Ricardo Machado entrevista Julio Araujo, IHU-Unisinos, 15 de maio de 2020
O slogan “grileiro não faz home office” dá o tom do catastrófico quadro dos ataques à floresta e às populações nativas da Amazônia
Não obstante o crescimento diário dos mortos pela covid-19, a recessão econômica e a instabilidade política que tudo isso gera, o Brasil tem como desafio urgente a freada no desmatamento e as tentativas de legalização da prática. É como se diz nos contextos de defesa do meio ambiente, “grileiro não faz home office”. De autoria do Executivo, a proposta teve como relator o senador Irajá Abreu (PSD-TO), responsável por aumentar a previsão de área desmatada que poderia ser requerida futuramente como propriedade rural, mas saiu da pauta do Congresso após pressão da sociedade civil nas redes sociais. Contudo, o prazo final previsto em regimento para voltar à discussão, caso Rodrigo Maia (DEM-RJ) coloque-a na pauta, é 19 de maio. Depois disso a medida “caduca”.
“Embora haja a alegação de que a MP 910 ou eventual projeto beneficiem os pequenos, o que há é a anistia e a convalidação de ocupações ilegais, por grileiros, com a anuência e premiação estatal”, explica o procurador do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro Julio Araujo, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “Segundo o Tribunal de Contas da União, desde 2009, há uma omissão muito grande dos órgãos de fiscalização na destinação das terras públicas às finalidades constitucionais, como demarcação de territórios de povos e comunidades tradicionais e reforma agrária. Com isso, os grileiros avançam sobre essas áreas e registram declarações em sistemas federais, que não têm valor de titularidade, mas lhes garantem uma aparente chancela estatal na ocupação”, complementa.
Mesmo sem aprovação da Medida Provisória 910, os dados de desmatamento cresceram em relação aos altos níveis registrados em 2019, com um acréscimo de alertas de mais de 63%. “À questão ambiental, soma-se o contínuo projeto genocida perpetrado pelo Estado brasileiro. “Estamos diante de um ataque avassalador e com viés – mais uma vez – genocida contra esses povos, com vistas a destruir aquilo que se construiu, a duras penas, desde a promulgação da Constituição de 1988. Pode-se dizer até que esse projeto de destruição tão radical e direto é fruto de uma reação ao avanço dos direitos indígenas e da efetivação de certos comandos constitucionais, o que fez com que essa causa fosse vista como uma grande inimiga por setores associados à concentração fundiária e à devastação da natureza”, pontua.
Julio José Araujo Junior é graduado em Direito pela Universidade de São Paulo - USP e mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Foi procurador federal de novembro de 2007 a outubro de 2010 nos municípios de Osasco e Santo André, em São Paulo, e juiz federal em Volta Redonda, Rio de Janeiro, entre 2010 e 2012. Além disso foi procurador no Amazonas de 2012 a junho de 2014, tratando de temas relacionados a populações indígenas e comunidades tradicionais. Desde junho de 2014, passou a atuar no MPF no Estado do Rio de Janeiro.
O que significa para a Amazônia e seus povos a possível aprovação da Medida Provisória 910/2019, mais conhecida como “MP da grilagem”?
A aprovação da MP 910 ou de algum projeto de lei que tenha o mesmo objetivo representaria um duro golpe à Amazônia e aos povos da floresta. Embora haja a alegação de que a MP 910 ou eventual projeto beneficiem os pequenos, o que há é a anistia e a convalidação de ocupações ilegais, por grileiros, com a anuência e premiação estatal.
O texto da proposta de lei prevê a regularização da ocupação privada de até 2,5 mil hectares (2.500 campos de futebol) de terras públicas. Qual a razoabilidade de uma proposta como esta? Quais as consequências para o bioma?
