O imperialismo do lítio junta ao extrativismo um discurso contra as alterações climáticas mas que esconde hiper-exploração, violência e despossessão.
Yanis Iqbal, Esquerda.net, 15 de agosto de 2020
A pandemia da covid-19 está a causar estragos no Chile a uma velocidade sem precedentes. Há mais de 300.000 casos confirmados e uma das mais elevadas taxas de infeção per capita – 13.000 casos por milhão de pessoas. A economia está a sofrer o grave impacto das restrições da covid-19 e um indicador disso é a taxa de desemprego nacional historicamente elevada de 11,2% . Os chilenos saíram às ruas para protestar contra o mau funcionamento do governo de direita do presidente bilionário Sebastián Piñera e as forças policiais responderam agressivamente, matando um jovem manifestante.
No meio do caos causado pelo coronavírus, o setor do lítio chileno está preparado para se expandir economicamente devido ao esperado aumento da procura. Albemarle, uma empresa sediada na Carolina do Norte e uma das duas empresas que extraem lítio do Salar de Atacama juntamente com a Sociedad Química y Minera (SQM), disse que "a atual queda dos preços assegura um próximo défice de abastecimento, especialmente porque a crise está a atrasar os projetos de expansão. A TDK, uma empresa multinacional japonesa de eletrónica e gigante das baterias, prevê que o mercado global irá assistir a um aumento da procura de lítio. Shigenao Ishiguro, o CEO da empresa, disse numa entrevista que "a transformação digital é uma enorme oportunidade para nós e não temos dúvidas de que o coronavírus irá conduzir o mundo nessa direção a um ritmo mais rápido".
Apesar da pandemia da covid-19, espera-se que o mercado de baterias cresça "a uma taxa de crescimento anual composta de cerca de 7% durante 2019-2024. O mercado de cátodos de iões de lítio, a bateria recarregável mais comum para automóveis, deverá crescer de sete mil milhões de dólares em 2018 para 58,8 mil milhões de dólares em 2024". Segundo a Bloomberg, a pandemia pode ser uma oportunidade para o mercado do lítio "com pelo menos alguns governos, incluindo os da Alemanha e da França, a utilizar os fundos destinados à recuperação do vírus para ajudar a acelerar de transição dos motores de combustão interna para alternativas alimentadas por baterias. A França oferecerá cerca de oito mil milhões de euros ao seu setor automóvel para incentivar o apoio aos veículos elétricos; o pacote de estímulo da Alemanha inclui cerca de 5,6 mil milhões de euros para o sector e exigirá que as estações de serviço instalem unidades de carregamento.
Uma provável intensificação da exploração do lítio no Chile não augura nada de bom para a classe trabalhadora ou para as inúmeras comunidades indígenas como os Atacameños, Licanantay, Colla, Aymara e Quechua que vivem no Deserto do Atacama. A demonstração mais recente das práticas exploradoras das empresas mineiras de lítio tem sido a manutenção da "continuidade operacional" para alcançar um impacto mínimo na produção. Isto traduz-se basicamente numa política de maximização do lucro, brutalmente indiferente às condições de vida dos trabalhadores. Na região mineira de lítio de Antofagasta, a taxa de casos positivos de coronavírus foi de uns estupendos 46,1%. Ao mesmo tempo que acontece esta pura imposição de uma violência necropolítica sobre a classe trabalhadora, os povos indígenas estão também a sofrer sob as pressões da extração de lítio sob a forma de uma crise de água. Embora tenha vindo a ser prestada uma especial atenção aos problemas de escassez de água nas áreas urbanas, é importante lembrar que as comunidades indígenas que vivem no Salar de Atacama também enfrentam graves carências de água causadas artificialmente por operações de extração de lítio. Nesta região mineira, as atividades relacionadas com a extração de lítio consumiram 65% da água, um dos muitos danos ambientais sofridos pelo ecossistema do deserto do Atacama devido ao desregulado imperialismo do lítio.
Em vez de considerar a pressão constante sobre a classe trabalhadora e as comunidades indígenas do Chile como um fenómeno isolado, esta deve ser colocada no contexto da estrutura global do imperialismo do lítio. O imperialismo do lítio foi instalado como uma fração do capital global e da produção de produtos primários devido a dois importantes desenvolvimentos: a exploração mineira de nível planetário e as indústrias extrativas verdes. O primeiro, como disse Martin Arboleda, "designa um terreno intrincado onde vedações, muros e fronteiras militarizadas coexistem com extensas cadeias de abastecimento e complexas infraestruturas de conectividade”. Isto denota o estabelecimento de um exoesqueleto de economia extrativa à escala planetária através do uso simultâneo de técnicas violentas e militarizadas de opressão e controlo.
