desenvolvimento sustentável”. Até o Fundo Monetário Internacional jura que vai promover uma economia ecológica. E o resultado de tudo isso? Nada! Ou pior: enquanto os discursos ficam cada vez mais verdes, o céu fica cada vez mais cinzento… As emissões de gases fósseis não só não diminuíram, como continuam aumentando, e os cientistas, cada vez mais preocupados, soam o sinal de alarme. Sob pretexto de “proteger” a natureza, se desenvolvem políticas de privatização das florestas. Se desenvolvem enormes mercados de direitos de emissão, ótimo negócio para bancos e empresas, péssimo para o meio ambiente.
Existem ótimos trabalhos de pensadores ecossocialistas desmistificando essas propostas: O impossível capitalismo verde, de Daniel Tanuro, e O Deus que fracassou: o capitalismo verde, de Richard Smith. O capitalismo não pode existir sem expansão ilimitada, produtivismo, consumismo, e depende, há dois séculos, das energias fósseis. Só uma batalha socioecológica intransigente pode fazê-lo recuar, num primeiro momento, antes de poder superá-lo com um outro modo de produção, ou melhor, um outro modo de vida.
Poderia comentar como a colonização segue sendo um fator central na reprodução econômica, cultural e militar na América Latina? Regiões ricas em bens naturais parecem muito vulneráveis à dominação externa, especialmente quando já existe uma dimensão histórica. Penso, por exemplo, nas mineradoras canadenses e em seu papel destruidor na nossa região, ao mesmo tempo que atuam também de forma contraditória no próprio Canadá: são símbolos de desenvolvimento, enquanto seguem expropriando territórios dos povos originários do Norte.
José Carlos Mariátegui, o genial fundador do marxismo latino-americano, já havia prevenido em 1928: se não houver uma alternativa socialista indo-americana (hoje diríamos afro-indo-americana), os países da América Latina estão condenados a serem semicolônias do império norte-americano. É o que vemos até hoje, sob formas “modernizadas”: para retomar a famosa imagem de Eduardo Galeano, as veias da nossa América continuam abertas, e nossas economias continuam submetidas aos imperativos do mercado mundial, controlado por Nova York, Londres, Berlim etc.
E não se trata só da pilhagem de nossas riquezas naturais: se trata da destruição sistemática do meio ambiente, das florestas, o envenenamento dos rios. O caso da multinacional de petróleo Chevron no Equador, que deixou um imenso território totalmente poluído e destruído, é só um exemplo entre muitos. Tudo isso se passa, bem entendido, com a cumplicidade ativa dos vários governos neoliberais que têm se sucedido na América Latina nas últimas décadas. A exceção foi Cuba, desde 1959, e, de forma parcial, algumas experiências anti-imperialistas no continente, como com Hugo Chávez, na Venezuela. Marx já havia previsto, no Capital, que o “progresso” capitalista é um progresso na ruína das duas fontes da riqueza: a terra e o trabalhador. A América Latina é um belo exemplo dessa regra.
É claro que as multinacionais ianques não são as únicas a promover a destruição ambiental. As canadenses não ficam atrás, em termos de devastação de nosso continente, e têm encontrado, muitas vezes, resistências populares tenazes. É o caso, por exemplo, do Peru, onde a população de Cajamarca se opôs a uma companhia mineradora canadense, que pretendia explorar uma mina de ouro utilizando a água dos rios. Com a palavra de ordem “¡Agua sí, oro no!”, a mobilização popular se levantou contra este projeto destruidor.
No próprio Canadá, as multinacionais que exploram o petróleo mais sujo do planeta, em termos de emissões de CO2, o das chamadas “areias betuminosas”, estão tentando expropriar as terras indígenas e construir enormes oleodutos em seus territórios. James Hansen, o famoso climatologista estadunidense, chegou a dizer que, se esse petróleo for extraído e exportado pelos oleodutos, a luta contra a mudança climática estará perdida. As comunidades indígenas do Canadá têm levado uma luta corajosa contra estes sinistros projetos de “desenvolvimento”, com o apoio de socialistas, ecologistas e sindicalistas. Ao defender seus territórios ancestrais e seus rios, essas comunidades estão na primeira linha do combate da humanidade para prevenir a catástrofe ecológica planetária.
