[Este texto, escrito para uma mesa do III Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre em janeiro de 2003, mantem uma grande atualidade na conjuntura de enormes retrocessos civilizacionárias em que vivemos. Ele circulou muito no período inicial dos FSMs, sendo depois publicado pela revista francesa La Pensée, mas caindo no esquecimento no Brasil que o inspirou.]
Michael Löwy e Frei Betto, La Pensée 335, setembro de 2003
Propomos, nestas páginas, alguns temas possíveis para o debate em torno da questão: "Princípios e valores da nova sociedade". Não se tratam de axiomas, mas de hipóteses de trabalho e sugestões de reflexão.
Nós, do Fórum Social Mundial, acreditamos em certos valores, que iluminam o nosso projeto de transformação social e inspiram a nossa imagem de um novo mundo possível. Aqueles que se reúnem em Davos - banqueiros, executivos e chefes de Estado, que dirigem a globalização neoliberal (ou globocolonização) - também defendem valores. Não devemos subestimá-los, pois eles acreditam em três grandes valores e estão dispostos a lutar com todos os meios para salvaguardá-los – até guerra, se for preciso. Três importantes valores, contidos no coração da civilização capitalista ocidental, na sua forma atual. Os três grandes valores do credo de Davos: o dólar, o euro e o yen. Estes três não deixam de ter suas contradições, mas, juntos, constituem a escala de valores neoliberal globalizada.
A principal característica comum destes três valores é a sua natureza estritamente quantitativa: eles não conhecem o bem e o mal, o justo e o injusto. Conhecem apenas quantidades, números, cifras: um, cem, mil, um milhão, um bilhão. Quem tem um bilhão – de dólares, euros ou yens – vale mais do que quem tem só um milhão, e muito mais do que aquele que só tem mil. E, obviamente, aquele que não tem nada, ou quase nada, nada vale na escala de valores de Davos. É como se não existisse. Está fora do mercado e, portanto, do mundo civilizado.
Juntos, os três valores constituem uma das divindades da religião econômica liberal: a Moeda ou, como se dizia em aramaico, Mamon. As outras duas divindades são o Mercado e o Capital. Trata-se de fetiches ou ídolos, objetos de um culto fanático e exclusivo, intolerante e dogmático. Este fetichismo da mercadoria, segundo Marx ; ou esta idolatria do mercado - para utilizar a expressão dos teólogos da libertação Hugo Assmann e Franz Hinkelammert - e do dinheiro e do capital, é um culto que tem suas igrejas (as Bolsas de Valores); seus Santos Ofícios (FMI, OMC etc.) ; e a perseguição aos herejes (todos nós que acreditamos em outros valores). Trata-se de ídolos que, como os deuses cananeus Moloch ou Baal, exigem terríveis sacrifícios humanos: no Terceiro Mundo, as vítimas dos planos de ajuste estrutural, homens, mulheres e crianças sacrificados no altar do fetiche Mercado Mundial e do fetiche Dívida Externa.
Um corpo impressionante da regras canônicas e princípios ortodoxos serve para legitimar e santificar esses rituais sacrificiais. Um vasto clero de especialistas e gestores explica os dogmas do culto às multidões profanas, mantendo as opiniões heréticas longe da esfera pública. As regras éticas desta religião são as já estabelecidas, há dois séculos, pelo teólogo econômico Sir Adam Smith: que cada indivíduo busque, da maneira mais implacável possível, seu interesse egoísta, sem prestar atenção a seu próximo, e a mão invisível do deus-mercado cuidará do resto, trazendo harmonia e prosperidade a toda a nação.
Esta civilização do dinheiro e do capital transforma tudo em mercadoria - a terra, a água, o ar, a vida, os sentimentos, as convicções -, que se vende pelo melhor preço. Até as pessoas ficam submissas à mercadoria, pois subverte a relação humanitária pessoa-mercadoria-pessoa. Visto esta camisa de algodão, que é uma mercadoria, para humanizar minha convivência social, pois seria estranho que eu comparecesse sem camisa no trabalho ou num encontro entre amigos. Agora, a relação predominante é mercadoria-pessoa-mercadoria. A grife da camisa que visto me imprime valor. Em outras palavras, se chego à sua casa de ônibus ou bicicleta, tenho um valor Z. Se chego de BMW, tenho um valor A. Sou a mesma pessoa e, no entanto, a mercadoria que me reveste me imprime mais ou menos valor, reificando-me.
