Série de reportagens mostra como corporações, movidas pelo lucro máximo, desarticulam comunidades e devastam. Canadá, centro financeiro da atividade, abre a série. Lá, leis protegem descaso e 95% da atividade se dá em solo indígena
Maurício Angelo, Observatório da Mineração / ISA, 20 de setembro de 2021
A história da liberação internacional da mineração em territórios indígenas coleciona violações socioambientais graves, desmentindo o que entusiastas da atividade e vários políticos brasileiros costumam dizer.
A tese de que a experiência mundial é “positiva” não resiste a um olhar atento aos fatos. É o que os exemplos do Canadá, EUA, Chile e Austrália nos contam, a partir desta série de quatro reportagens especiais que o ISA e o Observatório da Mineração começam a publicar hoje. Junto com o Brasil, os quatro países estão entre os maiores produtores de minério do mundo. Publicado hoje, o primeiro texto é sobre o Canadá.
A mesma tese é usada pelos defensores do Projeto de Lei (PL) nº 191, enviado pelo presidente Jair Bolsonaro ao Congresso em fevereiro de 2020, para liberar a mineração, o garimpo, as hidrelétricas, a exploração de petróleo e gás e até o cultivo de transgênicos nas Terras Indígenas (TIs) no Brasil. A proposta é considerada prioritária pelo governo e pode começar a tramitar na Câmara a qualquer momento, depois de ficar parada por mais de um ano e meio.
Mineração prevalece sobre direitos indígenas
Na edição 2020 do maior evento de mineração do mundo, o PDAC, realizado em Toronto, o secretário de Mineração do Ministério de Minas e Energia (MME) se reuniu com o diretor-geral do centro de Pesquisa para Mineração do Governo do Canadá, Magdi Habib, e discutiu as prioridades de cada país para o setor mineral, “com ênfase em mineração em terras indígenas”. Segundo o MME, 95% da mineração canadense é realizada em solo indígena e isso seria “referência de experiência bem-sucedida”. A história, no entanto, é bem diferente.
Cerca de 1,6 milhão de canadenses identificam-se como indígenas. Isso inclui as “Primeiras Nações” (First Nations), como são chamadas; os Inuit, que vivem na região ártica; e os Métis (mestiços). Os três grupos representam, somados, 4,9% da população nacional. As “Primeiras Nações” estão espalhadas em 617 comunidades, nas dez províncias e três territórios da federação canadense, e representam 60% da população indígena do país.
E a mineração está intrinsecamente ligada à história desses povos. Embora a política indigenista canadense funcione por meio de tratados entre o governo federal e os povos indígenas, desde o Indian Act de 1876 até a “Política de Acordos Territoriais Compreensivos” dos anos 1970, as regras para as atividades econômicas extrativistas, como a mineração, são definidas sobretudo localmente.
Grosso modo, no Canadá as províncias são o equivalente aos estados e os territórios correspondem, mais ou menos, aos antigos territórios federais no Brasil. Como acontece em outros países, deve-se ressalvar que os entes federativos canadenses têm mais autonomia política e administrativa na comparação com o modelo brasileiro.
A pesquisadora Joan Kuyek, uma das maiores referências em mineração no Canadá e autora do livro “Unearthing Justice” (Desencavando a Justiça, em tradução livre), explica que as dez províncias são totalmente responsáveis pela regulação da atividade, cada uma possuindo seu próprio Código Mineral. Já os três territórios dependem de regulação federal.
Os projetos de exploração mineral precisam também estar em conformidade com as legislações federais específicas, tal como a Lei da Pesca, a Lei de Avaliação Ambiental e a Lei de Explosivos. Mas, na prática, o poder das grandes mineradoras acaba prevalecendo diante das reivindicações dos povos indígenas e os processos de consulta acabam sendo mera formalidade, como já acontece no Brasil, nos casos de grandes empreendimentos que incidem sobre TIs.
“As leis foram criadas para proteger os interesses da indústria de mineração. Elas nunca tiveram a intenção de controlar a mineração ou seu impacto na terra ou nas pessoas”, afirma Kuyek. “As leis federais atuais não exigem consulta ou proteção para as Primeiras Nações. Nem lhes dá um papel nas decisões sobre os recursos da terra”.