Existe uma sucessão de leis que tratam do tema. No início (Lei nº 11.952/2009), falava-se em 1.500 hectares, o que foi alterado pela Lei nº 13.465/2017. A novidade da MP foi estender a regularização para todo o Brasil e aumentar o tamanho das áreas que terão um processo bem simplificado de regularização, mediante autodeclaração do ocupante, passando de quatro módulos fiscais para 15 módulos. Na Câmara, uma proposta alternativa tenta reduzir a área a ser regularizada dessa forma para seis módulos, o que é um recuo importante, mas não afasta o problema.
Segundo o Tribunal de Contas da União, desde 2009, há uma omissão muito grande dos órgãos de fiscalização na destinação das terras públicas às finalidades constitucionais, como demarcação de territórios de povos e comunidades tradicionais e reforma agrária. Com isso, os grileiros avançam sobre essas áreas e registram declarações em sistemas federais, que não têm valor de titularidade, mas lhes garantem uma aparente chancela estatal na ocupação.
Como efeito dessas omissões, que não permitem o acompanhamento da regularidade ambiental na área e a adoção de cultivos, há o aumento do desmatamento e a renúncia à proteção do patrimônio público. A MP 910 e as iniciativas que vêm sendo gestadas no Congresso indicam o aprofundamento desse caminho.
Na região amazônica há uma série de populações nativas – indígenas, ribeirinhos, extrativistas, quilombolas. Quais seriam os impactos diretos para estes povos?
Embora haja uma indicação nos textos apresentados de proteger as terras tradicionalmente ocupadas por povos indígenas, é necessário ler essas iniciativas em conjunto com a Instrução Normativa (IN) nº 9, recentemente editada, em plena pandemia, pela Funai. A IN 9/2020 indica a possibilidade de a autarquia indigenista reconhecer títulos de particulares e afastar, simultaneamente, a existência de qualquer terra indígena na área pleiteada que não esteja na fase final do processo de demarcação. Para tanto, a Funai adota um conceito inconstitucional e restritivo de terras indígenas, como se estas fossem apenas aquelas homologadas ao final do processo administrativo. Esse entendimento não se sustenta, já que os direitos territoriais dos povos indígenas são reconhecidos como originários pela Constituição e têm plena validade antes da conclusão do processo demarcatório, com precedência sobre a propriedade privada, havendo previsão expressa de que é nulo qualquer título que incida sobre tais territórios (art. 231, § 6º). Assim, o mesmo governo federal que se omite na conclusão dos processos demarcatórios vale-se dessa omissão para dizer que os territórios reivindicados não podem ser considerados “terras indígenas”. Com isso, legaliza-se o avanço e a ocupação sobre essas terras, inclusive mediante extração de recursos.
Em relação a quilombolas, os impactos podem ser da mesma ordem, dada a omissão histórica do Incra e dos órgãos federais na titulação de áreas. Quanto a outros povos tradicionais, cujo regime jurídico expresso é menos robusto que o dos povos indígenas e quilombolas, os riscos são ainda maiores, já que muitas vezes não dispõem de uma formalização que tenha sede constitucional, embora eu defenda que o regime jurídico das terras indígenas possa, em alguma medida, ser aplicado a eles, em conjunto com a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho). Na prática, os avanços de grileiros sobre aquelas áreas serão legitimados e chancelados pelo Estado, gerando maior vulnerabilidade.
Sabemos que o Congresso está trabalhando em regime especial e deveria estar trabalhando em projetos e medidas urgentes para conter a pandemia da covid-19. Qual a necessidade de colocar este tema na pauta?
Primeiramente, é necessário dizer que este tema não poderia ser tratado por medida provisória, já que não atende ao requisito constitucional da urgência. Toda medida provisória deve ser urgente e relevante, motivos que justificam o Presidente da República editar um ato normativo com força de lei. Mas a MP 910 não tem essa urgência, já que é um tema que pode e deve ser tratado com tranquilidade e com amplo debate prévio, respeitando a pluralidade da sociedade brasileira e principalmente os anseios dos grupos minoritários.
