María Hervas, de Varsóvia, para o El Pais (Estado espanhol), em 31/10/2020
Já se passaram 10 dias desde que a centelha de descontentamento e agitação social se acendeu na Polônia. Durante este tempo, centenas de milhares de mulheres e jovens ocuparam as ruas das principais cidades do país para protestar como nunca haviam feito antes contra o governo ultraconservador do Partido da Lei e Justiça (PiS). Eles já disseram o suficiente. Eles temem perder seus direitos. Afastar-se mais da Europa. Eles rejeitam a Polônia tradicional, nacionalista e católica que vem moldando o partido governista há anos. Pela primeira vez em sua história moderna, os poloneses estão questionando abertamente o papel da Igreja. Na última semana, houve protestos dentro e fora das paróquias, algo impensável em uma sociedade tradicionalmente católica. O gatilho desta raiva foi a decisão da Corte Constitucional de 22 de outubro passado de que o aborto é quase totalmente proibido. Em um país que já estava entre os mais restritivos da Europa para a interrupção da gravidez.
A decisão declara o aborto inconstitucional devido à malformação fetal, que representa 97% dos procedimentos realizados na Polônia. "Este é mais um ataque aos direitos das mulheres que não permitiremos", disse na sexta-feira passada uma combativa Marta Lempart, a face mais visível do movimento que lidera os protestos. Lempart é um dos representantes da organização Strajk Kobiet (National Women's Strike, em polonês).
"Isto vai além da rejeição da decisão sobre o aborto". As pessoas estão muito zangadas. Perdemos o Estado de direito, não há independência judicial, o LGTBI é atacado, na pandemia em que vimos que eles estão brincando com nossa saúde. As pessoas odeiam cada vez mais Kaczynski [vice-primeiro ministro e líder do partido governista]. Ele será visto esta tarde nas ruas", disse o ativista de 41 anos de idade.
Marta Lempart, a face mais visível do movimento feminista contra o governo da Polônia, na sede de Strajk Kobiet, em Varsóvia, nesta sexta-feira. De fato, sob o slogan "Todos a Varsóvia", milhares de cidadãos participaram da convocação de Strajk Kobiet na sexta-feira - mais de 100.000, de acordo com os organizadores; 50.000, de acordo com as autoridades. Oskar Tokarczuk viajou com seus amigos de Wroclaw a Varsóvia (três horas e meia de ônibus) para assistir à manifestação. "Pensamos que se eles estão tirando os direitos das mulheres, eles também vão tirar os nossos", diz a estudante de odontologia de 20 anos que está usando óculos plásticos no caso da polícia usar spray de pimenta contra os manifestantes novamente.
Rejeição da Igreja
"Não vimos um movimento juvenil tão forte desde a queda do comunismo", diz Ewa Kulik-Bielinska, diretora do think tank polonês Stefan Batory Foundation. "Vivemos em uma democracia liberal onde o individualismo é primordial, e os jovens sentem que o veto ao aborto é um ataque à sua liberdade pessoal", acrescenta ela. Mas há outros elementos de raiva por parte da sociedade polonesa, que tem estado muito fraturada há anos. Até agora, poucas pessoas questionavam os direitos da Igreja. "A exposição de casos de pedofilia envolvendo padres poloneses e a falta de investigação destes abusos irritou parte da sociedade", explica a escritora feminista Agnieszka Graff.
O padre dominicano Michal Pac está preocupado com este tédio. "Na Polônia vivemos em uma atmosfera de guerra civil pré-espanhola. Tanto Marta Lempart quanto Kaczynski estão exacerbando ainda mais a situação. Temos que convencer os fiéis a voltar às igrejas, mas não forçá-los. Embora tenhamos medo", diz ela do mosteiro de São José, ao sul de Varsóvia. Na quarta-feira passada, Kaczynski, o principal arquiteto da deriva autoritária do país, apelou para "defender as igrejas". Os analistas consultados dizem que há nervosismo entre o partido no poder. O PiS não esperava tal reação por parte da população. O partido ultra-conservador sofreu a pior queda nas intenções de voto durante seis anos, de acordo com uma pesquisa realizada pela empresa de pesquisa Kantar.
Desconforto sobre a gestão da pandemia
O desconforto com a gestão da pandemia durante a segunda onda está crescendo a cada dia. Ontem, a Polônia, com 38 milhões de habitantes, estabeleceu um novo recorde de infecções (21.897). Se o país eslavo foi um exemplo de contenção na primavera, o relaxamento das medidas no verão e a falta de previsão levou a um verdadeiro desastre de gestão da saúde. Nesta Ponte de Todos os Santos, os cemitérios poloneses estão fechados ao público. A sexta maior economia da UE também sofreu com o coronavírus, e a ameaça da primeira recessão do país desde a queda do comunismo em 1989 é mais do que tangível. Ao meio-dia de sexta-feira, cerca de 400 ônibus bloquearam o tráfego no centro de Varsóvia em protesto contra a falta de ajuda para um setor fortemente atingido pela covid-19, como o turismo.
"Os agricultores, uma parte do eleitorado fiel ao PiS se sentem traídos por Kaczynski e sua lei de direitos dos animais", acrescenta a analista Ewa Kulik-Bielinska. Esta lei proíbe a criação de animais para peles. A Polônia é o terceiro maior produtor mundial de peles de animais (principalmente marta e raposa) e o segundo maior da UE, depois da Dinamarca. A questão é como o governo vai conseguir acalmar as coisas. Na sexta-feira, o Presidente da República, Andrzej Duda, anunciou que apresentará um projeto de emenda à lei do aborto para legalizar novamente a interrupção da gravidez devido a malformações fetais, mas somente nos casos em que a morte da criança seja inevitável.
"Isto não será suficiente". Nos próximos dias, um estado de emergência será declarado sob o pretexto da pandemia e as manifestações serão reprimidas", prevê Kulik. "Os jovens demoraram muito tempo para acordar. Esperemos que continuem assim", disse Grzegorz Kowalczyk, 64 anos, enquanto caminhava sozinho através da multidão de pessoas pedindo liberdade na sexta-feira em Varsóvia.