Anticolonialistas tem se mobilizado no mundo inteiro em solidariedade aos indígenas do Canadá. Recentemente foi publicado em várias línguas um manifesto internacional de apoio à sua luta, assinado por uns duzentos artistas e poetas surrealistas de dezenas de países.
Em um dos seus textos recentes, você falou sobre a “racionalidade democrática das classes populares”. Uma visão tradicional e elitista da política afirma com frequência que a maior parte da população tem preguiça de participar da política, resumindo-se ao voto, mas eu vejo isso como um problema de tempo e de organização política. Uma mulher periférica que trabalha oito horas ao dia fora de casa, gasta três horas no transporte público e ainda precisa cuidar das tarefas domésticas, se não participa de decisões políticas cotidianas não é necessariamente por falta de interesse, mas por exaustão. Que políticas nos ajudam a romper barreiras de tempo de disponibilidade para facilitar o florescimento dessa racionalidade democrática?
A racionalidade democrática das classes populares é uma aposta dos revolucionários. Nem sempre o comportamento da população obedece a tal critério, mas, em última análise, nossa esperança é que essa racionalidade será hegemônica.
Na batalha para permitir que as camadas oprimidas, e em particular as mulheres, possam participar da vida política, tem um lugar muito importante a exigência de uma redução da jornada de trabalho. Com menos horas de trabalho e mais tempo livre, se criam condições para uma efetiva participação democrática. Não por acaso Marx escreveu no Capital que a redução da jornada de trabalho era o primeiro passo para estabelecer o Reino da Liberdade. No caso das mulheres, é essencial a luta por serviços públicos para a infância, como creches, e pela partilha igualitária das tarefas domésticas entre os sexos.
Mas mesmo nas difíceis condições atuais, e das últimas décadas, não faltaram momentos em que a irrupção das massas populares, dos trabalhadores, da juventude, das mulheres, conseguiu colocar na ordem do dia uma agenda democrática e popular: as grandes greves do ABC em 1978-79, a fundação do PT em 1980 e do MST alguns anos depois, a mobilização de 1984 pelas “Diretas Já”, a campanha pelo impeachment de Collor, e assim por diante, até as Jornadas de 2013. Não tenho dúvidas de que o mesmo acontecerá, mais cedo ou mais tarde, contra a clique neofascista que atualmente governa o Brasil.
No caso de 2013, tivemos o desafio. As Jornadas começaram com uma cara bastante popular, especialmente na demanda por direito à cidade, mas a despolitização das pautas cresceu à medida que as ruas ficaram mais cheias. Vejo que existe hoje na esquerda um certo medo de movimentos massivos sem lideranças centrais, pois a direita, sobretudo através da grande imprensa, possui uma capacidade de cooptação enorme. Ao mesmo tempo, Bolsonaro e Trump alimentam desconfiança contra a grande imprensa que não lhes é favorável, mas com o intuito de promover fake news mais despolitizadoras ainda. Como fica a batalha por comunicação e uma mídia mais democrática nesse cenário?
É importantíssimo a esquerda, e as forças populares construírem sua própria mídia e utilizarem as redes sociais para difundir sua mensagem. No Brasil, um setor importante da Igreja é solidário com os movimentos sociais e utiliza suas próprias redes de comunicação. Existem também alguns espaços a serem utilizados na grande imprensa, sobretudo quando esta acaba sendo obrigada, como é o caso no Brasil, a se opor ao governo. Temos de utilizar todos os meios para combater as fake news, que sempre foram, desde Joseph Goebbels, o método favorito dos fascistas.
A batalha da comunicação no Brasil não passa só pela mídia. O Carnaval é um espaço fundamental, e a performance das Escolas de Samba de esquerda no ano passado foi um grande avanço! O mesmo vale para as torcidas de futebol, que neste ano assumiram a vanguarda do protesto contra Bolsonaro.
É verdade que a direita conseguiu hegemonizar os protestos de rua de 2014 a 2016, mas isso dificilmente poderá acontecer agora, com a capacidade de mobilização do bolsonarismo em franco declínio.
Quando a pandemia do coronavírus foi declarada, muito se falou na grande imprensa sobre um “novo normal”, em que as pessoas se sentiriam mais conectadas e reveriam suas posturas diante das mortes e do sofrimento, porém, mais uma vez, o sistema se adaptou. Você vê a possibilidade de algum grande evento global realmente agir como catalizador de uma mudança civilizatória que não seja esforço direto de um programa ecossocialista?