O debate público amplo passa por garantir à sociedade que entenda os interesses em jogo e que possa discutir o projeto que deseja para a Amazônia, além de debater os impactos socioambientais que medidas como essa, que infelizmente não beneficiam majoritariamente os pequenos produtores, acarretam em terras públicas.
Outro risco se soma à já delicada questão: o período de estiagem. Por que uma aprovação neste momento, não somente de pandemia, mas também às vésperas da “temporada de fogo” na Amazônia, pode agravar ainda mais a situação?
Não há dúvida de que as coisas podem e estão piorando. Diante da total desestruturação dos órgãos de fiscalização pelo governo federal, a estrutura estatal de proteção à floresta, que já era precária, agora está muito fragilizada. Não à toa, dados apontam que o desmatamento vem aumentando, mesmo no contexto da pandemia, o que tem ensejado o slogan de que “grileiro não faz home office”. É possível imaginar que alguns até façam, uma vez que o interesse nessas terras abrange setores que podem lucrar com a terra sem sair de casa, mas é certo que a desregulamentação quanto a medidas protetivas confere segurança aos que praticam ilícitos para que continuem nesse caminho.
A floresta tem sido o refúgio para comunidades indígenas que conseguem “fugir” para o seu interior em busca de um local mais seguro contra o coronavírus. Em que sentido a aprovação da MP 910 seria a cereja do bolo na tentativa de ofensiva final contra os povos indígenas?
Não gosto do termo “ofensiva final”. A história nos mostra que os povos indígenas resistem, lutam e seguem firmes no enfrentamento a outros modos de vida e a uma visão predatória na natureza. Mas podemos entender que estamos diante de um ataque avassalador e com viés – mais uma vez – genocida contra esses povos, com vistas a destruir aquilo que se construiu, a duras penas, desde a promulgação da Constituição de 1988. Embora muitas políticas públicas ainda estejam faltando, é necessário dizer que houve avanços, muita terra foi demarcada, muita coisa importante foi feita, inclusive no campo da participação. Pode-se dizer até que esse projeto de destruição tão radical e direto é fruto de uma reação ao avanço dos direitos indígenas e da efetivação de certos comandos constitucionais, o que fez com que essa causa fosse vista como uma grande inimiga por setores associados à concentração fundiária e à devastação da natureza.
Considerando sua experiência no trabalho com os povos nativos, quais são as principais dificuldades enfrentadas por estas populações e como o atual momento as fragiliza ainda mais?
Creio que há duas frentes a serem analisadas e priorizadas. A primeira é, evidentemente, a da saúde. O subsistema de saúde indígena representou avanços na sua construção, a partir de 1999, mas é certo também que muitos problemas nunca foram resolvidos, como a necessária interação da saúde básica com o Sistema Único de Saúde - SUS, mediante apoio e complementação dos Municípios e Estados. Na prática, sempre vigorou uma lógica de “jogo de empurra” quanto a essas competências. Isso claramente gerou impactos na implementação e efetivação de políticas. Na pandemia, isso se acentua, e podemos ver claramente as dificuldades, sobretudo quanto a recursos humanos e materiais, sem deixar de mencionar o aspecto preventivo.
A outra frente deve conter a aceleração das políticas de destruição, que continuam sendo adotadas sem qualquer trégua durante a pandemia. A tentativa de votar a MP 910 foi um exemplo disso. A IN 9 é outro. Recebemos despachos e decisões todos os dias com tentativas de anular processos demarcatórios e assentamentos, e até reintegrações de posse. Felizmente o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal – STF, proferiu na semana passada decisão que suspendeu todos os processos de reintegração e o parecer normativo da Advocacia Geral da União - AGU sobre o marco temporal na ocupação de terras indígenas. Com isso, os processos poderão continuar e a Funai não poderá adotar o argumento de que eles não devem prosseguir.