Já no século XIX, um crítico da economia política havia previsto, com lucidez profética, o mundo de hoje: "Chegou, enfim, um tempo em que tudo o que os seres humanos haviam considerado inalienável tornou-se objeto de troca, de tráfico e pode alienar-se. É o tempo em que as coisas mesmas, que até então eram comunicadas, mas nunca trocadas; dadas, mas nunca vendidas; conquistadas, mas nunca compradas – virtude, amor, opinião, ciência, consciência etc – em que tudo, enfim, passou para o comércio. É o tempo da corrupção geral, da venalidade universal ou, para falar em termos de economia política, o tempo em que qualquer coisa, moral ou física, tendo-se tornado valor venal, é levada ao mercado para ser apreciada por seu valor adequado". [1]
Valores qualitativos
Face a esta civilização da mercantilização universal, que afoga todas as relações humanas nas "águas geladas do cálculo egoísta" [2], o Fórum Social Mundial representa, antes de tudo, uma recusa: "o mundo não é uma mercadoria"! Isto é, a natureza, a vida, os direitos do homem, a liberdade, o amor, a cultura, não são mercadorias. Mas o FSM encarna também a aspiração a um outro tipo de civilização, baseada em outros valores que não o dinheiro ou o capital. São dois projetos de civilização e duas escalas de valores que se enfrentam, de forma antagônica e perfeitamente irreconciliável, no umbral do século XXI.
Quais os valores que inspiram este projeto alternativo? Trata-se de valores qualitativos, éticos e políticos, sociais e culturais, irredutíveis à quantificação monetária. Valores que são comuns à maior parte dos grupos e das redes que constituem o grande movimento mundial contra la globalização neoliberal.
Podemos partir dos três valores que inspiraram a Revolução Francesa de 1789 e, desde então, estão presentes em todos os movimentos de emancipação social da história moderna: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Como assinala Ernst Bloch em seu livro Direito Natural e Dignidade Humana (1961), estes princípios, inscritos pela classe dominante no frontão dos edifícios públicos na França, nunca foram por ela realizados. Na prática, escrevia Marx, eles foram, muitas vezes, substituídos por Cavalaria, Infantaria e Artilharia... Fazem parte da tradição subversiva do inacabado, do ainda não-existente, das promessas que não foram cumpridas. Possuem uma força utópica concreta, que "vai bem além do horizonte burguês", uma força de dignidade humana que aponta para o futuro, para a "marcha de cabeça levantada" da humanidade, para o socialismo [3]. Se examinarmos de perto estes valores, do ponto de vista das vítimas do sistema, descobriremos seu potencial explosivo e sua atualidade no combate atual contra a mercantilização do mundo.
O que significa "liberdade"? Antes de tudo, liberdade de expressão, de organização, de pensamento, de crítica, de manifestação – duramente conquistada por séculos de lutas contra o absolutismo, o fascismo e as ditaduras. Mas, também, e hoje mais do que nunca, a liberdade em relação a uma outra forma de absolutismo: a ditadura dos mercados financeiros e da elite de banqueiros e empresários multinacionais que impõem seus interesses ao conjunto do planeta. Uma ditadura imperial – sob a hegemonia econômica, política e militar dos Estados Unidos, única superpotência global - que se esconde por detrás das anônimas e cegas "leis do mercado", e cujo poder mundial é bem superior ao do Império Romano ou dos impérios coloniais do passado. Uma ditadura que se exerce pela própria lógica do capital, mas que se impõe com a ajuda de instituições profundamente antidemocráticas, como o FMI ou a OMC, e sob a ameaça de seu braço armado (a OTAN). O conceito de "libertação nacional" é insuficiente para dar conta deste significado atual da liberdade, que é, ao mesmo tempo, local, nacional e mundial, como o demonstra tão bem este movimento profundamente original e inovador que é o zapatismo.
Uma das grandes limitações da Revolução Francesa de 1789 foi ter excluido as mulheres da cidadania. A feminista republicana Olympe de Gouges, que escreveu a "Declaração dos direitos da mulher e da cidadã", foi guilhotinada em 1793. O conceito moderno de liberdade não pode ignorar a opressão de gênero que recae sobre a metade da humanidade, e a importãncia capital da luta das mulheres por sua libertação. Neste combate tem particular significado o direito das mulheres de disporem de seu próprio corpo.