Não posso prever se haverá ou não eventos catalisadores no futuro. Mas não podemos esperar por alguma catástrofe ou epidemia para lutar por uma mudança civilizatória. Precisamos, desde já, começar a popularizar nosso programa ecossocialista. É muito importante difundir conferências, brochuras, livros e multiplicar as iniciativas nas redes sociais para explicar nossa proposta, a impossibilidade de um “capitalismo verde”, e a necessidade de uma transição ecológica revolucionária. Não por acaso o interesse pelo ecossocialismo tem se intensificado no Brasil e no resto do mundo. Aliás, acaba de ser fundada uma Rede Global Ecossocialista (Global Ecosocialist Network) que se propõe a estabelecer vínculos entre os ecossocialistas do Norte e do Sul do planeta.
Entretanto, o principal ponto de partida são as lutas concretas, socioecológicas, que se enfrentam com a lógica do sistema. Por exemplo, as lutas de comunidades indígenas, na Amazônia e em outras regiões do país, contra a devastação de nossas florestas e nossos rios pela mineração, pelo agronegócio, pelo gado e pela soja; a luta do MST contra os pesticidas e por uma reforma agrária favorável à agricultura orgânica; a luta da juventude das grandes cidades pelo transporte público gratuito, demolindo as catracas. Poderia multiplicar os exemplos. É nessas lutas que se desenvolve uma consciência anticapitalista, assim como a compreensão da necessidade de auto organização pela base, e a consciência de que somente pelo combate coletivo se consegue impor as exigências dos oprimidos e explorados.
A tarefa dos ecossocialistas é participar dessas lutas, apoiá-las, ajudar a organizá-las, levando em seu seio a proposta ecossocialista.
Se o “normal” era parte do problema e o “novo normal” atua como mais do mesmo, especialmente quando consideramos o enriquecimento de bilionários durante um dos períodos mais difíceis para a população global, que medidas imediatas nos seriam úteis para unir demandas gerais e desafiar essa ordem que se renova?
Com efeito, as classes dominantes, assim que a pandemia se acalmar um pouco, tratarão de voltar ao business as usual, ao mesmo de sempre, ao paraíso dos exploradores, em que uma dúzia de multimilionários possui o equivalente da riqueza de metade da humanidade.
Elaborar um programa de demandas é tarefa de todos, não posso dar uma resposta efetiva. Mas acho que um programa desse tipo, no Brasil, deveria incluir, entre outros objetivos, uma profunda reforma fiscal que acabe com os escandalosos privilégios de uma ínfima minoria de oligarcas; uma reforma agrária radical, com critérios ecológicos, favorecendo a agricultura camponesa e orgânica contra o agronegócio ecocida; a defesa da Amazônia e dos Povo da Floresta contra a sanha destruidora das mineradoras e do latifúndio; a redução da jornada de trabalho, sem diminuição do salário, como solução ao dramático crescimento do desemprego.
Diante disso tudo, dá para manter “o pessimismo da razão e o otimismo da vontade”? Enquanto a época de coaches liberais promove a busca pelo “lado bom da coisa”, é fácil se desanimar com as derrotas. O que você diria para quem se sente desanimado politicamente no momento?
As derrotas, assim como as vitórias, fazem parte da história do socialismo e das lutas sociais. O pessimismo da razão nos adverte da gravidade da situação, do perigo crescente de catástrofe ecológica e do grande poder de nossos adversários, neofascistas e neoliberais – ou os dois ao mesmo tempo! Mas também há sinais de esperança: o socialismo nunca teve tantos partidários e simpatizantes nos Estados Unidos e na Inglaterra como hoje. A mobilização da juventude contra a mudança climática, inspirada pelo apelo de Greta Thunberg, mobilizou milhões no mundo inteiro. Poderíamos multiplicar os exemplos, inclusive no Brasil. Obviamente, não há nenhuma garantia de que o ecossocialismo vencerá, e que a humanidade conseguirá escapar da catástrofe. Esta é, como diriam Lucien Goldmann, meu mestre, e Daniel Bensaïd, meu camarada, uma aposta, pela qual engajamos nossa vida, individual e coletivamente. Se os revolucionários só se mobilizassem estando seguros da vitória, nunca teria havido uma revolução. Este então é o otimismo da vontade: como dizia Brecht, quem luta pode perder, quem não luta já perdeu.