Os direitos minerários são concedidos com base em “quem chegou primeiro” e há inclusive uma indústria da venda de licenças minerais, diante da facilidade com que são obtidas e do interesse de grandes corporações.
No Canadá, os direitos minerais pertencem normalmente ao governo – a Coroa – que concede esses direitos para as empresas. Mas o direito de explorar uma área é concedido a qualquer pessoa que possua uma licença para prospecção – obtida mediante o pagamento de uma pequena taxa à província ou território e mantida com o mínimo de atividade na terra.
A maioria das províncias sequer exige que uma avaliação ambiental seja feita para conceder o título minerário. No fim, embora os tipos de acordo variem, “o que os povos indígenas acabam recebendo é nada, se comparado, por exemplo, aos bônus que os executivos de grandes mineradoras recebem anualmente”, diz Kuyek.
‘Pobreza forçada’ é moeda de troca
A análise de Tara Scurr, da Anistia Internacional do Canadá, vai na mesma linha. Segundo ela, o governo canadense priva os povos indígenas de financiamento adequado para projetos de desenvolvimento em reservas que foram reduzidas a áreas muito pequenas quando comparadas aos vastos territórios tradicionais originais.
Muitos chefes e conselhos indígenas acabam concordando com as minas para que tenham acesso aos royalties pagos pelas empresas. Mas não há consenso. Às vezes, explica Scurr, as decisões dos conselhos são contestadas por membros da comunidade ou por nações indígenas vizinhas. Em alguns casos, votações são feitas entre as comunidades para decidir se concordam ou não com a instalação de um projeto minerário.
“É um sistema complicado no qual a pobreza forçada dos povos indígenas é usada como moeda de troca para abrir minas e outras infraestruturas”, critica Scurr.
Professor e pesquisador da Universidade Federal do Pará, Leonardo Barros tem se dedicado a estudar o modelo canadense nos últimos anos. Ele analisa que o Canadá é um país com forte discurso e atuação na agenda dos direitos humanos, “mas a sua implementação efetiva no caso dos povos indígenas é bastante falha”.
Mesmo com uma qualidade de vida melhor, mais recursos, uma sociedade civil mais atuante, um regime político mais democrático e um governo mais responsivo que o brasileiro, “quando se trata dos povos nativos, Brasil e Canadá se assemelham muito, no mau sentido”, diz Barros.
Além da atuação das mineradoras canadenses ao redor do planeta, incluindo o Brasil, o Canadá hoje é o centro financeiro mundial da mineração. Quase 60% dos serviços financeiros do setor em termos globais são oferecidos por meio de duas bolsas de ações: Toronto Stock Exchange e TSX Venture Exchange. Ambas sediadas em Toronto, elas listam mais de 1,1 mil empresas mineradoras em suas carteiras.
Do outro lado da corda, do ponto de vista dos povos indígenas é impossível quantificar financeiramente seu próprio modo de vida e os impactos que ele sofre com a exploração mineral.
“Como precificar uma língua que se extingue? Como precificar a paz e o sossego de uma comunidade que pode ganhar dinheiro e perder a alma? Esse tipo de reflexão já faz parte da cosmovisão de muitos povos indígenas. Resta saber se um dia poderá ser compreendido pelas mineradoras”, questiona o pesquisador brasileiro.
Rompimento de barragem
O caso dramático do rompimento da barragem de Mount Polley, um dos mais graves do Canadá e do mundo, dá a exata dimensão da tragédia que pode se abater sobre as comunidades indígenas e guarda semelhanças com os desastres de Mariana (2015) e Brumadinho (2019), ambos em Minas Gerais, no Brasil.
Em agosto de 2014, um reservatório da mina de cobre Mount Polley, de propriedade da empresa Imperial Metals, rompeu, liberando cerca de 25 milhões de metros cúbicos de rejeitos – cerca de duas vezes o que foi despejado em Brumadinho – no lago Quesnel, no centro da província da Colúmbia Britânica, no oeste do Canadá (veja vídeo e imagens abaixo).