Igualdade e Fraternidade
O que significa "igualdade"? Nas primeiras Constituições revolucionárias inscreveu-se a igualdade perante a lei. Esta é absolutamente necessária - e longe de existir na realidade do mundo de hoje – mas bem insuficiente. O problema de fundo é a monstruosa desigualdade entre o Norte e o Sul do planeta e, dentro de cada país, entre a pequena elite que monopoliza o poder econômico e os meios de produção, e a grande maioria da população, que vive de sua força de trabalho - quando não está no desemprego, e excluída da vida social. As cifras são conhecidas: quatro cidadãos dos EUA – Bill Gates, Paul Allen, Warren Buffett e Larry Ellyson - concentram em suas mãos uma fortuna equivalente ao Produto Interno Bruto de 42 países pobres, com uma população de 600 milhões de habitantes. O sistema da dívida externa, a lógica do mercado mundial e o poder ilimitado do capital financeiro levam a uma agravação dessa desigualdade, que se agravou nos últimos 20 anos. A exigência de igualdade e de justiça social – dois valores inseparáveis – inspira os vários projetos sócio-econômicos alternativos que estão na ordem do dia. Do ponto de vista de uma perspectiva mais ampla, isso implica um outro modo de produção e distribuição.
A desigualdade econômica não é a única forma de injustiça na sociedade capitalista liberal: a perseguição dos "indocumentados" na Europa ; a exclusão dos descendentes de escravos negros e indígenas nas Américas ; a opressão de milhões de indivíduos que pertencem às castas de "intocáveis" na Índia; e tantas outras formas de racismo ou discriminação por razões de cor, religião ou língua, são onipresentes do Norte ao Sul do planeta. Uma sociedade igualitária significa a radical supressão destas discriminações. Ela implica também uma outra relação entre homens e mulheres, rompendo com o mais antigo sistema de desigualdade da história humana – o patriarcado –, responsável pela violência contras as mulheres, por sua marginalização na esfera pública, e por sua exclusão do emprego. A grande maioria de pobres e desempregados no mundo são mulheres.
O que significa "fraternidade"? É a tradução moderna do velho princípio judaico-cristão: o amor ao próximo. É a substituição das relações de competição, concorrência feroz, guerra de todos contra todos – que fazem do indivíduo, na sociedade atual, um homo homini lupus (um lobo para os outros seres humanos) –, por relações de cooperação, partilha, ajuda mútua, solidariedade. Uma solidariedade que inclui não só os irmãos ("frater", em latim), mas também as irmãs, e que supera os limites da família, do clã, da tribo, da etnia, da comunidade religiosa, da nação, para se tornar autenticamente universal, mundial, internacional. Em outras palavras: internacionalista, no sentido que deram a este valor gerações inteiras de militantes do movimento operário e socialista.
A mundialização neoliberal produz e reproduz os conflitos tribais e étnicos, as guerras de “purificação étnica", os expansionismos belicosos, os integrismos religiosos intolerantes, as xenofobias. Tais pânicos, induzidos pelo sentimento de perda de identidade, são o outro lado da mesma medalha, o complemento inevitável da globalização imperial. A civilização com que sonhamos será “um mundo no qual cabem muitos mundos” (segundo a bela fórmula dos zapatistas), uma civilização mundial da solidariedade e da diversidade. Face à homogeneização mercantil e quantitativa do mundo, face ao falso universalismo capitalista, é mais do que nunca importante reafirmar a riqueza que representa a diversidade cultural, e a contribuição única e insubstituível de cada povo, de cada cultura, de cada indivíduo.
A democracia como valor imprescindível
Há outro valor que, desde 1789, é inseparável dos outros três: a democracia. Não só no sentido limitado que este conceito político tem no discurso liberal/democrático – a livre eleição de representantes cada tantos anos –, na realidade deformada e viciada pelo controle que exerce o poder econômico sobre os meios de comunicação. Esta democracia representativa – também fruto de muitas lutas populares, e constantemente ameaçada pelos interesses dos poderosos, como o demonstra a história da América Latina de 1964 a 1985 – é necessária mas insuficiente. Necessitamos de formas superiores, participativas, que permitam à população exercer diretamente seu poder de decisão e controle – como no caso do orçamento participativo do município de Porto Alegre e do estado do Rio Grande do Sul.
