Talvez a Geografia – mais do que outros saberes das humanidades, como a História e Filosofia – possa nos ajudar a entender certos aspectos que se dão quase sem se notar em tempo pandêmico e globalizado: que, por vezes, parece mais fabuloso que trágico. De fato, diferentemente de outros estudos humanísticos, a Geografia em sua constituição e desenvolvimento sempre teve que lidar com a questão do que seja a Natureza e de como tal saber concebe seu objeto, uma vez que se inicia como descrição da paisagem e do meio. Disto dependeria até sua classificação como uma ciência humana ou ciência natural. Para nós, tal debate é desprovido de sentido, uma vez que todo saber, justamente por ser humano, não pode ser natural, ainda que seu objeto seja a Natureza: física ou biológica. A Natureza não produz saberes, nem constitui ciências. Somos nós que os construímos a partir de nossas necessidades.
Ora, uma das nossas maiores necessidades no momento está em tentar tecer redes de relações conceituais para compreendermos este acontecimento – a Pandemia – que nos parecia inaudito, impossível, moldado pelo espanto e o medo. Um espanto que não seria apenas dos indivíduos, mas também das ciências. Donde a surpresa e as incapacidades enfrentadas até aqui. Ademais, ainda que a pandemia seja um acontecimento grandemente complexo para os saberes e as ciências, estes parecem não terem entendido que tal complexidade não pode ser abarcada apenas dentro de seus feudos disciplinares, isto é, na compartimentação fragmentária dos diversos objetos de cada ciência. Não se trata apenas de interdisciplinaridade, porém do real que nunca se realiza por simples ajuntamento de particularismos.
A cultura da especialização acelerou os conhecimentos e apressou os resultados técnicos, porém fez de cada ciência uma fronteira inalcançável, incapaz de enxergar além de seus próprios limites. Quantos de nós, com formações especializadas conseguimos pensar e entrar em diálogo com outros saberes e ciências? A cultura da especialização meramente técnica é um teatro de monólogos paralelos sem espectadores.
Desse modo, é preciso se voltar uma vez mais para a totalidade: dizia Milton Santos em um de seus últimos e mais acalorados debates! Mas será, talvez, no artigo “Globalização e Redescoberta da Natureza”, fruto de uma aula inaugural proferida pelo geógrafo em 1992 que encontraremos, em síntese, elementos que jogam luz sobre o nosso atual estado de coisas – o texto pode ser encontrado no site sobre o autor.
Desde o início do ano, ouvimos que estamos em “guerra contra o vírus”. Recuperando, assim, o paradigma bélico herdado da Modernidade (abordamos tal questão no texto “Um vírus que revela nosso dissídio com a Natureza”). Neste paradigma, a Natureza é sempre afastada de nós, subordinando-se ao nosso poderio técnico. Ela é, portanto, uma realidade que vai se tornando cada vez mais passiva. Com a Globalização, conforme nos esclarece Milton, além desse aspecto, que foi se dando como próprio da ação técnica humana, a Natureza passa a nos ser apresentada como simples imagem, uma vez que teria sido plenamente domesticada.
Certamente, um bom exemplo de tal aspecto é a invenção e a ida aos zoológicos: domina um sentimento de nostalgia e relaxamento, podemos observar plenamente o “exótico” e o “selvagem” da Natureza, sem nos preocuparmos com a nossa segurança. É a Natureza sendo-nos dada como fragmentação e pura representação, na qual sua única finalidade seria ser-nos disponível: algo puramente ilusório. Porque aquilo que nos aparece como natural, nada mais é que pura artificialidade, um puro arranjo humano que busca imitar uma pretensa realidade originária.
É como imagem, assevera Milton, que a Natureza começava a aparecer como crise ambiental. As imagens, por exemplo, de pequenos cataclismas, furações e outros abalos decorrentes da crise ambiental foram se moldando ao processo midiático. Reforçando, portanto, a ideia de uma falsa proximidade, que tanto experimentamos hoje com os slogans de que “o mundo está na palma das nossas mãos”; “nas telas dos nossos computadores”. O geógrafo alertava que: “Ontem, o homem se comunicava com o seu pedaço de Natureza praticamente sem mediação; hoje, a própria definição do que é esse entorno, próximo ou distante, o local ou o mundo, é cheia de Mistérios”. Foi nessas condições que se deu e está se dando o atual processo pandêmico: na confusão generalizada entre o local e o mundial, o próximo e o distante.
