Saskia Sassen (Haia, 1947) é professora da Universidade Columbia, em Nova York, membro do Comitê de Pensamento Global desta universidade e Prêmio Príncipe das Astúrias de Ciências Sociais 2013. É especialista em globalização, desigualdade e “cidades globais”, termo que cunhou em 1991. Nesta entrevista, aborda um assunto a respeito do qual não costuma ser muito perguntada: a mudança climática. Em um espanhol perfeito, com sotaque argentino, uma das cinco línguas que domina, e com uma grande proximidade, a conversa passa por diferentes aspectos da crise que ameaça nossa sobrevivência como espécie. A entrevista é de Lucía Muñoz Sueiro, publicada por Ctxt, 6/11/2020. A tradução é do Cepat.
Considera que os termos politicamente corretos ou os generalistas podem fazer com que evitemos a responsabilidade coletiva. Prefere falar de “terras e águas mortas” em vez de, ou além de, simplesmente “mudança climática”. Por quê?
Basicamente porque em muitas situações precisamos de uma linguagem mais brutal. Precisamos de uma linguagem que comunique diretamente a brutalidade de nossos sistemas econômicos em relação à capacidade de destruir águas, terra, qualidade do ar... Modalidades de construção que contêm materiais nocivos e destrutivos para a nossa saúde.
Por que a linguagem com a qual abordamos este assunto importa tanto?
Provavelmente, não importa para aqueles que reconhecem a importância do que está acontecendo, mas continuamente me deparo com situações, eventos e indivíduos que se esquecem de toda a questão do meio ambiente. Não é que não estejam inteirados sobre os detalhes..., é que simplesmente o esquecem, não o pensam, não o discutem, não falam sobre isso.
O que há dos termos “crise climática”, “crise ecossocial” e “ecocídio”?
Todos capturam algo de uma realidade emergente que vai avançando cada vez mais e imagino que, ao longo do tempo, na medida em que vamos reconhecendo que contribuímos para uma mudança formidável da “Mãe Natureza”, iremos reagir de múltiplas formas a esta destruição.
Ouvimos falar muito de Antropoceno, o nome proposto por grande parte da comunidade científica para a era geológica atual, marcada pelo impacto da atividade humana sobre o planeta. No entanto, alguns defendem que deveríamos falar de Capitaloceno, em alusão ao modo de produção capitalista que precisa de recursos ilimitados. Qual é a sua opinião a respeito desta discussão?
Sim, há muitas formas diferentes para falar desta mudança. Ter diferentes denominações faz sentido: nenhum de nós pode colocar o foco em todas. Precisamos de uma variedade imensa de interesses específicos, muitas vezes muito pequenos, mas múltiplos.
Eu diria que precisamos falar tanto de Antropoceno como de Capitaloceno, e certamente de muitos outros termos, cada um com suas especificidades. Há uma imensidão de pontos frágeis em nosso planeta que nós produzimos e que em um determinado momento irão nos afetar diretamente, sem subterfúgio possível, porque somos um planeta com muitas intersecções.
Falando em intersecções, qual é a relação entre os problemas ambientais e os problemas sociais nas cidades?
Excelente pergunta e vem com uma lista muito longa de opções, inovações, possibilidades, e imaginários que é provável que algum dia se tornem realidade...
As cidades são responsáveis por 70% das emissões globais de gases do efeito estufa, mas por outro lado a concentração de moradia e serviços pode ajudar a gerar menos impacto ecológico... O questionamento da vida urbana constitui um desses imaginários?
Agora, sabemos que há limites na modalidade de cidade de grande densidade, e que o futuro implicará um uso de tipos de materiais muito diferentes dos atuais. Os especialistas japoneses nos mostram toda uma série de inovações impressionantes em relação ao uso de materiais.
É um país que precisa combater o aumento do nível do mar de maneira radical, sendo assim, inventaram respostas extraordinárias... vale a pena se inteirar delas. Do meu ponto de vista, a longo prazo, teremos toda uma série de inovações tanto nas concentrações urbanas, como no meio rural: o campo e a cidade, a horta e as minas, etc.
Seu próximo livro tem como título “A ética das cidades”. Pode nos dizer algo sobre ele?
