O abraço da social-democracia ao social-liberalismo é em última instância reflexo da transição do capitalismo fordista para o capitalismo neoliberal. Ao encarregar-se de políticas de orientação neoliberal, a social-democracia destruiu gradualmente a sua pretensão de representar uma alternativa.
Michel Husson, Esquerda.net, 29 de maio de 2021
“Porque é que os partidos social-democratas não implementam políticas social-democratas?”, perguntou há uns anos um deputado socialista europeu num debate público. A questão era tanto mais relevante quanto, nesse momento, a maioria dos governos europeus eram de orientação social-democrata ou semelhante. Esta questão coloca-se de forma ainda mais aguda hoje, quando o declínio da social-democracia europeia está a deixar um grande vazio em muitos países.
O livro que o sociólogo belga Mateo Alaluf acaba de publicar oferece uma perspetiva histórica muito atual. O seu título Le socialisme malade de la social-démocratie(link is external) é suficientemente explícito: a social-democracia renunciou a ultrapassar o capitalismo.
Este livro oferece uma descrição detalhada de cinco países europeus: Alemanha, Bélgica, França, Reino Unido e Suécia. Recorda a génese dos partidos social-democratas antes da Primeira Guerra Mundial. Fosse qual fosse a sua denominação, os partidos da Segunda Internacional reclamavam-se então do marxismo e da luta de classes. Fixavam como objetivo a propriedade coletiva dos meios de produção. Mas as tensões entre revolucionários e gradualistas já estavam presentes e levaram à rutura entre os partidos socialistas e comunistas depois do conflito. Foi especialmente a partir da Segunda Guerra Mundial que os partidos socialistas tiveram peso na implementação das reformas sociais. Foi o período dos “compromissos sociais” que acompanharam e sustentaram a expansão do que se costuma chamar os Trinta Gloriosos.
Há aqui um primeiro paradoxo: esta influência da social-democracia não passou principalmente pela participação no governo. Como já observámos numa contribuição anterior(link is external), os governos de esquerda ou de coligação foram bastante escassos: nada na Alemanha até aos princípios da década de 1970; algumas participações em França durante a Quarta República; governo trabalhista no Reino Unido nos princípios da década de 1950, depois entre 1965 e 1970; nada em Itália. Este foi o momento em que Nixon pôde proclamar que “somos todos keynesianos”: os governos eram, em certo sentido, todos social-democratas.
O tempo da renúncia
A grande mudança remonta à recessão global de meados da década de 1970. É neste ponto que começa aquilo que Mateo Alaluf chama o processo de “des-socialdemocratização”. Para ele, foi “o tempo da renúncia”. De facto, a recessão de 1974-1975 demonstrou que as receitas keynesianas já não eram suficientes para relançar a atividade e menos ainda para restaurar a rentabilidade. As medidas até então consideradas como elementos favoráveis à regulação da economia surgiam agora como contraproducentes. Foi, por exemplo, a aceitação de uma certa dose de inflação, que tinha jogado um papel importante no financiamento da acumulação de capital e dos estabilizadores automáticos (impostos, prestações sociais), que reduziram a magnitude das flutuações ao apoiar a procura.
Depois de 1975, a desaceleração da produtividade laboral minou as bases do acordo em que se baseava a legitimidade social-democrata.
Encontramo-nos então numa verdadeira encruzilhada. Ou o processo da socialização da economia atingia uma nova etapa, ou tinha lugar um verdadeiro ponto de inflexão para um capitalismo desregulado. A possibilidade de um caminho intermédio que assegurasse uma compatibilidade mínima entre as orientações social-democratas e o capitalismo realmente existente estava na realidade bloqueada, porque se tinham rompido as molas do capitalismo fordista. De facto, o fordismo baseou-se no acoplamento entre um forte aumento dos ganhos de produtividade e dos salários. O primeiro garantia a rentabilidade, o segundo proporcionava uma procura sólida. Daí a referência a Ford, que explicava que os seus trabalhadores tinham que ser bem pagos para poderem comprar os carros que produziam. Mas a desaceleração dos ganhos de produtividade minou as bases deste compromisso e, com isso, a legitimidade social-democrata
É por exemplo Helmut Schmidt, o chanceler social-democrata alemão entre 1974 e 1980, quem enuncia o famoso teorema segundo o qual: “os lucros de hoje são os investimentos de amanhã e os empregos de depois de amanhã”. É sabido o que aconteceu: os lucros recuperaram mas o investimento não se manteve e muito menos o emprego. O desemprego massivo reforçou-se e serviu como uma alavanca para a moderação salarial eterna, a flexibilidade e a precarização do trabalho.