Desde o final de 2018, o Brasil tem enfrentado um crescimento sistemático e contínuo do desmatamento e das queimadas. Qual a situação da região amazônica hoje, mesmo antes da aprovação da MP 910?
Segundo dados do sistema Deter-B, desenvolvido pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais - Inpe, os alertas de desmatamento na floresta cresceram 63,75% em abril de 2020, comparado ao mesmo mês do ano passado. Isso ocorreu em meio à pandemia, sendo que o primeiro trimestre bateu o recorde de desmatamento. Logo, as perspectivas são as piores possíveis.
O Ministério Público Federal - MPF ajuizou ação civil pública no Amazonas para tratar do desmonte nos órgãos de fiscalização e da necessidade de medidas urgentes. Em 24 de abril, a Justiça Federal pediu que os órgãos dissessem o que justificaria o fato de que a existência da pandemia e os riscos ambientais e socioambientais a ela associados não deram ensejo à intensificação das atividades fiscalizatórias no bioma Amazônia, inclusive em terras indígenas.
A resposta do governo tem sido utilizar o aparato militar, à margem da legislação e da estrutura já existente, sem a participação de órgãos técnicos da Funai, Ibama e ICMBio. É difícil esperar algo positivo sem a perspectiva socioambiental de profissionais que poderiam indicar um caminho efetivo para a prevenção dos ilícitos, sem a pirotecnia de uma GLO (Garantia da Lei e da Ordem), que não pode ser permanente.
Qual tem sido o papel do Ministério Público Federal em relação à proteção dos povos indígenas e do meio ambiente na região Norte do Brasil?
O MPF tem um compromisso histórico com essa temática e segue exercendo o seu papel nesse sentido, sempre em diálogo com os povos e suas organizações, além de desenvolver parcerias com entidades de apoio e indigenistas. O MPF, que emerge da Constituição de 1988 com um papel singular de defesa da sociedade e das minorias, tem no seu DNA a parceria e a caminhada conjunta com os povos indígenas. Isso deve ser sempre lembrado, esse compromisso e esse papel importante na concretização dos direitos dos povos indígenas. Essa função tem base técnica, jurídica e humana, não se trata de uma visão ideológica. A nossa tarefa institucional jamais será algo diferente da defesa dos territórios indígenas, de sua autonomia, do respeito à sociobiodiversidade, da garantia da consulta prévia, livre e informada e da percepção de que os povos indígenas merecem respeito e consideração. Se um dia isso ocorrer, podemos dizer que esse MP será inconstitucional ou que talvez não mereça existir.
Em caso de aprovação da MP 910, haveria possibilidade de se recorrer ao Supremo Tribunal Federal - STF para alegar inconstitucionalidade? Qual artigo da Constituição feriria? O que poderia ser feito para proteger os povos e a floresta amazônica?
Em notas técnicas produzidas pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, que pude subscrever, e por Câmaras do MPF, foram ressaltadas inconstitucionalidades materiais e formais da MP 910. Além de o instituto da medida provisória não ser cabível no caso, como eu já disse, pode-se afirmar que há ofensa ao princípio republicano, em razão da falta de transparência e respeito à coisa pública no combate à grilagem, além de violações aos art. 186, que trata da função social da propriedade, e ao art. 188, que ressalta a destinação de terras públicas. Há violação também a dispositivos que tratam do meio ambiente quando se prevê que a regularidade ambiental para fins de titulação pode ser obtida mediante mera adesão a um programa de recuperação ambiental e quando se admite o avanço sobre grandes áreas sem clareza quanto a contrapartidas, ensejando uma flagrante proteção deficiente desses bens jurídicos. O Tribunal de Contas da União - TCU mostrou a gravidade da renúncia de receitas públicas e o impacto sobre o desmatamento. Esperamos que um eventual debate não ocorra no Supremo, mas caso alguma lei seja aprovada, essa via sempre será possível.