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O segundo, o extrativismo verde, refere-se à "subordinação dos direitos humanos e dos ecossistemas à extração sem fim em nome da "resolução" das alterações climáticas". O lítio funciona como uma modalidade importante para substituir a extração de combustíveis fósseis por um extrativismo verde e consequentemente manter um sistema implacável de mercantilização. Em vez de "abordar o inchamento sistémico das economias do Norte e as exigências excessivas sobre os recursos do mundo que isso implica", o extrativismo verde do lítio permite aos capitalistas estabilizar a arquitetura imperialista desigual entre os países centrais e periféricos. Por exemplo, a Tesla utiliza o discurso dos veículos elétricos para encobrir a sua carnificina capitalista da América Latina com a cosmética das alterações climáticas.
O imperialismo do lítio indica a amálgama coesa entre a mineração planetária e um discurso extrativista encoberto pelas alterações climáticas. A fusão destas duas estratégias distintas inicia um reinado de hiper-exploração, extração, violência e despossessão em nome das alterações climáticas. Mas este fundo opressivo do negócio do lítio é sordidamente encoberto pelo espalhafato propagandista de uma transição energética que na verdade se alimenta dos corpos oprimidos dos trabalhadores do Sul Global. Consequentemente, o imperialismo do lítio envolve a perpetuação de relações núcleo/periferia sob o regime discursivo das alterações climáticas.
O Chile é vítima do imperialismo do lítio contemporâneo devido às suas vastas reservas de lítio. Este país tem 48% do total das reservas mundiais de lítio, equivalente a 7,5 milhões de toneladas, das quais 6 milhões de toneladas se encontram no Salar de Atacama. O Chile faz parte da área rica em lítio que a burguesia nomeou e comercializou como o "triângulo de Lítio", que é formado pelo norte do Chile, norte da Argentina e sul da Bolívia, e que contém 70% dos depósitos de lítio de salmoura do mundo. Além da abundância de lítio, o Chile é também atrativo) para os neo-conquistadores do lítio "porque custa entre 2.000 a 3.800 dólares por tonelada para extrair lítio da salmoura, em comparação com 4.000 a 6.000 dólares por tonelada na Austrália, onde o lítio é extraído da rocha. O custo de capital para a exploração e construção é mais baixo para extração na salmoura do que para a feita nas rochas duras devido às diferentes localizações de lagos de salmoura e reservas de lítio de rocha dura: "um projeto de [mineração em] rocha dura num local montanhoso remoto com acesso limitado às infraestruturas de transporte e energia exigirá muito mais dinheiro no orçamento de exploração do que uma salina terrestre plana... com estradas mineiras bem estabelecidas e uma linha de ligação à rede elétrica. Quanto à qualidade, o Salar de Atacama "tem as reservas de lítio de melhor qualidade em termos de concentração de lítio-potássio, bem como uma baixa relação magnésio-lítio".
Os depósitos de lítio de salmoura de baixo custo e de alta qualidade têm sido a ruína da população indígena que vive no Salar de Atacama. Enquanto a extração do lítio de salmoura é economicamente viável para os capitalistas, tem um efeito prejudicial para a disponibilidade de água e é, portanto, lesivo do metabolismo social das comunidades indígenas. Na extração do lítio de salmoura "até 95% da água salgada extraída é perdida por evaporação e não recuperada". Além disso, para extrair uma tonelada de lítio da salmoura, são necessários quase dois milhões de litros de água. Foram concedidas licenças às duas empresas que operam no Salar de Atacama, Albemarle e SQM, "para extrair quase 2.000 litros de salmoura por segundo". Para além da água salgada, as empresas mineiras "precisam de água doce para limpar a maquinaria e as tubagens, e também para produzir um produto auxiliar a partir da salmoura (potassa) que é utilizado como fertilizante". Um indicador da utilização de água doce pelas empresas mineiras é o facto de, entre 2000 e 2015, a quantidade de água extraída de Atacama ter sido 21% maior do que o fluxo de água para essa área.
Segundo um relatório do Observatório de Conflitos Mineiros na América Latina, "o maior impacto sócio-ambiental da extração de lítio reside no uso indiscriminado da água para a evaporação da salmoura e para a produção das tarefas necessárias. Considerando que o Salar de Atacama está localizado numa das regiões mais áridas do mundo, o Deserto do Atacama, a extração de água em grande escala e o processamento básico de lítio de salmoura gera graves danos nos frágeis ecossistemas que dependem destas fontes". O mesmo relatório afirma que "as comunidades originais das planícies salinas dos Altos Andes sofrem graves danos ambientais devido à extração indiscriminada e mal controlada dos depósitos hidro-salinos das planícies salinas, reforçando assim o seu lugar histórico de marginalização, exploração e subordinação".