Nos Estados Unidos e no Reino Unido, esta grande viragem neoliberal foi implementada pelos governos ultra-conservadores de Ronald Reagan e de Margaret Thatcher. Em França, foi um governo socialista quem o assumiu. Noutros países, como assinala Mateo Alaluf, “a social-democracia e grande parte dos sindicatos juntaram-se ao compromisso histórico ou a outros pactos sociais”.
O sociólogo belga resume a razão fundamental desta bifurcação:“Durante este período crucial, a social-democracia tomou a decisão de acompanhar a transição da forma fordista para a forma neoliberal do capitalismo porque a alternativa teria sido um questionamento do próprio capitalismo o que ultrapassava o seu horizonte”.
O segundo paradoxo sublinhado pelo investigador é que a década de 1990 caracterizou-se por “uma maior presença de social-democratas no governo em comparação com a década anterior”. E isto continuou a ser válido até à crise de 2008, se se quiser considerar que o New Labour de Tony Blair e a grande coligação na Alemanha continuam a ser parte da social-democracia.
O abraço da social-democracia ao social-liberalismo é, portanto, em última instância, o reflexo da transição do capitalismo fordista para o capitalismo neoliberal. Esta observação é decisiva: ao encarregar-se de políticas de orientação neoliberal, a social-democracia destruiu gradualmente a sua pretensão de representar uma alternativa. A tese essencial da obra é que o desaparecimento da social-democracia resulta da sua incapacidade para encarnar um projeto de transformação socialista: é a causa da sua “doença” para utilizar o título do seu livro.
Uma esperança americana
Esta recensão não tem em conta toda a riqueza do livro, que sabe distinguir entre as diferentes versões da social-democracia. Ele assinala um ponto importante: na medida em que a potência da social-democracia estava de alguma foram indexada à taxa de crescimento, estava impregnada de uma lógica produtivista. Daí a sua dificuldade e atraso em ter em conta a dimensão ecológica
Portanto, o panorama geral não é francamente otimista, especialmente se observarmos que o declínio da social-democracia vem acompanhado de uma progressão dos partidos de extrema-direita ou da abstenção.
Uma nota de esperança chega dos Estados Unidos, com a crescente influência dos democratas socialistas, cujas figuras mais conhecidas são Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez. O seu programa a favor de um Green New Deal, com a saúde para todas e todos (Medicare for all) e com a garantia de emprego, retoma, como recorda Mateo Alaluf, uma longa tradição de movimentos sociais que ressurgem graças a isso. De um certo ponto de vista, poder-se-ia até (de momento) caracterizar a política de Joe Biden de social-democrata ou de rooseveltiana. Pode colocar-se a questão, de passagem, se a credibilidade do seu programa não se baseia em última instância no privilégio exorbitante dos Estados Unidos de serem financiados pelo resto do mundo. Mas esse é outro debate.
Voltando à Europa, é forçoso constatar que há poucos exemplos de tal renovação. Com raras exceções (talvez o Estado Espanhol ou Portugal), a esquerda, até no seu sentido mais amplo, continua fragmentada. Os movimentos sociais realmente existentes, seja qual for a sua riqueza, ainda não cristalizaram de forma a criar uma alternativa à escala das massas.
Deste ponto de vista, o livro de Mateo Alaluf é uma ferramenta preciosa para entender porque chegámos a isto e para pensar em formas de recuperarmos.
Michel Husson é um economista francês. Trabalha no IRES (Instituto de Investigações Económicas e Sociais). Texto publicado originalmente em Alternatives Economiques. Traduzido para espanhol pelo Viento Sur. Traduzido a partir desta versão para português por Carlos Carujo para o Esquerda.net.