Para exercer a hegemonia, é preciso ter grandes propostas? Em um mundo onde mil oligarcas banhados a ouro, xeques bilionários e divindades do Silício governam o futuro humano, não deveria ser surpresa descobrir que a ganância gera mentes reptilianas.
Mike Davis, Sidecar / Rebelión / IHU-Unisinos 11 de março de 2022. A tradução é do Cepat.
O que mais me impressiona nesses estranhos dias – enquanto bombas termobáricas ou bombas de vácuo queimam centros comerciais e os incêndios se alastram em reatores nucleares – é a incapacidade de nossos super-homens de ratificar seu poder em qualquer história plausível sobre o futuro próximo.
De acordo com todos os relatos, Putin, que se cerca de tanta astrologia, misticismo e perversão quanto os Romanov, doentes terminais, acredita sinceramente que deve impedir que os ucranianos sejam ucranianos, para que o destino celestial da Rus [referência aos estados eslavos orientais dos séculos X a XIII que "estão na origem" da Rússia, da Bielorrússia e da Ucrânia] seja impossível. É preciso quebrar o presente para fazer o futuro a partir de um passado imaginário.
Longe de ser o homem forte e o mestre da mentira, admirado por Trump, Orbán e Bolsonaro, Putin é simplesmente implacável, impetuoso e propenso ao pânico. As pessoas que, nas ruas de Kiev e Moscou, caçoavam da ameaça até que os mísseis começaram a cair, eram ingênuas apenas porque acreditavam que nenhum líder racional sacrificaria a economia russa do século XXI para erguer uma falsa águia bicéfala [o escudo da Rússia] sobre o Dnieper.
Na verdade, nenhum líder racional faria isso.
Na outra margem, Biden realiza uma sessão espírita ininterrupta com o Dean Acheson [Secretário de Estado de 1949 a 1953, sob o comando de Harry S. Truman, que morreu em 1971] e todos os fantasmas das Guerras Frias passadas. A Casa Branca carece de visão no deserto que ajudou a criar. Todos os think tanks e as mentes brilhantes que deveriam guiar a ala Clinton-Obama do Partido Democrata estão, à sua maneira, tão aturdidos quanto os adivinhos do Kremlin. Diante do declínio do poder estadunidense, eles não podem imaginar qualquer estrutura intelectual além da competição de ogivas com a Rússia e a China (quase se pode ouvir o suspiro de alívio de Putin quando ele foi liberado do fardo mental de ter que pensar em uma estratégia global no Antropoceno). Ao final, uma vez no poder, Biden acabou sendo o mesmo belicista que temíamos que Hillary Clinton pudesse ser. Embora a Europa Oriental agora sirva como uma distração, quem pode duvidar da determinação de Biden de buscar o confronto no Mar da China Meridional, águas muito mais perigosas que as do Mar Negro?
Enquanto isso, a Casa Branca parece ter descartado descuidadamente seu fraco compromisso com o progressismo. Uma semana após o relatório mais aterrorizante da história [IPCC], que indicava a destruição iminente da pobre humanidade, as mudanças climáticas não foram mencionadas no discurso sobre o estado da União. (Como essa necessidade poderia ser comparada à urgência momentânea de reconstruir a OTAN?) E Trayvon Martin [o jovem afro-americano morto a tiros na Flórida em fevereiro de 2012] e George Floyd [o homem afro-americano morto sob custódia policial em maio de 2020 em Minneapolis] agora não são mais do que animais atropelados que desaparecem rapidamente no espelho retrovisor da limusine presidencial, enquanto Biden corre para garantir aos policiais que ele é seu melhor amigo.
Mas não se trata apenas de uma traição: a esquerda estadunidense tem sua própria parcela de responsabilidade por esse triste resultado. Quase nada da energia gerada pelo Occupy, Black Lives Matter e as campanhas de Bernie Sanders foi canalizada para repensar questões globais e elaborar uma nova política de solidariedade. Tampouco houve uma reconstituição geracional da capacidade mental radical (I.F. Stone, Isaac Deutscher, William Appleman Williams, D.F. Fleming, John Gerassi, Gabriel Kolko, Noam Chomsky… para citar alguns) que uma vez apontou, como um laser, para a política externa americana.