Isto indica que a escassez de água não é um fenómeno localizado, limitado a um mero abaixamento dos níveis de água, mas que a escassez de água contribui para o empobrecimento generalizado dos povos indígenas e degrada drasticamente a sua vida quotidiana. A deterioração das condições de vida é causada, inter alia, pela degradação do solo e da cobertura vegetal. Na região do Atacama, as comunidades indígenas cultivam quinoa e pastam lamas. Para que as plantas de quinoa possam crescer precisam de solo uniformemente úmido e para que as lamas sejam cuidadas é precisa uma cobertura vegetal adequada da qual se possam alimentar. Mas a atividade de lítio minou ambas estas condições prévias, e a Escola de Sustentabilidade da Universidade Estatal do Arizona informa(link is external) que "uma expansão da área de extração de lítio de salmoura em um quilómetro quadrado diminui significativamente o nível médio de vegetação e humidade do solo”.
Ao desorganizar deliberadamente as configurações ocupacionais tradicionais, as empresas de lítio conseguem colonizar culturalmente e proletarizar as práticas espirituais e agro-pastorais das comunidades indígenas. Cruelmente escondida nas cadeias internacionais de valor do lítio está a subjugação total dos povos indígenas à lógica deformada da mobilidade eletrónica e, como afirma o Observatório Plurinacional das Salinas Andinas, "a produção incessante de dispositivos eletrónicos descartáveis e o crescente mercado de automóveis elétricos para a transição energética nos países do Norte Global [...] está agora a tornar-se a principal ameaça à subsistência de qualquer forma de vida nas bacias que albergam estes depósitos mineiros [de lítio]”.
A população indígena chilena não consentiu nas operações economicamente destrutivas e culturalmente catastróficas das empresas mineiras e reagiu firmemente contra o imperialismo do lítio. Em 2019, protestou contra os mecanismos de extração de lítio de salmoura que requerem o uso intensivo de água e, paradoxalmente, o Estado respondeu acusando algumas comunidades de "roubar água". O que despoletou inicialmente os protestos foram os acordos secretos com a SQM nos quais "a Agência de Desenvolvimento Económico do Chile (CORFO) assinou um contrato com a SQM que lhe permitiu triplicar a extração de lítio nos anos seguintes e estender o seu acesso à exploração mineira no Atacama até 2030”. A triplicação da extração de lítio até 2030 aumentou a quota de extração de lítio da SQM para 350.000 toneladas. Não é totalmente por acaso que um mês após o acordo Eduardo Bitran, presidente da CORFO, se reuniu com a Tesla para propor "um projeto segundo o qual a SQM forneceria salmoura, a matéria-prima a partir da qual o lítio é produzido, ao fabricante de automóveis para a refinar de forma a obter o hidróxido de lítio, componente das baterias, no Chile”.
Os povos indígenas protestaram para mostrar a sua oposição a este intrincado complexo lítio-imperialista. Estes protestos sincronizaram-se sem percalços com os protestos anti-neoliberais mais amplos que tiveram lugar no Chile e fomentaram a aliança entre a classe trabalhadora e a população indígena. Mas este movimento da classe trabalhadora e dos povos indígenas foi rapidamente suprimido pelo Estado chileno que, para estabilizar o neoliberalismo e o imperialismo do lítio, reprimiu os protestos através de prisões rápidas, a declaração do estado de emergência e o destacamento de mais de nove mil soldados. Graças à proteção proporcionada pelo Estado, o diretor geral da SQM, Ricardo Ramos, pôde afirmar que os protestos "não serão um problema fundamental para os nossos objetivos empresariais a médio e longo prazo". Ele acrescentou(link is external) que "apesar da situação no Chile, entregaremos os nossos produtos aos nossos clientes de acordo com as nossas previsões anteriores". Das declarações de Ramos inferimos que existe um acordo estrutural para consolidar o imperialismo do lítio: empresas como a SQM exploram económica e culturalmente as áreas ricas em lítio; a população indígena confronta combativamente os mecanismos predatórios destas empresas; o Estado chileno intervém finalmente para regularizar as operações mineiras, desativando violentamente os protestos.