O grande desafio, do ponto de vista de um projeto de sociedade alternativa, é estender a democracia para o terreno econômico e social. Por que permitir, neste campo, o poder exclusivo de uma elite que recusamos na área política? Uma democracia social significa que as grandes opções sócio-econômicas, as prioridades de investimentos, as orientações fundamentais da produção e da distribuição, são democraticamente discutidas e decididas pela própria população, e não por um punhado de exploradores ou pelas supostas "leis do mercado" (ou, ainda, variante que já foi à falência, por um Birô Político onipotente).
A estes grandes valores, produto da história revolucionária moderna, devemos acrescentar um outro, que é ao mesmo tempo o mais antigo e o mais recente: o respeito ao meio ambiente. Encontramos este valor no modo de vida das tribos indígenas das Américas e das comunidades rurais pré-capitalistas de vários continentes, mas também no centro do moderno movimento ecológico. A mundialização capitalista é responsável por uma destruição e envenenamento acelerados – em crescimento geométrico – do meio ambiente: poluição da terra, do mar, dos rios e do ar; "efeito estufa", com conseqüências catastróficas; perigo de destruição da camada de ozônio, que nos protege das irradiações ultravioleta mortais; aniquilamento das florestas e da biodiversidade. Uma civilização da solidariedade não pode ser senão uma civilização da solidariedade com a natureza, porque a espécie humana não poderá sobreviver se o equilíbrio ecológico do planeta for rompido.
Socialismo como alternativa
Esta lista não tem nada de exaustiva. Cada um poderá, em função de sua experiência própria e de sua reflexão, acrescentar outros. Como resumir em uma palavra este conjunto de valores presentes, de uma forma ou de outra, no movimento contra a globalização capitalista, nas manifestações de rua de Seattle a Gênova, e nos debates do Fórum Social Mundial? Creio que a expressão civilização da solidariedade é uma síntese apropriada deste projeto alternativo. Isto significa, não só uma estrutura econômica e política radicalmente diferente, mas, sobretudo, uma sociedade alternativa que valorize as idéias de bem comum, de interesse público, de direitos universais, de gratuidade.
Propomos definir esta sociedade com um termo que resume, há quase dois séculos as aspirações da humanidade a uma nova forma de vida, mais livre, mais igualitária, mais democrática e mais solidária. Um termo que – como todos os outros ("liberdade", "democracia" etc.) – foi manipulado por interesses profundamente antipopulares e autoritários, mas que, nem por isso, perdeu seu valor originário e autêntico: socialismo.
Em recente pesquisa de opinião pública brasileira, encomendada pela Confederação Nacional das Indústrias (!), 55% dos interrogados afirmaram que o Brasil precisava de uma revolução socialista. Ao serem perguntados o que entendiam por socialismo, responderam citando alguns valores: "amizade", "comunhão", "partilha", "respeito", "justiça" e "solidariedade". A civilização da solidariedade é uma civilização socialista.
Para concluir: um outro mundo é possível, baseado em outros valores, radicalmente antagônicos aos que dominam hoje. Mas não podemos esquecer que o futuro começa desde agora: estes valores já estão prefigurados nas iniciativas que orientam o nosso movimento hoje. Eles inspiram a campanha contra a dívida do Terceiro Mundo e a resistência aos projetos da OMC; o combate aos transgênicos e os projetos de taxação da especulação financeira. Estão presentes nos combates sociais, nas iniciativas populares, nas experiências de solidariedade, de cooperação e de democracia participativa – desde o combate ecológico dos camponeses da Índia, até o orçamento participativo do Rio Grande do Sul; desde as lutas pelo direito de sindicalização na Coréia do Sul, até as greves em defesa dos serviços públicos na França; desde as aldeias zapatistas de Chiapas, até os acampamentos do MST.
O futuro começa hoje e aqui, nessas sementes de uma nova civilização, que estamos plantando em nossa luta, e com o nosso esforço de construir homens e mulheres novos a partir dos valores subjetivos e éticos que assumimos em nossas vidas militantes.
[1] Karl Marx, Misère de la philosophie, Paris, Ed. Sociales, 1947, p.33.
[2] Expressão de Marx no Manifesto Comunista.
[3][3] Ernst Bloch, Droit Naturel et Dignité Humaine, Paris, Payot, 1976, pp.177-179.