Esse foi o pior desastre ambiental relacionado à mineração da história do país. Para os povos indígenas da área, que dependem do território para manter seu modo de vida, suas fontes de água potável e alimentação, a ruptura da barragem foi brutal. Até hoje, sete anos depois, a Imperial Metals não foi multada, autuada ou penalizada de outra forma. Imagens de pouco depois do desastre da mina de Mount Polley. Crédito: Global News
Os prazos máximos previstos pelas leis da província para apontar os responsáveis não foram respeitados. A empresa voltou a operar na área e suspendeu a extração, em 2019, em virtude do “baixo preço do cobre”. Em seu site, a mineradora alega que segue trabalhando na limpeza e reparação do desastre.
Instalada na década de 1990, a mina de cobre e ouro de Mount Polley contou com a oposição inicial dos povos indígenas Secwepemc e de outras nações vizinhas. Mas as comunidades foram convencidas pelo governo da Colúmbia Britânica de que a mina nunca lançaria resíduos tóxicos nas águas ao redor do projeto e um acordo foi assinado.
Hoje, um dos elementos centrais da existência da comunidade, toda a fonte de água e sustento para os povos indígenas e não indígenas que ali vivem foi afetada, com o Lago Quesnel contaminado, um lugar de relevância cerimonial, que garantia a segurança alimentar para os povos indígenas e era fonte de alimentos, como o salmão.
Comunidades desarticuladas pela mineraçã
o
Bev Sellars foi conselheira e chefe do povo indígena Xat’sull na Colúmbia Britânica, de 1987 a 1993 e depois de 2009 a 2015. Ela também se formou em Direito e em História, foi consultora de tratados indígenas na região e atualmente é presidente da organização Mulheres das Primeiras Nações em Defesa da Responsabilização da Mineração (em tradução livre; FNWARM, na sigla em inglês). A instituição monitora as operações de mineração no distrito da Colúmbia Britânica.
Em entrevista para essa reportagem, Sellars conta que os motivos pelos quais desastres como os de Mount Polley acontecem e a razão pela qual os povos indígenas não são ouvidos fazem parte de uma longa história de choque de culturas entre os colonizadores e os indígenas.
É quase impossível conciliar a visão de mundo tradicional, que se baseia na terra e nas águas como o centro da economia, com a “ganância insaciável” dos colonizadores, avalia Sellars. Ela está produzindo um documentário sobre como os impactos da poluição nas águas e sobre o salmão está afetando drasticamente a vida de sua comunidade.
“A extração destrutiva de recursos assumiu o controle e tornou muito difícil para os povos indígenas continuar com seu modo de vida tradicional. Alguns estão totalmente incorporados às práticas das mineradoras e isso criou muitas divisões nas comunidades indígenas”, conta.
Para ela, as leis foram criadas para impedir os povos indígenas de manter o seu modo de vida e o dinheiro acabou influenciando decisivamente a favor dos projetos minerários. “Isso torna ainda mais difícil que as vozes indígenas que ainda lutam pelo meio ambiente sejam ouvidas”, diz.
Mineradoras oferecem “migalhas
”
Sellars também é categórica ao afirmar que as mineradoras usam a pobreza que elas próprias e os governos impõem contra as próprias comunidades indígenas. Dinheiro para isso, acrescenta, vem dos próprios territórios indígenas.
Sellars concorda que, ao não permitir às populações indígenas de fato opinar e avaliar alternativas, as consultas sobre os empreendimentos minerais acabam tornando-se uma formalidade burocrática.
“As mineradoras oferecem ‘migalhas’ para ‘aprovações’ simbólicas que autorizam a mineração e a extração de recursos. Como as comunidades indígenas agora dependem de dinheiro para tudo, elas não têm outra opção senão assinar esses acordos para sobreviver”, diz.
No caso de Mount Polley, a mina logo acima do Rio Fraser, a alguns quilômetros da comunidade, era uma preocupação constante. O salmão que sobe o rio todos os anos é fundamental para os indígenas.
Dependentes de fundos governamentais e enfraquecidas por décadas de abuso do setor mineral, as lideranças indígenas não tinham dinheiro para contratar especialistas de que precisavam para verificar a viabilidade de outra mina, a de Gibraltar, da Taseko Mines e da Cariboo Copper. Trata-se da segunda maior mina de cobre a céu aberto do Canadá.