Nesse sentido, não poderíamos nos espantar com as atitudes daqueles que negam a pandemia. Os negacionistas não são um isolado fenômeno político, são também efeito deste mundo de confusão entre as grandes e as pequenas escalas; entre falso concreto e verdadeiro abstrato. De fato, a atitude do homem comum que não enxerga problemas em furar as medidas de isolamento e proteção sanitária locais, ainda que esteja diuturnamente exposto à informação do agravamento de certas condições da pandemia, não é um fenômeno anedótico, atípico.
Assistir ao agravamento da situação em outros lugares, seja em esfera local, seja em esfera nacional/mundial não o comove sobre suas responsabilidades, ao contrário da obviedade que isso poderia parecer. Este homem apenas assistiu o que é contado a ele sob a forma da pura linguagem funcional que tem força de entreter, mas que dificilmente poderá mudar seus hábitos cotidianos, ainda mais quando estes se apresentam para ele como normalidade. Ele está separado da notícia que, enquanto não lhe seja realmente próxima, se perde na confusão das escalas, se desfaz na pretensa concretude que possuiria.
Não se pode esquecer que a escala local aqui não é apenas a cidade, mas o bairro, a parte do bairro que mais se frequenta, a rua onde se mora, sua casa. Ou seja, a escala mais determinante neste caso é aquela da suas relações concretas. Enquanto o perigo não lhe for realmente próximo, não estive literalmente em sua escala corporal, dificilmente mudará de opinião apenas em virtude da exposição informacional. Por mais que a pandemia seja para ele algo real e de grandes escalas, enquanto ela está apenas na tela do celular ou do computador, não passará de imagem: lhe será a proximidade mais distante. Por isso, é possível se solidarizar com o mortos de outros países e continuar a agir em casa e na parte da cidade em que habito como se a minha escala local não fizesse parte da escala mundial.
Dessa maneira, ao contrário, do que poderia parecer, as incessantes imagens midiáticas da Natureza são na verdade o seu apagamento, pois aumentam em nós a sensação do dissídio e da separação. Experimentamos certa sensação de que estamos a viver aquilo, posto que estamos vendo, interagindo, compartilhando e dando “likes”; mas em verdade, não estamos, pois estas realidades se dão longe de onde estamos, nós apenas assistimos. Os eventos locais, ainda que virilizem na babel da virtualidade, não perdem sua escala originária: as únicas coisas que os fazem parecer maiores são o manuseamento das imagens e a funcionalidade do discurso que ele pode gerar. Desligando a televisão e ficando o pé nas bolhas virtuais que preferimos, estas pretensas realidades tornam-se para nós o que realmente são: mera imagem e fabulação.
Desse modo, estamos acostumados a recordar que apesar da nossa esmagadora realidade urbana, há uma natureza – a imagem da floresta amazônica, das baleias, a aurora boreal etc. Existente, mas sempre distante de nós. Os objetos técnicos nos afastariam dela e nos protegeriam de sua excessiva desproporcionalidade de forças. Ora, Milton Santos nos ensina que esta Natureza separada, originária e intacta é uma ilusão. Por isso, ela pode ser rapidamente capturada pelo discurso midiático dos tempos globalizados, pois facilmente pode se prestar ao papel de imagem fabulada. A Natureza sempre se dá no contato e na relação que o homem estabelece com ela; fora disso, não sabemos como ela é de fato. Por isso, a história da Natureza para o homem nada mais é que parte de sua própria história.
Nesse sentido, este capítulo pandêmico da nossa história não é um ponto fora da curva. Ele reforça a confusão que a Globalização tornou possível entre as escalas e submete ainda mais a Natureza à fragmentação das imagens, aos discursos superficiais da funcionalidade comunicativa. Há rotas de fuga? Nos perguntaríamos com o professor Milton Santos, que pela potência de seu pensamento se torna nosso contemporâneo. Talvez o passo decisivo seja não esquecer que a primeira escala é aquela das verdadeiras relações concretas: quer entre homens, quer entre homens e natureza. O local e as particularidades não podem ser escamoteados, suas determinações nunca podem ser completamente apagadas.