Ah, sim! Esse é o meu novo projeto. Para dizer brevemente: uma ética da cidade é inevitavelmente uma ética incompleta, porque a cidade está cheia de desigualdades, injustiças, etc. O desafio para mim é entender, em primeiro lugar, como construir uma ética imperfeita na cidade, como lidar com esta diversidade.
Fala-se muito em “cidades verdes”. O que são e até que ponto representam uma solução para a mudança climática?
Provavelmente, no momento, tudo o que podemos fazer em nossas cidades é maximizar o verde e tudo aquilo que possa absorver as influências negativas no ar, nas águas, na construção, etc... Mas acredito também que iremos mudar a modalidade urbana para a tornar mais compatível com um uso mais inteligente de tudo o que precisamos em uma cidade, de materiais ao tráfego.
Em um relatório recente, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento defende cidades inteligentes climáticas para reduzir as emissões de uma maneira “eficiente”. No entanto, alguns denunciam que as cidades inteligentes estão substituindo a busca por uma justiça ecossocial por soluções macrotecnológicas que, na realidade, poderiam reforçar as desigualdades já existentes. O que diz a respeito disto?
Concordo que tais elementos negativos estarão em jogo: curamos o elemento A, mas para fazer isso destruímos o elemento B. Este tipo de contradição será difícil de eliminar. Por isso, acredito que será crucial uma mudança nos tipos de materiais para a construção, para fazer ruas, para o transporte, etc.
Junto às tendências especulativas, privatizantes, competitivas e individualizantes, as cidades começam também, especialmente a partir da última crise, a ser espaços de experimentação cooperativa, solidária, sustentável e equitativa. As cooperativas de bicicletas, hortas urbanas e mercados locais são sementes de uma mudança muito maior?
Parece-me que sim. O interessante para mim é que são modalidades modestas, como a bicicleta, que em suas diferentes opções se tornam muito úteis. Agora, vemos bicicletas que são quase como carros por tudo o que carregam, mas não são carros, são bicicletas e, portanto, não possuem as emissões dos carros, caminhões e aviões.
Como imagina a cidade ideal?
Honestamente, não tenho esse tipo de fantasia. Não há cidade perfeita ou ideal, embora quase todas as cidades tenham algo que apoia aqueles que nelas vivem, e abrem as imaginações de muitos, gerando inovações, fazendo arte... há uma longa lista de opções que as cidades nos oferecem.
Na Espanha, que foi um país de tradição rural até os anos 1960, temos um problema de despovoamento rural, a chamada “Espanha vazia”. Que riscos vê nesta tendência?
Sim, estas são mudanças importantes que podem ser muito negativas, é verdade. Mas eu também vejo algo que pode ser positivo: gera espaço aberto, muitas vezes, muito mais barato do que foi há alguns anos e, por conseguinte, facilita que ao menos alguns possam apostar em uma vida mais rural, com capacidade de produzir produtos frescos para consumidores locais, em vez de ter que os comprar de empresas internacionais, que muitas vezes aumentam os seus custos.
Além disso, cada vez que um povoado se soma à lista de povoados abandonados se perde todo um sistema de conhecimentos tradicionais. Que implicações a perda de diversidade, não só biológica, mas também cultural, podem ter?
Parece-me que isto está mudando. Há toda uma série de emergências positivas em jogo para que cada vez mais famílias jovens possam viver em situações menos urbanas do que as das grandes cidades... não digo que vivam no campo, mas, sim, em contextos com áreas verdes, árvores, águas, e comunicações mais ou menos funcionais. Penso que algo está mudando em termos dos interesses de muitas famílias jovens e também de jovens empreendedores.
Avalia que a população que atualmente vive na chamada “Espanha vazia” poderia ser compreendida dentro da categoria “expulsos”?
Em parte, sim... mas com o passar do tempo, ninguém sabe como serão chamados. Pode ser que sejam vistos como os novos inovadores, que souberam entender que sair das grandes urbes foi a coisa mais inteligente que puderam fazer [risos].
Em seu livro “Expulsões”, dedica um capítulo inteiro, “Terras mortas, águas mortas”, às degradações causadas pelos abusos de empresas industriais e mineiras. Poderia comentar sobre algum dos casos que conheceu que mais a indignou?