Sem condições de arcar com o trabalho desses especialistas, o povo indígena fica refém dos interesses minerários e da voz dos técnicos contratados pelas empresas. Os entraves de um projeto acabam influenciando e pressionando a comunidade a aceitar outro.
“Então, o que fizemos foi tapar nosso nariz e assinar um acordo de participação com a Imperial Metals, dona da desastrosa mina Mount Polley, que rompeu e criou o verdadeiro caos para o salmão que alimenta nosso povo desde tempos imemoriais“, conta Sellars.
“As empresas oferecem os seus ‘cientistas’, mas sabemos que seus relatórios não são tão abertos quanto deveriam ser. Portanto, agora estamos na mesma posição e nos preocupamos com a possibilidade de que a enorme barragem de Gibraltar se rompa e os rejeitos atinjam diretamente o rio que ainda nos alimenta”, alerta.
Reforma nas lei
s
Além de Mount Polley, há centenas de minas em operação e já abandonadas que oferecem risco às comunidades da Colúmbia Britânica. Um levantamento recente da Rede pela Reforma da Legislação Mineral da Colúmbia Britânica (em tradução livre) indicou que apenas duas, das 173 minas em operação na província hoje, não representam uma ameaça de contaminação às águas locais.
Os custos de limpeza dos estragos causados pela mineração já ultrapassam US$ 1 bilhão em toda a província. O governo mantém um programa que promete identificar e buscar soluções para cada local contaminado.
Foi nesse contexto que foi fundada a Rede pela Reforma da Legislação Mineral da Colúmbia Britânica, uma coalização de organizações da sociedade civil, líderes indígenas e não indígenas.
Entre as recomendações feitas pela rede, estão: exigir avaliações ambientais para todas as minas, inclusive quando solicitado pelas Primeiras Nações ou comunidades locais e também para grandes expansões de minas existentes; que o regime de títulos minerários respeite a posse, os direitos e interesses indígenas; exigir que a atividade minerária esteja em conformidade com os planos indígenas locais e regionais de uso da terra; restringir a atividade de mineração onde não houver tal plano em vigor; garantir que nenhuma atividade de mineração possa ser aprovada sem o consentimento livre, prévio e informado das populações afetadas.
Embora lute por mudanças, Bev Sellars é um pouco cética em relação às possibilidades de alterações concretas na legislação. “Reformas mínimas não farão diferença. Mais grave é que os governos dão subsídios às empresas de mineração e, ao mesmo tempo, supostamente agem como vigilantes das violações ambientais”, lembra.
Para ela, os parâmetros ambientais da legislação vigente são insuficientes e os governos fecham os olhos às violações, inclusive focando sua vigilância sobre projetos individuais, ignorando os impactos cumulativos de vários empreendimentos, o que é desastroso para o meio ambiente.
“Os políticos, queiram admitir ou não, estão no bolso dos executivos das mineradoras. No caso de Mount Polley, o governo acabou ficando do lado da empresa”, critica.
Ônus sobre os indígena
Russell Diabo é outro líder indígena histórico no Canadá. Ele é membro da nação Mohawk, da reserva de Kahnawake, em Quebec, e consultor para diversas organizações indígenas. Diabo afirma que, nos últimos 30 anos, a Suprema Corte do Canadá estabeleceu jurisprudência que coloca todo o “ônus da prova” sobre os indígenas, que precisam provar os direitos reivindicados.
“Isso custa dezenas de milhões de dólares: é preciso cumprir onerosos testes legais, coletar as evidências culturais e históricas (orais e escritas) e sustentar desafios legais constitucionais”, algo que a maioria dos povos indígenas cercados pela mineração não tem como arcar. Para ele, o sistema canadense precisa ser mudado e a consulta livre, prévia e informada garantida.
Na opinião de Bev Sellars, é preciso mudar a maneira como todos olham para a mineração e pressionar os governos. “É frustrante que as sugestões de mudanças e recomendações de organizações indígenas não sejam levadas a sério no fim”, diz.
De acordo com ela, é preciso um movimento popular, não apenas indígena, para obrigar o governo a mudar suas leis. “É imperativo que todos se conscientizem sobre o preço real da indústria extrativa. Continuo a lutar pelo futuro de todos os nossos netos. Essa é a única maneira de mudarmos as coisas”, finaliza.