Mike Davis, A terra é redonda, 17 de janeiro de 2020
A invasão de quarta-feira ao nosso “templo da democracia” constituiu uma “insurreição” apenas no sentido da comédia de humor negro. O que era essencialmente uma gangue de motoqueiros envolta em bandeiras empunhando cajados invadiu o country club definitivo da América, perseguiu senadores até as catacumbas do Capitólio, ocupou o trono de Mike Pence, destruiu o escritório de Nancy Pelosi e tirou inúmeras selfies para enviar aos parceiros de casa no país dos brancos. Fora isso, eles não tinham ideia sobre nada e, quando os policiais sérios finalmente chegaram, saíram segurando os souvenires para mostrar ao Papai Trump. Monty Python com quatro cadáveres.
Enquanto isso, várias centenas de legisladores evacuados suavam juntos em seu esconderijo. Alguns dos republicanos, firmemente leais ao seu culto à morte, recusaram as máscaras oferecidas pela polícia. Um democrata indignado descreveu o ocorrido como um “evento de super-propagação”. Horas depois, o representante Jake La Turner, um fanático por Trump do Kansas, pontualmente testou positivo para o vírus.
Previsivelmente, os especialistas liberais nos dizem agora que a extrema direita cometeu suicídio, que a era de Trump acabou e que os democratas estão livres para construir sua cidade brilhante na colina.
Na verdade, o motim foi um deus ex machina que tirou a maldição de Trump das carreiras de falcões de guerra conservadores e jovens leões de direita cujas ambições mais elevadas foram acorrentadas pelo culto presidencial.
Pelos padrões do Führerprinzip da Casa Branca, a ex-guarda pretoriana de Trump – senadores Tom Cotton, Chuck Grassley, Mike Lee, Ben Sasse, Marco Rubio e Jim Lankford – agora são traidores além dos limites. Ironicamente, isso os libera para se tornarem candidatos à presidência em um partido de extrema direita, mas pós-Trump. Além disso, seu caminho foi facilitado pela decisão estúpida e autodestrutiva de Ted Cruz de se passar por líder da multidão furiosa do presidente.
A sessão conjunta retomada na noite de quarta-feira e na manhã de quinta-feira foi o momento “até tu, Brutus?”, em que ex-trumpitas radicais, incluindo metade da equipe da “eleição roubada”, imitaram o apelo de Biden por “um retorno à decência” e denunciaram as ações do povo da planície zumbificado que haviam aplaudido horas antes como patriotas.
Sejamos claros sobre o que aconteceu: o monólito rachou e o Partido Republicano está se dividindo. Os preparativos para isso estão em andamento desde a eleição, com várias elites conservadoras, de maneira vaga, mas também energicamente, conspirando para retomar o poder da família Trump. As grandes empresas, especialmente, têm queimado suas pontes com a Casa Branca após o desastre da Covid-19 e a guerra caótica de Trump contra o governo constitucional.
A deserção mais sensacional envolve aquela instituição republicana fundamental, a Associação Nacional de Fabricantes. Enquanto o motim estava em andamento, eles pediram a Pence que usasse a 25ª emenda para depor Trump. Claro, eles foram felizes o suficiente durante os primeiros três anos de seu regime para desfrutar os cortes de impostos colossais, retrocessos abrangentes da regulamentação ambiental e trabalhista e sanções comerciais à China, mas o ano passado trouxe o reconhecimento inevitável de que a Casa Branca foi totalmente incapaz de administrar grandes crises nacionais ou de assegurar a estabilidade econômica e política básica.
O objetivo é realinhar o poder dentro do partido mais de perto com os centros de poder capitalistas tradicionais, como a Associação Nacional de Fabricantes e a Business Roundtable, bem como com a família Koch, há muito desconfortável com Trump. No entanto, não deve haver ilusão de que “republicanos moderados” de repente foram levantados da sepultura; o projeto emergente preservará a aliança central entre cristãos evangélicos e conservadores econômicos e, presumivelmente, defenderá a maior parte da legislação da era Trump.
Institucionalmente, os republicanos do Senado, com uma lista forte de jovens predadores talentosos, governarão o campo pós-Trump, uma sucessão geracional que provavelmente será alcançada antes que seus colegas democratas finalmente se livrem de sua própria oligarquia octogenária. A competição interna será acirrada, outro “monster’s ball”[i], mas os democratas de centro devem ser cautelosos ao emitir sentenças de morte. Libertados das fatwas eletrônicas de Trump, alguns dos senadores republicanos mais jovens podem se provar competidores formidáveis pelo voto dos suburbanos brancos com educação universitária que tem sido o Santo Graal para o establishment democrata.
Esse é um lado da divisão. O outro é mais dramático: os verdadeiros trumpistas se tornaram um terceiro partido de fato, em seus bunkers nas legislaturas estaduais e na Câmara dos Representantes. Enquanto Trump se embalsama em amargas fantasias de vingança, a reconciliação entre os dois campos é improvável.
Uma pesquisa na terça-feira descobriu que 45% dos eleitores republicanos apoiaram a tomada do Capitólio. Esses verdadeiros crentes permitirão a Trump aterrorizar as primárias republicanas em 2022 e garantir a preservação de um grande contingente na Câmara, bem como nas legislaturas estaduais vermelhas. (Os republicanos no Senado, com acesso a enormes doações corporativas, são muito menos vulneráveis a esses desafios.)
Os democratas podem regozijar-se da perspectiva de uma guerra civil aberta entre os republicanos, mas suas próprias divisões foram prejudicadas pela recusa de Biden em dividir o poder com os progressistas. A melhor esperança para a esquerda envolverá reformas eleitorais radicais que reduzam as restrições aos eleitores republicanos e acelerem a virada racial e geracional do eleitorado. Mas o principal legado de Mitch McConnell, uma corte suprema de extrema direita, pode ser um obstáculo insuperável.
Em qualquer caso, o único futuro que podemos prever com segurança – uma continuação da extrema turbulência socioeconômica – torna as bolas de cristal políticas quase inúteis. A guerra civil fria na América está longe de terminar.
Mike Davis é professor na University of California, Riverside. Autor, entre outros livros, de Cidades mortas (Record). Tradução: Diogo Fagundes. Publicado originalmente no jornal The Guardian.
[i] Nota do tradutor: “monster’s ball” é um termo do inglês antigo para se referir à última noite do homem condenado na Terra.