Ah, sim, isto se tornou um tema importante para mim. Meu objetivo nesse caso foi expor um grande número de destruições de terras e águas, algumas em pequena escala e outras em grande escala. O efeito geral é o de uma perda enorme de habitat. Encontrei desde habitats que ainda têm vida até habitats que estão morrendo e habitats que já estão mortos, definitivamente mortos. Interessou-me muito nessa pesquisa entender o que é uma “terra morta” e pisar com meus próprios pés em terras mortas de todos os tipos.
Considera que os movimentos de justiça ambiental que surgem diante destes abusos devem ser vistos como movimentos específicos locais ou como um único movimento global, com um objetivo comum?
Esta é uma diferenciação muito importante. Penso que precisamos de ambos. Dada a urgência, cada esforço, grande ou pequeno, que busca remediar, combater esta destruição, conta, e conta muito, não importa quão pequena seja a intervenção. Penso que as novas gerações (ao menos meus estudantes, nas últimas décadas) são muito mais conscientes da importância de se resgatar águas, terras, ar.
A mudança climática e a degradação da água e da terra afetam a todos por igual?
Não, não nos afeta da mesma forma. Há muitos bairros pobres onde o ar e a água já estão envenenados e vemos nascer novas gerações com fragilidades que são consequência de um ar ruim, águas ruins, uma comida ruim. Isto é realmente trágico. Estamos falando de milhões de jovens que terão problemas sérios de saúde.
Os grupos ambientalistas denunciam que algumas das soluções à mudança climática apresentadas pelas grandes corporações e inclusive nos acordos internacionais são falsas. É o caso do comércio de emissões de carbono, que você também criticou em outras oportunidades. Por que lhe parece uma brincadeira?
Quando as grandes empresas nos dizem que estão preocupadas e que querem eliminar assim os efeitos negativos em suas práticas, mais do que uma brincadeira, é um atentado à nossa inteligência. Ainda são uma minoria as grandes empresas que a estão levando a sério, mas algo é algo e é um alerta para todas aquelas que não mudam suas modalidades destrutivas do meio ambiente.
Paralelamente a este “capitalismo verde”, desenvolveu-se toda uma rede de vias, campos e propostas radicais de transição. Há alguma que considera especialmente inspiradora?
Com o tempo, vemos o que funciona bem e o que não funciona. No momento, devemos usar todos os tipos de inovações, às vezes específicas para certos lugares e condições e às vezes genéricas, que possam funcionar em uma série de situações muito diferentes. Aqui, um dos grandes desafios é a enorme quantidade de populações pobres que sobrevivem em espaços altamente poluídos.
Isso é uma tragédia e é algo que se vê cada vez em mais cidades ou em situações urbanas nas quais em um passado recente não havia tanta concentração de miséria, pobreza, águas ruins, enorme poluição de elementos químicos e orgânicos que geram má saúde e doenças. Isto é catastrófico e temo que os encarregados por essas cidades, muitas vezes, tomam posições muito “práticas”, algo assim como: “Bom, são tão pobres... é melhor que morram aí o quanto antes, em vez de buscar como curá-los”.
Em uma entrevista publicada por Ctxt, afirmou que “o crescimento econômico é o veneno de nossa época”. Considera que é possível uma transição para um sistema em que não persigamos o crescimento econômico ilimitado ou em que o decrescimento econômico seja econômica e socialmente sustentável?
Será difícil fazer essa mudança... Temo que levará décadas para purificar nossos sistemas. A Europa, em nível continental, fez mudanças impressionantes, sendo assim, sabemos que é possível fazer algo para melhorar a qualidade do ar e da água, mas a Europa é uma exceção. Também a China tem um projeto muito mais sério que a grande maioria dos Estados da América do Sul e a África.
Durante a pandemia, assinou o “Manifesto pela reorganização da cidade após a covid-19”, que entre suas medidas estão propostas abertamente decrescentistas, como reduzir o consumo e estimular a economia social, local e cooperativa. Como avalia que a pandemia mudou os termos do que é imaginável ou possível no contexto da crise climática?
Para responder a esta pergunta ajuda justamente o termo que você usa: a pandemia “mudou os termos”. Mas, agora, nos cabe executar essa mudança de maneira que, por um lado, nos permita sobreviver e, por outro, nos ajude e leve a aprender a viver com modalidades menos destrutivas em relação às que usamos até agora. Nunca seremos perfeitos em relação ao que significaria o ideal de proteger a natureza, mas podemos ser um pouco menos imperfeitos do que fomos.