A União Europeia, por sua vez, também não soube lidar com os problemas de caracterização dos tempos e dos fundamentos de uma nova geopolítica. Tendo assinado seu compromisso de comércio com a China e com o gás natural da Rússia, a Alemanha corre o risco de sofrer uma dramática desorientação. A insignificante coalizão de Berlim está, no mínimo, mal equipada para encontrar um caminho alternativo para a prosperidade. Da mesma forma, Bruxelas, embora temporariamente ressuscitada pelo perigo russo, segue sendo a capital de um superestado falido, uma união que não conseguiu administrar coletivamente a crise migratória, a pandemia ou os homens fortes de Budapeste e de Varsóvia. Uma OTAN ampliada, entrincheirada atrás de um novo muro oriental, é um remédio pior do que a doença.
Todo mundo cita Gramsci sobre o interregno, mas isso pressupõe que algo novo surgirá ou poderá surgir. Duvido. Em vez disso, acho que precisamos diagnosticar um tumor cerebral da classe dirigente: uma crescente incapacidade de chegar a uma compreensão coerente da mudança global como base para definir interesses comuns e formular estratégias em larga escala.
Em parte, trata-se da vitória do presenteísmo patológico, em que todos os cálculos são feitos com base em resultados de curto prazo para permitir que os super-ricos consumam todas as coisas boas da terra durante a sua vida (Michel Aglietta em seu recente Capitalisme: Le temps des ruptures – Odile Jacob, 2019 – sublinha o caráter inédito da nova fratura geracional sacrificial). A ganância tornou-se tão radicalizada que não precisa mais de pensadores políticos e intelectuais orgânicos, apenas a Fox News e a banda larga. Na pior das hipóteses, Elon Musk terá que liderar uma emigração de bilionários para outro planeta.
Também pode ser que nossos dirigentes sejam cegos porque lhes falta a visão penetrante da revolução burguesa ou proletária. Uma época revolucionária pode vestir-se com os trajes do passado (como Marx explica em O 18 brumário de Luís Bonaparte), mas se define a si mesma ao reconhecer as possibilidades de reorganização da sociedade decorrentes de novas forças tecnológicas e econômicas. Na ausência de uma consciência revolucionária externa e na ameaça de insurreição, as velhas ordens não produzem seus próprios (contra)visionários.
(No entanto, deixe-me apontar para o curioso exemplo do discurso de Thomas Piketty dado no dia 16 de fevereiro na Universidade de Defesa Nacional do Pentágono. Como parte de uma série de conferências regulares sobre "A resposta à China", o economista francês argumentou que o "Ocidente" deve desafiar a crescente hegemonia de Pequim, abandonando seu "antiquado modelo hipercapitalista" e promovendo em seu lugar um “novo horizonte emancipatório e igualitário em escala global”. Um lugar e um pretexto estranhos para proclamar o socialismo democrático.)
Enquanto isso, a natureza retoma as rédeas da história e faz suas próprias compensações titânicas, à custa dos poderes, especialmente sobre as infraestruturas naturais e artificiais, que os impérios acreditavam controlar. Nesse sentido, o "Antropoceno", com suas alusões ao prometeico, parece particularmente inadequado para a realidade do capitalismo apocalíptico.
Como objeção ao meu pessimismo, pode-se argumentar que a China tem visão de longo prazo, ali onde todos os outros são cegos. Sem dúvida, sua visão ampla de uma Eurásia unificada, o projeto "Belt and Road" [literalmente, “cinturão econômico da rota da seda”], é um grande projeto para o futuro, sem paralelo desde que o sol do "século americano" surgiu em um mundo devastado pela guerra. Mas a genialidade da China, de 1949 a 1959 e de 1979 a 2013, foi sua prática neomandarina de liderança coletiva, centralizada, mas plurívoca. Xi Jinping, em sua ascensão ao trono de Mao, é o verme da maçã. Mesmo que ele tenha fortalecido a influência da China, econômica e militarmente, sua explosão irresponsável de ultranacionalismo ainda pode abrir uma caixa de Pandora nuclear.
Vivemos em uma edição de pesadelo de "Os grandes homens fazem história". Mas, diferentemente da antiga Guerra Fria, quando os politburos, parlamentos, gabinetes presidenciais e os estados maiores contrabalançaram até certo ponto a megalomania na cúpula, existem poucas válvulas de segurança entre os grandes líderes de hoje e o Armagedom. Nunca antes tamanha fusão de poder econômico, midiático e militar foi colocada em tão poucas mãos. Isso deve nos motivar a visitar os túmulos de heróis como Aleksandr Ilyich Ulyanov, Alexander Berkman e o incomparável Sholem Schwarzba.