Embora possa parecer que os protestos de 2019 contra a extração de lítio foram uma erupção espontânea de raiva, temos de examinar brevemente o contexto histórico no qual teve lugar. Para além de assinar um acordo suspeito sem qualquer consulta, a SQM “foi investigada por vários casos de evasão fiscal, branqueamento de capitais e financiamento ilegal de campanhas. Num grande escândalo público em 2014, descobriu-se que políticos de todo o espectro tinham recebido grandes quantias de dinheiro para zelar pelos interesses da empresa". A SQM também tem a duvidosa honra de ter causado grandes conflitos e, por exemplo, em 2007 houve um confronto entre a empresa e a comunidade de Toconao. O aumento de extração de água de poços não autorizados e a contaminação de fontes de água através da descarga de águas residuais foram as causas que levaram ao conflito. A Albemarle também tem vindo a avançar em direção ao imperialismo do lítio livre de lutas de classe, e em 2017 a CORFO modificou o acordo para que a Albemarle obtivesse "lítio suficiente para produzir mais de 80.000 toneladas por ano de sais de lítio de alta qualidade durante os próximos 27 anos nas suas instalações de fabrico de baterias em La Negra, Antofagasta.
O rápido aumento na produção de lítio por duas empresas no Chile beneficiou as grandes empresas eletrónicas como a Samsung, Apple e Panasonic. No sector automóvel, Toyota, General Motors, Tesla, Volkswagen e BMW são algumas das empresas que estão a obter vantagens económicas das fontes de lítio do Chile. As figuras 1 e 2 mostram o circuito múltiplo e labiríntico do lítio no mercado internacional. Para saciar a sede vampiresca de lítio de diferentes empresas houve um aumento global da produção e a expansão contemporânea da produção de lítio chileno em relação à sua produção mundial indica o papel que o Chile está a desempenhar para saciar a fome de lítio da "corrida ao ouro branco": "O valor da produção de carbonato de lítio chileno aumentou de 200 milhões de dólares em 2007, para 500 milhões de dólares em 2012 e para mais de 800 milhões de dólares em 2017. Ultrapassou mil milhões de dólares em 2018. Houve um aumento paralelo no valor da produção global de lítio na primeira fase, que atingiu 484 milhões de dólares em 2007, 998 milhões em 2013 e 2.865 milhões em 2017.
Como se espera que a procura de lítio aumente no mercado global, a população indígena e a classe trabalhadora podem começar a enfrentar dificuldades significativas para se sustentarem à medida que os ecossistemas indígenas são erradicados e a produtividade laboral aumenta impiedosamente. Durante a XI Conferência da Fastmarkets sobre fornecimento e mercados de lítio em Santiago, "os produtores Albemarle, SQM e Tianqi [que tem uma quota de 23,77% na SQM] [...] concordaram que a flexibilidade na produção continua a ser vital para responder aos vários desafios industriais e tecnológicos. Foi uma forma coloquial de dizer que os trabalhadores devem estar dispostos a ser explorados, expulsos e denegridos como simples mercadorias. As condições económicas da população indígena do Chile vão deteriorar-se enquanto no Norte Global a transição energética tem lugar e os magníficos veículos Tesla funcionam silenciosamente com as suas baterias de lítio manchadas de sangue.
Temos de nos lembrar que esta distopia de valores corporativos, que consiste em obter praticamente lítio das veias abertas do Chile, é evitável e, como Thea Riofrancos disse, "um mundo em que centenas de milhões de Teslas (ou pior, E-Escalades) feitos de materiais vorazmente extraídos sem o consentimento das comunidades locais, fabricados num regime de trabalho repressivo em fábricas poluidoras – por outras palavras, um mundo não muito diferente do nosso, mas alimentado pelo vento e pelo sol – não é uma realidade inevitável. Para nos afastarmos deste imperialismo do lítio, devemos ouvir as vozes silenciadas do Sul Global. Um modelo económico ecológico baseado nos fundamentos anti-imperialistas do Sul Global é radicalmente diferente dos modelos capitalistas de extração. Em vez de conceptualizar uma "alternativa de desenvolvimento", as massas oprimidas do Sul Global imaginam uma "alternativa ao desenvolvimento". Nos interstícios desta "alternativa ao desenvolvimento" podem ser localizadas as sementes da resistência ao imperialismo do lítio.
Yanis Iqbal é um escritor freelancer para vários meios, baseado em Aligarh, Índia. Artigo publicado originalmente no Dissident Voice. Traduzido por Raquel Azevedo a partir da versão em espanhol feito por Beatriz Morales Bastos para o Rebelión.